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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016

 

RESENHAS

 

De bebê a sujeito: a metologia IRDI nas creches

 

 

Mariana Peres Stucchi

Mestre pelo Departamento de Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e doutoranda em psicologia clínica pela Universidade Católica de Pernambuco

Correspondência

 

 

Organizadoras: Maria Cristina Kupfer, Leda Mariza F. Bernardino, Rosa Maria M. Mariotto
Editora: Escuta; Fapesp, São Paulo, 2014, 304 p.
Resenhado por: Mariana Peres Stucchi

 

 

Esse livro, composto por artigos de diferentes autores, trata de uma pesquisa realizada em creches municipais de diferentes estados brasileiros. Tal pesquisa visa dar apoio aos educadores e equipes das creches em sua função de subjetivação das crianças que passam na instituição boa parte das horas de seus dias. Por isso o título: De bebê a sujeito. Os artigos buscam mostrar, na teoria e na prática da pesquisa, que algumas pequenas intervenções com os educadores, na dinâmica com as crianças, podem ajudá-los a sair do cuidado objetivado de dar comida, dar banho e colocar pra dormir, para um olhar singular e de demanda para o bebê como alguém que pode dizer de si. Para isso, criou-se um instrumento, um questionário, levado aos educadores para começar a sensibilizá-los ou chamar sua atenção para alguns pontos da relação com as crianças.

Perguntas como: "O que a educadora deve fazer quando a criança chora?", "A criança vem brincar com o corpo da educadora?", elencando alternativas de múltipla escolha, procuram observar se as educadoras conseguem se colocar como cuidadoras de sujeitos com quem se relacionam ou se acabam se protegendo por discursos pedagógicos ou mesmo médicos. Essas problematizações muitas vezes já fazem as professoras pensar sobre sua atuação, imprimindo mudanças. Além disso, como relatado em alguns artigos do livro, a presença dos estagiários que aplicam a pesquisa leva a interações destes com as crianças e observações sobre as relações que acompanham (por exemplo: "Veja como essa bebê te olha sorrindo!"). Essas interações e intervenções trazem novos elementos às dinâmicas das relações.

O ponto fundamental é compreender que a creche é um importante espaço de subjetivação, já que as crianças passam muito tempo ali. Sendo assim, em vez de culpabilizar as famílias por características das crianças, o objetivo é fortalecer os educadores em sua possibilidade de perceber as necessidades de cada criança e auxiliá-la nos diferentes momentos de seu desenvolvimento. Não enxergar o educador como um terapeuta, mas entender que sua função comporta um olhar que pode dar status de sujeito aos bebês, dar voz; não deixá-los cair no lugar daquele que não come, aquele que chora demais, aquele que é filho da mulher que faz isso ou aquilo, etc.

A pesquisa foi realizada por uma equipe bastante experiente, que trabalha há mais de vinte anos com educação terapêutica. Essa experiência começou em laboratório do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: o Lugar de Vida,1 que em 2007 se tornou uma associação sem fins lucrativos. Ainda vinculada à universidade, mas com sede externa, oferece cursos, palestras, atendimento a crianças com transtornos globais do desenvolvimento e a seus pais e familiares, e trabalho direto com as escolas em que as crianças atendidas estudam. Transtornos do desenvolvimento infantil parecem ser cada vez mais presentes em nosso cotidiano. O autismo, cuja origem ainda é bastante controversa, é diagnóstico muito frequente. O Lugar de Vida criou indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil (IRDI) que apontam características das crianças que podem assinalar alguma dificuldade maior no desenvolvimento de acordo com a idade - trocas de olhar, demandas ao outro, adaptação à creche, etc. -, além de dar atenção a como o cuidador de referência responde às solicitações da criança - de forma mais mecânica ou buscando entender o que ela necessita. São alguns exemplos do que esses indicadores focalizam.

Para quem estuda psicanálise, base teórica dessa equipe, falar em indicadores de risco para o desenvolvimento é algo bastante complicado, uma vez que se compreende que cada criança fará seu processo e trajeto de desenvolvimento, que ele não é linear e nem determinado. Os entrelaçamentos de experiências, de registros e elaborações que a criança realiza não são previsíveis e há risco de criar estigma ao apontar um indicador de problema. Desse modo, a metodologia em si carrega uma grande polêmica, que é a possibilidade ou não de prevenir transtornos psíquicos, mas se constrói a partir da noção de que o bebê precisa ser solicitado como sujeito falante e singular para que sua constituição psicossomática possa acontecer - algo que dentro de instituições que cuidam de diversas crianças pode deixar de ser feito.

Indicar riscos pode levar a outros caminhos de experiências, novas formas de os adultos se relacionarem com as crianças, e não se sabe os efeitos que isso pode gerar. A psicanálise compreende que o psiquismo se constrói na relação com o outro, primordialmente o primeiro cuidador de referência, mas também com outros que estão em suas relações. Compreende ainda que o inconsciente é atemporal e não segue as leis da lógica formal. Como saber que caminhos as intervenções podem tomar, não apenas no inconsciente infantil, mas também no de cada um dos educadores?

Portanto, é uma proposta bastante ousada.

Por outro lado, é uma tentativa, baseada em anos de experiência, de minimizar as dificuldades de desenvolvimento, para que elas não o paralisem; de fazer que as crianças sejam olhadas como sujeitos de necessidades, e não como herdeiras de problemas da família; de levar o desenvolvimento a ser entendido como processo não linear, com idas e vindas, que pode ser estimulado em diferentes direções - tudo isso para não abandonar as crianças a si mesmas, mas compreender que elas são responsabilidade de todos e que sua saúde psíquica está também no âmbito da educação infantil.

O histórico da pesquisa por indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil, que visava dar suporte inicialmente apenas à atuação de pediatras, está na apresentação desse volume, mostrando o caminho que estimulou a introdução da metodologia em algumas creches públicas do Brasil, uma alternativa de trabalho que pode ser muito positiva.

Os autores parecem se preocupar com as questões antes apontadas, embora não as abordem aprofundadamente. Trazem discussões sobre como compreendem a função dos educadores e a possibilidade de pensar a prevenção em psicanálise.

Joyce Fukuda, em um de seus textos no livro, chama a atenção para a intervenção com cuidadores que leva um saber em nome do "bem", isto é, que instrui, que quer ensinar como cuidar. Esse tipo de intervenção pode distanciar pais e responsáveis do contato com a singularidade daquele bebê. O cuidador corre o risco de ficar preso às orientações e não conseguir se conectar com as necessidades específicas de cada criança:

Nesses casos, o conhecimento do profissional de saúde, em vez de fomentar o processo de desenvolvimento do bebê, pode funcionar como obnubilador do olhar dos pais ou cuidadores sobre o que emerge do pequeno ser, e então concorrer para a produção de efeitos nefastos. (p. 28)

Sendo assim, podemos refletir que o objetivo não é a mãe perfeita, o educador perfeito ou a criança perfeita, mas avançar criticamente na compreensão sobre a concepção de sujeito e de ser humano que a sociedade criou. Ou seja, ter a cautela de sempre lembrar que não há um modelo de desenvolvimento e de criança, que cada um tem muito a ensinar com suas particularidades, o que pode levar a valorizar a rede de cuidadores - pais, avós, familiares, creche, comunidade, etc. - que permite o desenvolvimento.

Grande desafio.

Pensar a metodologia como prevenção em saúde, como trabalham alguns autores, pode dar maior visibilidade à proposta, mas me parece que a metodologia está muito mais para uma intervenção precoce. A partir da prática de décadas no tratamento de crianças com transtornos globais do desenvolvimento, esses profissionais, apoiados numa produção psicanalítica que vai de Freud a autores atuais, puderam pensar em alguns pontos principais (indicadores de risco) que falam da relação entre o bebê e o outro - espaço e tempo em que a subjetivação vai se constituindo. Esses pontos serão uma referência para o psicanalista (no caso, os estagiários que aplicavam os questionários) que intervém na relação educador-bebê/criança, e não um modelo a ser seguido pelo educador. Ou seja, a intervenção se dá na relação e é feita por um profissional externo: atuação que busca facilitar uma relação. Mas dizer que há algo que levará a um problema ou que este estará prevenido estabelece causalidade e determinação - concepções não psicanalíticas a meu ver.

A discussão sobre tornar essa metodologia uma política pública dentro da educação infantil está no quarto, quinto e sexto artigos. Para quem, como eu, trabalha com o referencial psicanalítico, é coerente e interessante pensar na possibilidade, mas isso não significa imaginar um Brasil psicanalista! Como uma metodologia com base teórica tão específica pode se tornar política pública?

Mais uma vez ressalto as ideias de Fukuda, que em outro capítulo faz uma reflexão cuidadosa sobre essa possibilidade. Quando, porém, costura sua crítica sobre o discurso científico que se descola do enunciador e se torna uma verdade -sendo repetido sem qualquer responsabilização por quem o repete ou por quem o construiu -, parece deixar de lado a psicanálise, que muitas vezes é conduzida dessa maneira. A formação psicanalítica exige a metabolização de conceitos e experiências, à qual muitos não se dispõem, embora se digam psicanalistas. E a crítica à psicanálise também é feita, muitas vezes, por quem não se aproximou o suficiente por ter outras formas de compreender o mundo.

Uma crítica importante que Fukuda traz nas palavras de Lebrun é a de que há pretensão de universalização de um saber que possa ser aplicado a todos, sem levar em conta a singularidade, o que "nos impulsiona a cada vez menos aceitar as diferenças" (p. 67). Se assim é, como vamos construir uma política pública baseada na psicanálise?

O quarto e quinto capítulos, de Fukuda e Armiliato, respectivamente, mostram o quanto a teoria psicanalítica não foi construída à revelia do social, mas sim percebendo a imbricação entre eu e outro e um e sociedade. Apontam como essa noção fica clara inclusive na obra de Freud. Portanto, há como trabalhar com a psicanálise no campo do social, mas o salto para a política pública pode ser uma universalização delicada.

Mergulhar na leitura do livro que propõe e introduz a metodologia IRDI na educação infantil é sonhar com um mundo em que as pessoas, em geral, se olhem com mais respeito e se considerem umas às outras como sujeito, algo que não depende da psicanálise, mas que é, nesse caso, construído a partir dessa concepção de homem e de mundo. Com isso quero dizer que vejo uma grande produção e conquistas reais desse trabalho, que nos ajuda a valorizar o sujeito em sua alteridade, ou seja, inserido no coletivo, e entendo que essa inserção precisa ser extremamente cuidadosa. No entanto, um questionamento bastante objetivo precisaria ser feito: haveria chance de contratação de psicanalistas para as creches públicas? Prefeituras teriam verba, e psicanalistas aceitariam o salário?

O texto de Ilana Joveleviths, "Uma leitura reichiana acerca da utilização do protocolo IRDI nos centros de educação infantil", nos convida a brincar com esse sonho. Não fala dos psicanalistas, mas da visão de educação de Reich, num esforço de discutir uma sociedade na qual não vivemos - portanto, não se sabe se ela é factível ou mesmo se iria agradar caso se estabelecesse. Mas vale pensar nessa possibilidade de reconstrução da sociedade, em que as creches poderiam tornar-se "um espaço mais livre, permeado por vínculos afetivos autênticos e que desse lugar ao exercício da espontaneidade e criatividade dos bebês" (p. 108). A própria autora aponta a crítica que psicanalistas fazem a isso, uma vez que vínculo afetivo autêntico já existe - afinal, toda a trama afetiva que se configura entre inconscientes e instituições é autêntica; está ali, acontecendo na vida. E criar mecanismos para facilitar o desenvolvimento de bebês e crianças na educação pública também não é sonhar com um espaço como o que Joveleviths traduz de Reich (com vínculos de qualidade, no sentido de reconhecimento da alteridade)?

Os demais capítulos, da segunda parte do livro, entram na relação educador-criança e trazem exemplos da prática que sustenta a metodologia, mostrando as repercussões significativas de (re)descobertas das educadoras acerca das crianças e também acerca delas mesmas. Uma simples brincadeira da pesquisadora com uma criança pouco olhada pelos educadores ("É difícil gostar dele") indicou a capacidade da criança em responder à demanda de contato e comunicação, aos poucos despertando o interesse de todos em fazer o mesmo:

Assim, a circulação da palavra norteada pela escuta psicanalítica pode promover o surgimento do sujeito bebê como único e não um sujeito coletivo e também o aparecimento do sujeito educadora que pode se apropriar de seus próprios saberes podendo se desprender um pouco da pedagogização. (Wakamatsu & Mariotto, p. 296)

Um ponto que gostaria de ressaltar é a noção de holding do holding, de Boukobza (citada no texto de Menezes e Moratti). É uma construção fundamental para profissionais que trabalham com bebês. Estes mobilizam questões inconscientes nos adultos que deles se ocupam, que por sua vez ainda devem ter em mente uma série de pontos profissionais que perpassam essa relação. Quer dizer, não são mães e pais, mas atuam facilitando a continuidade das funções materna e paterna (Kupfer, Bernardino & Mariotto, p. 18). Como aponta Guerra (2013), as educadoras necessitam de formação específica para trabalhar na educação infantil, mas, além disso, é necessário que tenham uma "disposição mental (afetiva) especial" (p. 38), referente às suas experiências de terem sido cuidadas na infância.

Alguns textos do livro, como o de Paula Fonseca, remetem à importância de o educador saber que está integralmente envolvido em seu fazer - algo fundamental para poder refletir sobre sua prática. Não entender que as questões que a criança traz estão apenas nela ou em sua família, mas integrar a creche e os educadores nesse panorama. Não para culpabilizar, mas compreendendo a complexidade da constituição dos sujeitos e a importância desse espaço de convivência e subjetivação.

Essa difícil função, que se dá então entre pedagogização e amor, entre público e privado, entre eu e outro, se desenvolve a partir do registro narcísico, como indicam Bridon e Kupfer (p. 172). Numa importante reflexão sobre a diferenciação entre a função da educadora da creche e a da mãe, as autoras apontam que a educadora deve libidinizar em seus cuidados - com a voz, o olhar -, mas investindo no bebê através de um ideal profissional, não filiatório. Assim, ela não ocupa o lugar da mãe, e sim o de alguém que pode se ver ao lado da mãe no processo de subjetivação.

É, portanto, um livro rico e instigante, por todas as ideias que trata com rigor e preocupação com o desenvolvimento infantil. Entusiasma pelas possibilidades que apresenta, que com certeza são de grande valia para a reflexão de todos os que trabalham na área, mesmo que não vejam o humano psicanaliticamente.

 

Nota

1 Cf.: www.lugardevida.com.br.

 

Referências

Guerra, V. (2013). A ética dos cuidados: o complexo do arcaico e a estética da subjetivação. In I. K. Marin & R. O. Aragão, Do que fala o corpo do bebê (pp. 37-48). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Mariana Peres Stucchi
Rua José Alfredo Nobrega, 173, ap. 302
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