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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Silvana Rea

Editora

 

 

Ao final do documentário Allende, meu avô Allende, a diretora Marcia Tambutti Allende (2015) diz que percebeu que foram as dúvidas e questionamentos sobre os fatos que marcaram a história de sua família e a de seu país que romperam com o silêncio doloroso que envolvia a todos. A recusa em falar, que os protegia de lembranças traumáticas, também os impedia de uma proximidade afetiva. Com o seu filme, ela conta, conseguiu fazê-los ir além - como indica a palavra Allende; conseguiu abrir uma comunicação entre eles que não fora alcançada até então. Pois o silêncio simultaneamente escavou e denunciou o fosso da recusa de um sentido insuportável.

De fato, o historiador Michael Pollak (1989), em seu estudo com sobreviventes de campos de concentração stalinistas e nazistas, mostra que o silêncio sobre o passado não conduz ao esquecimento. Pelo contrário, ele mantém a resistência da sociedade civil contra o discurso oficial. Mas, como são vivências “indizíveis”, elas se organizam em uma zona de sombra, de não ditos, de alusões e metáforas que são moldadas pela angústia de não encontrar uma escuta.

Fundamental, portanto, a escuta do silêncio. Para isso, o analista primeiramente silencia sobre si mesmo. Pano de fundo sobre o qual o paciente pode tecer seu tecido projetivo e transferencial, o silêncio do analista “seria quase um a priori da interpretação” (Green, 1979, p. 10). Ele tem função estruturante e é parte fundamental do enquadre. Acolhe e convida à abertura aos processos do funcionamento inconsciente. E muitas vezes funciona como ato interpretativo.

Não é à toa que, em 1893, Emmy von N. pede a Freud (1969a) que se cale e a deixe falar sem perguntas ou interrupções.

Experiência cada vez mais rara para o homem contemporâneo e tema pouco abordado na literatura psicanalítica, o silêncio do paciente por vezes é entendido como defesa ou resistência à regra fundamental. Mas também pode ser o momento de espera do que está por vir. E há o silêncio do luto, do autismo, do paciente em elaboração - este, compartilhado com o analista.

Portanto, há silêncios e silêncios. Como nos indica Barthes (2003) sobre a diferença entre tacere, silêncio da fala, e silere, silêncio da natureza e de divindade. Enquanto o primeiro está ligado ao problema do poder, como o direito à palavra e o direito ao calar-se, o segundo evoca metáforas como o ovo que ainda não chocou, a lua em declínio...

E há o silêncio do não dito, sobre o qual se prefere calar, e aquele sobre o que não se sabe, o recalcado. Há o silêncio do vazio de representação, da impossibilidade de estabelecer relações (Green, 2008). A figura shakespeariana da “silenciosa Deusa da Morte”, citada por Freud (1913/1969, p. 379), e o mutismo inerte da pulsão de morte.

Por outro lado, soberano o direito do paciente de não se comunicar. O silêncio aqui como parte fundamental do processo de aquisição da capacidade de estar só e que merece ser respeitado pelo analista. Em espera para que o paciente “descubra criativamente” aquilo que o analista poderia apressadamente interpretar (Winnicott, 1963/1990, p. 172).

É essa a proposta deste número da Revista Brasileira de Psicanálise: uma reflexão sobre o silêncio em seus diversos sentidos, na fala de nossos colaboradores.

 

Referências

Allende, M. T. ( Dir.). (2015). Allende, mi abuelo Allende [Documentário], Chile: Errante.         [ Links ]

Barthes, R. (2003). O neutro (I. C. Benedetti, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 2, pp. 13-370). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). O tema dos très escrinios. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 365-382). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Editorial

Green, A. (1979). Le silence du psychanalyste. Topique, 23,5-25.         [ Links ]

Green, A. (2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea (A. M. R. Rivarola et al., Trads.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3),3-15.         [ Links ]

Winnicott, D. (1990). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. G. S. Ortiz, Trad., pp. 163-174). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963)        [ Links ]

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