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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016

 

RESENHAS

 

Pedofilia Pedofilias: a psicanálise e o mundo do pedófilo

 

 

Ricardo Saliby

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autor: Cosimo Schinaia
Tradutores: Maria do Rosário Toschi e Francisco Degani
Editora: Edusp, São Paulo, 2015, 328 p.
Resenhado por: Ricardo Saliby

 

 

Cosimo Schinaia, psiquiatra e analista didata da Sociedade Psicanalítica Italiana, tem larga experiência clínica com pacientes portadores de graves distúrbios psicopatológicos. Suas reflexões são profícuas tanto pela riqueza dos elementos extraídos da prática clínica quanto pela relação do material com a história e com diversas criações culturais, como literatura, artes plásticas etc., o que resulta numa verdadeira expansão no modo de abordar as diversas facetas do mundo interno.

É o que se verifica no livro Pedofilia Pedofilias (publicado originalmente na Itália em 2001), fruto de um grupo de trabalho formado por analistas, psicoterapeutas de orientação psicanalítica e outros profissionais envolvidos no atendimento de pacientes pedófilos no Departamento de Saúde Mental de Gênova, do qual Schinaia é diretor. O grupo foi formado pela necessidade de criar um espaço de comunicação e reflexão sobre as intensas dificuldades e complexas emoções que surgem com frequência na relação clínica com pacientes pedófilos.

Paralelamente à discussão do material clínico, o grupo estabeleceu como objetivo o estudo do fenômeno da pedofilia sob múltiplos pontos de vista, como o sociológico, o histórico, o artístico, o literário e o mitológico. Tal pesquisa amplia de forma extraordinária a compreensão do fenômeno, tornando evidente a presença da pedofilia ou das fantasias correlatas nos vários territórios humanos. Vale sublinhar, no entanto, que o grupo reconheceu que a apresentação e a discussão dos elementos culturais poderiam afastá-lo de seu objetivo principal, a discussão clínica, funcionando como manifestações da resistência dos membros a experienciar as emoções suscitadas pelo material clínico.

Com efeito, a intenção primordial era a de examinar profundamente a pedofilia, com vistas a uma revisão dos conceitos a propósito dessa perversão. Transparece no livro o empenho dos envolvidos em estabelecer os diferentes quadros de pedofilia dentro de um amplo espectro, uma vez que a clínica aponta a inexistência de um padrão único para os pedófilos.

Já no início da obra, Schinaia reconhece com estranheza o fato de o tema da pedofilia estar ausente nos estudos psicanalíticos, ao passo que os textos sobre a perversão são abundantes e constantemente revisitados. De modo semelhante, nos meios de comunicação e em outros domínios, haveria um constante movimento entre o ocultamento e a demonização da pedofilia.

Certamente, o aporte psicanalítico, associado à atenção e à sensibilidade ao campo bipessoal, pode instituir um outro lugar nessa polaridade que impede o debate construtivo sobre a pedofilia. Tal possibilidade depende do reconhecimento do potencial de todo ser humano para corromper seus objetos de amor por meio da sedução, cuja raiz etimológica é a forma grega do verbo destruir (phteirein). Vejamos o que diz Schinaia sobre esse ponto:

Apesar de não sermos todos pedófilos, cada um de nós possui potencial para corromper seus objetos de amor, e é exatamente isso que os pedófilos tendem a fazer. Eles querem não apenas o corpo da criança, mas também sua alma, como sabemos por nossa experiência clínica. Mas sabemos também que somente se formos capazes de reconhecer nossas seduções infantis, nossas tentativas de corromper nossos objetos de amor poderemos perceber em nossa contratransferência os sentimentos do pedófilo, para então tentar reconhecer e compreender o confuso e desrespeitoso uso da linguagem infantil, a falta de respeito pela sua especificidade, a perversa tradução dessa linguagem em comportamentos que se tornam imediatamente violentos e obscenos. (p. 23)

Schinaia enfatiza os aspectos éticos e culturais que recaem pesadamente sobre a contratransferência como geradores de repulsa e distanciamento em relação à pedofilia. Apesar do reconhecimento dos riscos emocionais inerentes ao tratamento de um pedófilo, o autor insiste na necessidade de nos aventurarmos nesse campo, pois essa é a única maneira de conquistar algum conhecimento e criar alguma intervenção possível.

Se os estudos tendem a priorizar a vítima do abuso sexual e não aquele que comete o abuso, Cosimo Schinaia sabiamente lembra que a compreensão das raízes da pedofilia e do mundo interno do pedófilo pode proteger a criança na medida em que pode evitar recaídas no comportamento pedófilo. Se é assim, quais as razões da ausência de trabalhos com foco no abusador? Como se disse antes, os aspectos contratransferenciais invariavelmente produzem repulsa e distanciamento em relação à pedofilia, bloqueando a reflexão.

Os capítulos de Pedofilia Pedofilias se alternam entre a implícita autoria exclusiva de Schinaia e a explicitação da escrita em colaboração. No capítulo 1, sem menção a coautores, Schinaia analisa, sem perder de vista o vértice psicanalítico, os aspectos sociais e culturais da pedofilia. Reflete sobre a repercussão negativa da televisão sobre a família e sobre os indivíduos, salientando que a presença maciça e distorcida desse meio de comunicação afeta a distinção entre o real e o virtual e a discriminação entre o animado e o inanimado. A televisão produz esse impacto não apenas pela mensagem de violência, banalização dos laços humanos e da própria sexualidade, apresentada frequentemente de forma grosseira, mas ainda pelo que gera de vazio e distanciamento afetivo, ocasionando a ruptura da comunicação humana, essencial para a sobrevivência emocional do indivíduo e do grupo. A observação de bebês, lembra Schinaia, já permitiu a constatação das relações entre a depressão materna, o televisor ligado ininterruptamente e a passividade da criança. A televisão e instrumentos semelhantes, como o computador e video games, usados de maneira narcísica, favorecem a formação de refúgios autísticos.

Ainda nesse capítulo há uma extensa análise do discurso de alguns intelectuais que procuram legitimar a pedofilia por meio de racionalizações. Estes defendem a recusa de qualquer limite para o prazer sexual, afirmando que o impedimento do exercício do polimorfismo sexual nada mais é que hipocrisia social. Alegam ainda que o contato sexual com crianças tem um valor iniciático benéfico, desconsiderando todas as evidências dos imensos danos, não raro irreversíveis, para as vítimas. Schinaia toma como exemplo desse discurso Michel Foucault, que, ao lado dos colaboradores Danet e Hocquenghem, escreveu aquilo que pode ser considerado o manifesto do orgulho pedófilo, em defesa da descriminalização da pedofilia "doce", isto é, a suposta relação consensual entre o adulto e a criança. O autor salienta que não existe uma pedofilia boa ou má, sendo todas expressões de patologia, confusões, violência e destrutividade. Os intelectuais que lutam pelo reconhecimento da pedofilia e sua emancipação negam de modo perverso que a relação criança/adulto é por natureza assimétrica, ficando portanto longe da paridade inofensiva alegada por eles. O autor considera que a luta de grupos que reivindicam o reconhecimento social da pedofilia como uma simples variante da sexualidade humana e expressão de uma nova moral torna inacessíveis os sentimentos de culpa, retirando da representação da perversão a profunda problemática que ela encerra. A frequente evocação dos costumes da Grécia antiga pelos pedófilos faz parte desse mesmo mecanismo defensivo. Schinaia resume:

A resposta à argumentação pedófila deve ser a clara proposição da natureza do desejo infantil, sua gratuidade, sua linguagem específica, seu autônomo significado lúdico, que não pode entrar em choque numa relação sexual com um adulto, sob pena de desvitalizaçao do desejo infantil, a morte da confiança nos adultos que não entendem e não são capazes de traduzir a linguagem dos sentidos e dos sentimentos da criança, adaptando-a a sua própria linguagem passional. (p. 77)

O capítulo 2, escrito em colaboração com Clara Pitto, e o capítulo 3, em colaboração com Franca Pezzoni, tratam, respectivamente, da pedofilia nos mitos e nos contos populares. O eixo comum a ambos é a ideia de matriz freudiana de que os mitos, fábulas e lendas constituem os sonhos seculares de toda a humanidade. Os autores mostram como, em geral, a criança presente na mitologia e nos contos populares é só, sofre o abandono e é exposta a um conjunto de perigos, como o sacrifício, a morte, a devoração e a dilaceração.

Na mitologia grega, a pedofilia ganha duas representações. A primeira aparece na paixão de Zeus por Ganimedes, um garoto que será raptado e se tornará amante do deus. A outra representação contém aspectos de extrema violência, pois a criança é objeto do banquete sacrifical em que seu corpo é retalhado e oferecido aos deuses (conforme os mitos de Licaonte, Dionísio e Zagreu). Nïcolaïdis e Nïcolaïdis introduzem a ideia de que, no período da mitologia titânica, a pedofilia é representada como desejo antropofágico ou canibalístico (desejo de ter a criança dentro de si), enquanto no período olímpico a pedofilia propriamente dita surge mais claramente (desejo de ter a criança para si). Na modalidade olímpica, a pedofilia gira em torno da fantasia de sedução da criança por um adulto, e nesse contexto o rapto se faz presente. Uma vez seduzida e raptada, a criança está com seu destino selado. Será morta ou se tornará imortal, o que significa parar de crescer.

Nos contos populares, as fantasias pedófilas podem ser divididas esquematicamente em duas formas: explicitamente sexuais e orais incorporativas com maior ou menor nível de sadismo. Nos contos, a violência presente na perversão esconde-se por detrás de pseudoproteção e ternura. O elemento sádico acaba tomando a dianteira e culminando na destrutividade sádica. Os contos "Pele de Asno" e "Chapeuzinho Vermelho" são analisados de modo a salientar a presença da pedofilia de forma explícita e direta. Destaca-se ainda, a partir da análise de "Pele de Asno", um traço característico da personalidade pedófila: a habilidade para contaminar, alterar e manipular os argumentos, confundindo o certo e o errado, formulando artimanhas para demonstrar que a pedofilia contém vantagens não apenas para quem a pratica, mas igualmente em termos ideológicos, já que pressupõe uma ampla e irrestrita "liberdade".

O quarto capítulo procura apresentar a pedofilia na história, sem pretender ser exaustivo. Busca descrever por meio de "pinceladas impressionistas" a presença da pedofilia em determinados períodos históricos, como a Grécia clássica, a Idade Média, a Renascença, o final do século XIX e o início do século XX. De pronto o autor esclarece que a antiga Grécia não foi o "eldorado" da pedofilia e da pederastia. Tais comportamentos geravam intensos conflitos em termos tanto individuais quanto sociais. Baseando-se nos historiadores Ariès e DeMause, Schinaia destaca que a história da infância é marcada pela submissão e pela violência. Ao final desse capítulo, deparamo-nos com uma rica e interessante descrição da inserção da pedofilia no discurso médico e sua nomeação como perversão.

O quinto capítulo, em colaboração com Paolo F. Peloso, traça a evolução do conceito de pedofilia, desde o pensamento médico e psiquiátrico do século xix até as recentes formulações propostas pelos DSM-IV. Destaca a importante contribuição de Krafft-Ebing, que a partir de 1886 descreveu um grupo de perversões caracterizadas pela inclinação erótica pela infância, denominando esse quadro clínico pedofilia erótica. A obra de Krafft-Ebing, reelaborada em 1923 por Albert Mool, tinha como escopo central inserir as perversões sexuais no campo das patologias. Em consequência, as perversões saíram da área da justiça, migrando para a área médica e do tratamento.

No entanto, num determinado momento, a psiquiatria deixou de se interessar pela pedofilia, que passou a ser objeto de estudo da medicina forense e da criminologia. As décadas de 1950 e 60 foram marcadas pelo surgimento de modelos interpretativos e terapêuticos que, inspirados na fenomenologia e na psicanálise, se chocavam com as teorias que explicavam as perversões apoiando-se em ideias degeneracionistas ainda presentes em larga escala.

Quando a mídia passou a se interessar pelo tema, sobretudo por ocasião das denúncias sobre padres pedófilos, a pedofilia reconquistou um lugar de interesse científico com a inserção no DSM. Integrada no quadro geral das parafilias, não mais das perversões, foi excluída dos diagnósticos psiquiátricos, tal como ocorrera com a homossexualidade. Trata-se de uma alteração que recebeu apoio e ao mesmo tempo críticas. O termo parafilia foi considerado adequado, já que perversão traz consigo fortes preconceitos morais. Em contrapartida, o abandono da antiga denominação produziu um efeito negativo por "esvaziar a pedofilia de sua centralidade psiquiátrica em favor da deficiência referente ao funcionamento social do indivíduo" (p. 168). O texto discute as dificuldades para se encontrar uma definição única, abrangente e isenta dos conteúdos morais presentes na palavra pedofilia. Enfim, o valor semântico dos termos propostos no âmbito do DSM é posto em questão, com vistas a ponderar as limitações e as vantagens de cada um deles e verificar se eles esclarecem ou não os quadros clínicos na sua abrangência e sutilezas.

No sexto capítulo, o conceito de pedofilia é abordado do ângulo psicanalítico. Ainda que haja várias teorias sobre a perversão, é certo que elas se entrecruzam e gravitam em torno dos seguintes pontos: retardamento do desenvolvimento afetivo; repetição do trauma como tentativa de dominá-lo invertendo-se os papéis; evolução do sadismo para a agressividade destrutiva; natureza essencialmente narcísica das relações objetais. As ideias de Freud são apresentadas e discutidas, assim como as de outros autores, como Ferenczi, Masud Khan, Meyer e representantes da psicologia do self.

A perversão é vista por alguns autores (Glover, por exemplo) como um sistema defensivo contra angústias psicóticas. Outras linhas, baseadas em Masud Khan, enfatizam a teoria do trauma cumulativo, enquanto a de Kohut salienta que o ato perverso pode ser uma estratégia para restaurar um self violentado ou mutilado. Stoller trabalha com a hipótese de que a perversão é a forma erótica do ódio, sendo que o ato tem o significado de uma reedição do trauma com papéis trocados - onde havia uma criança submetida a um trauma, há agora um adulto triunfando.

As observações clínicas sugerem que tais teorias são incompletas, não dando conta da experiência, que demonstra o trânsito entre modalidades defensivas e restauradoras. A questão do trauma é central quando se quer alcançar um nível de compreensão sobre o mundo interno do pedófilo, e nesse ponto a posição do autor parece-nos mais rica e condizente com a prática clínica, pois reúne de forma dialética o trauma, a história e a estrutura psicopatológica em jogo. O elemento traumático na gênese da pedofilia nem sempre é percebido em sua direta conexão com a perversão, salienta De Masi, citado por Schinaia. Os autores recorrem aos mecanismos de cisão, ao papel da cena primária e à centralidade da angústia de castração para compreender o substrato da mente de um pedófilo. A sexualização, termo empregado por Betty Joseph para indicar um tipo de relação infértil e destrutiva que pode se apropriar da sexualidade criativa, colonizando-a, é também utilizada para a descrição e compreensão da perversão.

O capítulo tem o mérito de discutir a necessidade de diferenciar a perversão da perversidade. Do ponto de vista clínico, isso evitaria a utilização de um único termo para se referir a modos de funcionamento mental distintos. A perversidade sexual, próxima da psicose, é marcada pela violência pura e pelo domínio do mal, levando ao aniquilamento do outro. Já a perversão, ainda que tenha objetivos destrutivos, é definida como modalidade defensiva contra a angústia de castração ou angústia diante da perda do objeto, como no fetichismo, no masoquismo e no exibicionismo. O importante trabalho de D. Meltzer, Estados sexuais da mente, voltado para essa distinção entre perversão e perversidade, é mencionado. Porém, infelizmente, o pensamento de Meltzer não é apresentado em toda a sua extensão e profundidade.

O capítulo 7, em colaboração com Paolo F. Peloso e Giuseppina Tabò, apoiando-se no exame de obras literárias e no talento de escritores para descrever com argúcia psicológica as diversas facetas desse comportamento humano, procura extrair elementos para a construção de modelos ou paradigmas universais da pedofilia.

A pedofilia cortês é descrita a partir de Morte em Veneza, de Thomas Mann. Nessa obra, o intelectual Aschenbach se depara com uma profunda crise em sua criatividade. O personagem, instalado numa Veneza dominada pela atmosfera sombria de uma epidemia de cólera, apaixona-se pelo adolescente efébico Tadzio. A fim de escapar do tormento que o domina, ele procura atribuir nobreza ao seu intenso desejo pelo jovem remetendo-se ao filósofo Sócrates. Nesse caso, o objeto do desejo é mantido à distância. Aschenbach não chega a tocá-lo. Em todas as outras obras literárias discutidas, o ato pedófilo é atuado.

Da obra Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, extraiu-se o modelo do pedófilo imperial. Adriano relaciona-se com Antínoo como um imperador que reina sobre a criança, apropriando-se dela numa busca da beleza e das emoções ligadas ao prazer, sem qualquer reconhecimento da alteridade do outro. Ao perder Antínoo, que comete suicídio, Adriano se dá conta de nunca ter reconhecido a tristeza e a melancolia do jovem.

São analisados ainda Lolita de Vladimir Nabokov, Os demônios de Dostoiévski, Teresa Batista Cansada de Guerra de Jorge Amado, Lua cheia de Antonio Muñoz Molina, Gilles & Jeanne de Michel Tournier e Contos de Eva Luna de Isabel Allende. A partir dessas obras literárias discutem-se, respectivamente, a pedofilia infantil, a transgressiva, o ogro pedófilo, a pedofilia como revanche, a pedofilia sádica e o pedófilo como vítima.

O oitavo capítulo trata das especificidades da relação pedófila, em cuja base estaria, invariavelmente, o sadomasoquismo. Em acréscimo, o autor salienta, o pedófilo sustenta uma doutrina ideológica que considera lícitos e justos seus desejos e inclinações. O erro, segundo tal doutrina, pertenceria à sociedade, que não compreende a natureza desse amor, impedindo o adulto de usufruir da criança e privando a criança do amor do adulto.

A pedofilia apoia-se também na negação das diferenças entre as gerações e como consequência despreza o papel e a função dos pais. O pedófilo adere fortemente ao mito da eterna juventude, que idealiza o corpo e a beleza das crianças, tomados de forma absoluta, enquanto o corpo adulto deixa de existir ou torna-se repugnante. Na verdade, o pedófilo odeia o mundo adulto, refugiando-se no mundo infantil. Para ele, não existe desenvolvimento além da puberdade. Qualquer sinal somático indicativo de que o jovem entrou na fase adulta desperta a rejeição e o afastamento do pedófilo.

Dentro das especificidades da relação pedófila, o autor aponta ainda a assimetria, já que o adulto induz ou obriga a criança a ser cúmplice. A relação é essencialmente fechada e autorreferencial, e em seu interior se realiza o rito da violência e da subjugação, camuflado pela ubíqua sedução. O texto discute também a monotonia e o caráter repetitivo da relação pedófila, além do papel do olhar na pedofilia e sua relação com os mecanismos de incorporação e projeção, tendo como apoio as pinturas de Balthus e Caravaggio e os trabalhos fotográficos de Lewis Carroll e da fotógrafa Sally Mann, que retratava seus filhos despidos em posições provocantes.

Ausência de fantasia e drástica redução na função reflexiva que permite captar a natureza dos estados mentais de si e dos outros criam as condições para os enactments, podendo ainda afetar intensamente o campo analítico e a contratransferência.

O nono capítulo apresenta a discussão de um caso de pedofilia cujas características apontam para a existência de potencialidades terapêuticas, ainda que se constate a destrutividade sádica, o cinismo e o já mencionado apego do pedófilo à sua doutrina. Num determinado momento da análise, tal paciente passou a relatar sentimentos como vergonha, dor, medo e falta de autoestima, gerados pelo trauma vivido na infância. Essa experiência emocional abriu caminho para sentimentos depressivos, favorecendo a identificação do perpetrador com a vítima, não mais considerada como parceiro consciente da troca sexual.

O capítulo 10, em colaboração com Luisella Peretti, descreve outro caso de pedofilia, este com reduzidas possibilidades de alteração no quadro clínico. Em primeiro lugar, não há qualquer sinal de culpa. Ao contrário, o abuso e a assimetria da relação são negados por meio de extrema banalização do ato, com o pedófilo sustentando a ideologia perversa segundo a qual os jovens aderiram ao seu comportamento de forma voluntária. O quadro clínico em questão ilustra aquilo que os autores denominam perversidade pedófila, em que os aspectos sádicos prevalecem, dificultando ou até mesmo impedindo qualquer alteração no mundo psíquico do paciente.

O último capítulo, também em colaboração com Peretti, lança luz sobre o que esteve na origem da formação do grupo de trabalho, isto é, a necessidade de refletir sobre as dificuldades emocionais que aparecem na relação terapêutica com pacientes pedófilos. Os problemas surgidos no grupo empenhado em compreender o fenômeno da pedofilia são tratados abertamente. Schinaia e Peretti relatam que um conjunto complexo de emoções afetou de início os profissionais, o que se refletiu tanto na discussão em si quanto na relação entre eles. O tema despertava forte ambivalência, manifestada pela oscilação entre o desejo de compreender a pedofilia e a evitação fóbica, ou seja, a resistência a entrar em contato com o mundo interno do pedófilo. A tendência do grupo a se ater às discussões sobre a bibliografia, enfim, aos elementos mais intelectuais, em detrimento da abordagem do material clínico, a que já aludimos aqui, foi uma das manifestações dessa resistência. A tomada de consciência dos fatores que estavam criando obstáculos para a formação do grupo de trabalho permitiu a instauração de outro clima emocional, menos carregado de tensão, mais construtivo, o que culminou na colaboração para a escrita do livro.

Cabe uma palavra a respeito da interlocução do grupo italiano com o público e com especialistas brasileiros. É digna de nota a iniciativa de Schinaia de escrever um prefácio à edição brasileira, no qual ele menciona trabalhos de Luiz Meyer, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise e, aliás, autor do texto usado como apresentação do volume.

O lançamento de Pedofilia Pedofilias representa de fato uma novidade numa bibliografia ainda escassa. A riqueza do trabalho decorre não somente do extenso esforço de pesquisa em diversas áreas como também da exposição do material clínico e da sincera descrição das vicissitudes pelas quais o grupo passou ao se propor a estudar a pedofilia. É uma leitura indispensável tanto para aqueles que se envolvem diretamente no atendimento de casos dessa natureza quanto para psicanalistas, sociólogos e antropólogos.

 

 

Correspondência:
Ricardo Saliby
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