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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo Sept./Dec. 2016

 

EM PAUTA

 

O silêncio e a bruxa

 

The silence and the witch

 

El silencio y la bruja

 

 

Orlando Hardt Jr.

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe que um tipo específico de silêncio do analisando funcionaria como uma metonímia, ou seja, um elemento semântico seria substituído por outro, que tem uma relação objetiva de continuidade material ou conceitual com o conteúdo pensado. Foram retomados alguns conceitos de textos pré-psicanalíticos (Sobre a concepção das afasias), do Projeto de uma psicologia e de A interpretação dos sonhos, além de conceitos como representação de coisa, representação de palavra, recalque, condensação e deslocamento.

Palavras-chave: silêncio; metapsicologia; metonímia.


ABSTRACT

This paper proposes that a specific kind of analysand's silence would work as a metonymy, that is, a semantic element would be replaced by another, which has an objective relation of material or conceptual continuity with the thought content. In this paper, the author resumes some concepts from pre-psychoanalytic writings (On the conception of the aphasias), Project for a scientific psychology, and The interpretation of dreams, as well as other concepts such as representation of the thing, representation of the word, repression, condensation, and displacement.

Keywords: silence; metapsychology; metonymy.


RESUMEN

El artículo propone que un tipo específico de silencio del analizado funcionaría como una metonimia, es decir, un elemento semántico sería sustituido por otro, que tiene una relación objetiva de continuidad material o conceptual con el contenido pensado. Fueron retomados algunos conceptos de textos pre psicoanalíticos (Sobre la concepción de las afasias), del Proyecto de una psicología y de La interpretación de los sueños, además de conceptos como representación de cosa, representación de palabra, represión, condensación y desplazamiento.

Palabras clave: silencio; metapsicología; metonimia.


 

 

1

Clínica

Rose permaneceu em analise por oito anos.

Cientista, uma mulher viva, com muitos recursos e problemas de timidez e insegurança, procurou análise para entender suas desventuras com a mãe e o marido. Trabalhava com satélites e pouco falava de seu trabalho. Era algo sigiloso. Disse-me que, por mais que tentemos, não conseguimos entender o silêncio.

No último ano de análise, ficou extremante silenciosa em algumas sessões. Depois desse fato, ela mudou muito. Foi sua marcante mudança após o episódio de silêncio que me deteve nesse tema.

Quase no final de uma sessão, após seu longo silêncio, perguntei-lhe onde ela teria estado naquele momento, ao que respondeu:

Pareceu-me ter estado em uma câmara anecoica.1 Em testes para satélites, usamos esse local para saber como esse instrumento se comportará no espaço, no vácuo, no silêncio. Para fins de engenharia aeroespacial, é necessária uma situação tão silenciosa quanto possível. Dada vez, trabalhando na câmara anecoica, ouvi dois tipos de sons: um alto e outro grave. Quando descrevi para o encarregado os dois sons que escutara, ele me informou que o ruído alto era da minha mente funcionando e o grave seria o sangue circulando. O silêncio é um mistério...

Voltou a ficar silenciosa. Fiquei pensando o que dizer a ela, mas nada me ocorreu, e a sessão terminou ali.

 

2

Este texto seria mais uma especulação e alguma síntese sobre um tipo específico de silêncio que ocorre em sessões de análise, não por parte do analista, mas por parte do analisando. Utilizo fontes que continuam a nos servir como referências para refletir sobre esse assunto.

Inicialmente, podemos pensar que a noção de silêncio é conceitualmente multíplice: silêncio é plural em vez de singular. Entretanto, suas várias modalidades são díspares; a todas não se aplicam uma ordem ou uma duração que revele relações variáveis, seja em condições linguísticas, seja em estados vividos em intimidade. O silêncio é fugaz, invisível, muito menos transparente que a linguagem. Ainda assim, foi possível apreender esse fator extraverbal da situação analítica, um tipo de silêncio de abertura do inconsciente.

Existem amplos sentidos no silêncio. No entanto, para este texto, neste momento, não nos ocuparemos do sentido mais simples do tema - o não dizer, o calar, o mutismo -, mas de uma determinada qualidade do silêncio da tranquilidade, altamente denso pela concentração de energia, uma dimensão do silêncio que remete ao mais profundo desse sentido, pois o silêncio antecede a formação da palavra, é sem dúvida, ontogenética e filogeneticamente, mais antigo do que ela. É possível supor que esse silêncio seja mais poderoso que palavras, porque funciona com tal concentração de significados que, no ponto em que a palavra não funcionaria, ele seria eficaz. Kandinsky refere que a noção de ponto geométrico forneceria a concisa imagem de um tipo de silêncio que “é altamente denso pela grande concentração de energia” (citado por Bruno, 1992, p. 127).

Muitas vezes, não suportamos o silêncio, a mudez, ou o controle da ordem que sempre se instala a partir do peremptório pedido de silêncio a outrem, da retirada da palavra do outro. A linguagem “produz a sedentarização dos sentidos, as palavras representam já uma disciplinarização da significação 'selvagem' do silêncio” (Orlandi, 2007, p. 54).

Neste trabalho, não associei o onipotente silenciar com aquilo que percebi na paciente, que seria uma forma comum, na situação analítica, de resistência, ou de anuência. Esse silêncio que menciono é o mais sutil dos dois apoios que funcionam como alavanca da análise: o silêncio e a interpretação. Se a interpretação é a palavra enunciada, esse silêncio específico poderia ser a palavra interior a exprimir a densa e compacta estrutura do inconsciente.

Esse tipo de silêncio tem uma especificidade que entendo não como um complemento da fala, mas como outro valor próprio, como um instrumento modificador da paciente após aquela sessão.

A cultura ocidental reitera uma relação silêncio/nada, silêncio/morte, mas há uma outra concepção do silêncio com a qual contamos, uma elipse existente nesse assunto, e foi nessa direção, de afastar o silêncio da linguagem verbal e de nos aproximarmos dessa elipse, que desenvolvemos este trabalho, assentando-o sobre um “silêncio-sonho”.

A linguagem é constituída para a identidade, coerência e unicidade, mas uma vez presente esse silêncio também modifica e transforma o mundo mental do indivíduo.

Há milhões de anos atrás, depois que os hominídeos alcançaram o domínio da arte de ler a mente dos seus congêneres, os humanos aprenderam a ler a mente da natureza, que se tornou transparente para seus olhos. A cabeça de uma águia traz orgulho e ferocidade, disseram; cada espécie seu caráter. O grande arco natural de pedra se converteu na ponte de gigantes de lenda. Outras formas da paisagem sugeriam animais míticos petrificados para sempre e companheiros eternos do homem: povoadores de seu próprio mundo, até o céu estrelado era um grande afresco cheio de histórias. E o homem aprendeu a contá-las e a transmiti-las, junto do fogo, de uma geração para outra, que escutava em silêncio. Passou a reproduzi-las nas paredes de cavernas ou rochas ao ar livre. Algo tinha mudado para sempre no planeta, aqueles humanos que aprenderam pela primeira vez a escutar em silêncio a história da natureza éramos nós. (Arsuaga, 2005, p. 298)

Somos feitos de silêncios.

 

3

Foi a falta da palavra ou ela fora do lugar que interrogou Freud; foi assim que ele iniciou, com Sobre a concepção das afasias (1891/2014), os estudos que o levaram à psicanálise.

A “Carta 52” (Masson, 1986),2 endereçada a Fliess, detalha que Freud trabalhava com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico teria se formado por um processo de estratificação sucessiva, pois de tempos em tempos o material, sob a forma de traços mnêmicos, experimenta um reordenamento segundo novos nexos, uma retranscrição (Umschrift).

Claro que o silêncio nunca seria algum tipo de afasia. Tampouco o relacionaríamos como alguma das relações recíprocas entre os diferentes centros responsáveis pela linguagem, mas as perspectivas das elaborações freudianas nessa área podem ser úteis para inicialmente pensarmos sobre a gênese do silêncio, pois acreditamos que esse estudo sobre as afasias contém antecipações de ideias inaugurais que nos ajudam na compreensão da psicanálise. Freud não contrapôs neurologia a linguística, não deve ter sido esse seu intento, mas suas ideias desse período foram ricas para a psicanálise.

"As representações de palavra são introduzidas numa concepção que liga a verbalização e a tomada de consciência" (Laplanche & Pontalis, 1967/1998, p. 583). Em Projeto de uma psicologia (195o[1895]/1995), Freud afirma que uma imagem verbal associada à imagem mnésica poderia adquirir maior índice de qualidade específica na consciência.

Penso que inicialmente o silêncio já estaria presente nesses reordenamentos que sucedem nessa conciliação entre memória e percepção, mas para isso seria importante retomarmos elementos como representação e recalque, pois foi assim que Freud recusou a concepção de que uma representação seria algo mecânico e estimulado externamente, e formulou a ideia de que o processo psíquico seria um fenômeno fisiológico. Para Freud, o papel psicológico seria paralelo ao fisiológico, nunca um fenômeno secundário. Uma representação nunca seria um neurônio, mas algo decorrente da natureza de algum processo.

No início de Sobre a concepção das afasias, Freud introduz o conceito de Spracheapparat, ou aparelho de linguagem. Esse conceito significou algo tão diferente do aparelho neuroanatômico de Wernicke, que um comentador chegou a dizer que “Freud faz linguística e, em bastantes aspectos, muito para além da posição de Jakobson” (Verdiglione, 1977, citado por Garcia-Roza, 1991, p. 28).

Esse recurso a conceitos iniciais de Freud para refletir sobre o silêncio tem como alvo pensar como ele concebeu essa ideia de um aparelho de linguagem que nos coloca perante outro aparelho de linguagem, que nos apresentará ao registro das trocas simbólicas.

Quatro anos depois, Freud retoma o tema da associação da fala, não mais se ocupando de um aparelho de linguagem, mas definindo dentro do aparelho psíquico o papel da linguagem articulado com o pensar.

Freud conseguiu a proeza de conciliar, em um mesmo aparelho, memória e percepção: na primeira, existe persistência; na segunda, a necessidade de uma superfície receptiva aos novos estímulos, que responda a eles.

Também na “Carta 52”, Freud introduziu outros elementos que modificaram a concepção de memória: inscrição, signo e transcrição. Esses elementos estão mais próximos da linguagem falada do que de neurônios. Em Sobre a concepção das afasias, Freud descreve o aparelho de linguagem como uma trama em que se dariam as representações e associações: representação-palavra, que inclui, associadas, a imagem da escrita e da leitura, a imagem acústica e a imagem motora. A palavra seria essa complexa representação que se compõe de partes acústicas, visuais e cinestésicas, que também se articulariam à representação-objeto, sendo que daí ela retiraria seu significado. Mais tarde, em Projeto de uma psicologia, Freud expande o papel da linguagem em sua articulação com o pensar.

Teria havido no interior do silêncio de Rose algum novo enlace/desenlace entre a representação-palavra e a representação-objeto? Assim o real se tornaria possível, propiciando ao sujeito silente novos entendimentos?

 

4

Na sessão subsequente, Rose falou que nosso encontro anterior tinha sido “muito interessante e produtivo”, que descobrira “um sentido muito grande” para si “naquele silêncio” da sessão da véspera.

Há a suposição de que a unidade de uma fala estaria apoiada na complexa arte do falar bem, evitando-se o silêncio para que um sentido maior possa ser percebido. Nós psicanalistas, contudo, nos deparamos seguidamente com um tipo de silêncio que opera melhor que palavras. Creio que, ao falar com o analisando, estamos na verdade tentando entender esse silêncio que apenas vislumbramos. Talvez o silenciar tenha sido o batente para a fala de Rose, e esta foi criada para retê-lo. Foi tentando compreender melhor a relevância desse aspecto do não dito naquela sessão que a investigação desse tipo de silêncio foi se constituindo interessante.

Concordei com ela, e concluímos que existe uma dimensão do silêncio que funciona como o cerne do funcionamento mental, que só é percebido indiretamente; que a maior dificuldade em colocar a questão desse silêncio seria a necessidade de uma ruptura, como aconteceu ali com ela.

Rose disse que uma ruptura teria se dado quando o silêncio rompeu com o sentido da palavra, quando o não dito atingiu seu maior significado, alcançando uma região onde reinariam outras “compreensões”. O modo de funcionamento do silêncio tornou sua mente capaz de multiplicar sentidos. A experiência na câmara anecoica teria se repetido na sessão em que, ficando realmente silenciosa, entendeu aspectos relevantes sobre si. Numa conversa com um colega, este me apontou que a situação analítica fora outra câmara anecoica para Rose.

Pergunto-me se esse silêncio de Rose introduziu a percepção interna de sensações de processos ocorridos em camadas mais profundas do aparelho psíquico dela. O silenciar dela operou como triunfo da energia mental pura ou lúcida?

S. Nacht (1962/1967, citado por G. Katz, S. Katz, Ramos, Pinheiro & Silva, 1994) tratou esse tipo de silêncio como uma experiência integradora, compartilhada por paciente e terapeuta; definiu essa comunicação não verbal como representante da repetição da experiência, ou nova experiência, do estado fusional mãe/bebê - durante o silêncio, tal estado se pronunciaria em ambos da dupla.

Assim como acontece com o ego, suponho que o silêncio pode ser encarado como uma qualidade que se diferencia do inconsciente e, assim, passa a ser percebido como um estado mental com mais clareza. Onde havia o nonsense, ou muitos sentidos não apreensíveis, ou velamento, surge uma ordem.

Descrevo aqui algo novo para mim na concepção daquilo que venho pensando: o silêncio como constante, que ocorreria todo o tempo em nossa vida mental, mas de difícil acesso na maioria das vezes; se no transcorrer de uma sessão conseguimos essa conexão, muito bem, irrompe algo especial, percebemos a infraestrutura da atividade mental. Pouquíssimas vezes atingimos o real silêncio - algumas vezes, através de identificação projetiva do paciente, operando assim uma expansão do território explorado.

Creio que o mecanismo de recalque, considerado por Freud (1915/2010) como processo psíquico universal que está na constituição do inconsciente, também estaria presente na gênese do silêncio. Esse modelo teórico de recalcamento foi utilizado como um protótipo e também teria um papel importante nessa operação, pois na essência o silêncio consistiria apenas em tornar um fato que era mantido à distância do consciente mais próximo de ser apreendido.

Onde houve apenas e tão somente desorganização e dispersão, o caos do isso, uma organização teria tido lugar, e o silêncio também traria em si esse modelo organizacional de colocar as coisas nos devidos lugares, uma coalescência sobre o caos, algo que se constituiu nesse momento.

Essa é uma tênue ponte: a ideia de uma indiferenciação original que se transforma seria o protótipo de uma representação advinda de uma experiência primária de satisfação que pode ser utilizado aqui. Onde residia o caos, estado da mais pura dispersão, constituiu-se uma organização, e nesse momento teria havido uma experiência primária de satisfação patrocinada pelo silêncio. O silêncio transformaria o inconsciente em consciente, quando uma ideia está contida na representação da palavra. Tais representações de palavras são resíduos de recordações, foram antes percepções e, como todos os mnemônicos, podem voltar à consciência. Consideramos que esses resíduos mnemônicos estejam contidos de forma próxima ou adjacente ao sistema consciente.

 

5

A bruxa fala...

... intervindo por meios nem sempre claros, pela imaginação, que podem nos ajudar a dar um passo adiante, impedindo nossa paralisação. Ela diz que o homem escuta o mundo porque este não é mudo; se o mundo fala com ele através de suas plantas, rios, animais, o homem lhe responde mediante seu sonhar, sua imaginação, sua fabulosa linguagem articulada e também pelo silêncio, que permite manejar símbolos ou, dito de outro modo, contar histórias.

Determinado previamente que o nosso fio estaria na clínica, propomos compreender a situação analítica como pertencente ao âmbito da transformação de um aparelho psíquico em aparelho de linguagem, o que implica, de um lado, a escolha de uma comunicação verbal entre duas pessoas em primeiro plano e, de outro lado, a consideração de fatores extraverbais no enunciado. (Green, 2003, p. 479)

Green foi mais um estudioso a pensar o silêncio, que denominou fatores extraverbais. Segundo ele, significante seria um termo reservado para tudo aquilo que pode estar vinculado à linguagem, ao passo que o termo representação englobaria os modos não verbais da comunicação. Mais adiante nesse mesmo texto, Green afirma que fatores extraverbais seriam vias de sentido cujos efeitos se combinam com os da língua, donde a heterogeneidade do significante. O resultado dessa investigação é evidenciar certas estruturas constituintes do silêncio.

O silêncio seria uma estrutura enquadrante para o sujeito, quando e onde acontece a investidura do objeto. Quando examinamos tal silêncio, observamos um processo objetalizante, uma transformação de investimento significativo que enriquecerá o ego ao agregar entendimento.

O silêncio de Rose naquelas sessões possuía um sentido que ocupava um ponto estratégico na trama de sua psique e que foi por mim entendido e descrito em função de duas referências freudianas que compõem o aparelho psíquico: memória e linguagem.

Suponho que a incapacidade individual de perceber o silêncio estaria ligada às ansiedades e defesas, tanto de nossa parte como da parte do paciente. Um analista apropriado seria um elemento central para que o silêncio criado constitua uma via especial de acesso ao sentido - via que o analisando é incapaz de criar ou perceber por conta própria. Penso que o silêncio que percebemos seria apenas um pequeno aspecto de um gigantesco e cósmico processo contínuo, frequentemente não observável, como descrito posteriormente pela paciente. Para percebermos a dimensão real do silêncio não devemos considerá-lo negativamente em relação à palavra, mas considerá-lo como um significado, um sentido. Segundo Freud (1925/2011b), a negação seria o modo pelo qual tomamos conhecimento daquilo que foi intelectualmente reprimido, mas não tão efetivamente. O reconhecimento do material inconsciente por parte do ego sempre seria expresso pelo negativo. Tanto Green quanto Bion retomaram essa questão, demonstrando o potencial criativo da negatividade.

A negatividade em psicanálise, segundo Green, “reside nos efeitos decorrentes da não presença do objeto, que tanto pode gerar desprazer quanto mobilizar um aspecto de experiência positiva, seja a realização de um desejo ou produzir fantasias” (2010, p. 64).

Até aqui apenas determinações simples foram introduzidas, mas elas não encerram o sentido da minha busca por saber como surgiu o silêncio na sessão de Rose.

Nas últimas linhas de O eu e o id (Freud, 1923/2011a), lemos:

Poderiamos imaginar que o id se acha sob a dominação dos silenciosos, mas poderosos, instintos de morte, que querem ter paz e fazer calar Eros, o estraga sossegos, por instigação do principio do prazer; mas com isso tememos subestimar o papel de Eros. (p. 74)

Assim como os artistas sempre abordam a realidade psíquica através de metáforas, superando a restrição da linguagem, com o entretimento do silêncio um analista atingiria também o processo simbólico do pensamento e ampliaria o conhecimento do paciente, contando com essa força insuspeita que funcionaria como fator no estado descrito por Bion como mudança catastrófica. Podemos dizer do silêncio o mesmo que já se disse do vazio: ele é a potência da forma.

Pensei primariamente no silêncio como um componente da função alfa ou como parte desse conjunto ainda desconhecido das funções mentais que em conjunto transformam, segundo Bion, impressões sensoriais brutas que estariam relacionadas a uma experiência emocional. Essas impressões permanecem porque “a destruição da capacidade de assimilação das impressões sensoriais não prejudica a retenção das impressões sensoriais” (Bion, 2000, p. 168). A importância do silêncio estaria no poder de processar elementos beta em elementos alfa. O silêncio tem a capacidade de ligar, conectar, traduzir impressões não processadas em alguma coisa já experimentada, em elementos capazes de sinergia entre si no processo de pensar.

É o silêncio que ensina o homem a pensar, a dar um destino para suas vivências, que para ele muitas vezes são impensáveis, pelo fato de serem plenas ou prazerosas, tanto internas quanto provindas de fora.

Penso o silêncio como uma representação, uma estrutura psiquica desdobrada de uma formação intermediária do diálogo entre o corpo e o mundo. Por quê? Porque este diálogo é brutal, porque a luz do mundo ofusca, porque o corpo exige de forma tirânica, e se não dispuséssemos desta formação amortecedora dos choques, que é constituida pelo psiquismo inconsciente e pelo psiquismo consciente, ou por representações conscientes, ou por representações inconscientes, estaríamos ainda, provavelmente, num estádio pré-hominiano. (Green,1990, P. 59)

 

6

Conclusão, ou a fórmula do silêncio

O silêncio de Rose foi formulado pela bruxa metapsicológica. Nessa fórmula, teria rabo de lagartixa, pelos de gato preto e outros traços mnêmicos acrescentados de alguns dos mecanismos do sonho preconizados por Freud: condensação, deslocamento e simbolismo, que também entram no caldeirão. Mas o principal ingrediente seria a metonimia (proveniente do grego: “além do nome”). Muitas vezes, a metonímia é conhecida por transnominação, quando a relação, além de semelhanças, provê associações entre mais de cinco figuras de linguagem.

Foi desse modo que o silêncio substituto da fala da paciente manteve uma estrita afinidade e relação de sentido com as palavras. Rose usou o recurso da metonímia, em longos silêncios, para suprimir a repetição de suas falas. A maneira de perceber sua ideia foi o silenciar, quando sua sensibilidade estabeleceu a relação de semelhança entre elementos que os termos designaram pela relação de dependência entre eles. Houve assim uma relação de contiguidade entre o sentir de Rose e o sentido da fala substituída pelo seu silenciar. Esse fato teria ocorrido porque existiu uma relação de proximidade de sentidos que permitiu tal troca, decorrente de uma iminente necessidade da analisanda de dar maior ênfase à comunicação.

No nível linguístico, a metonímia tem uma função significante: uma parte é tomada por um todo.

Essa descrição não teria sido novidade para Freud ou Lacan. Para eles, metonímias e metáforas estão relacionadas aos mecanismos de condensação e deslocamento, ligadas à interpretação de sonhos; para Lacan, esses conceitos ultrapassam a categoria de retórica.

A aplicação da condensação ao silêncio poderia ser inferida, pois silêncio e sonho talvez sigam regras análogas, pelas origens latentes de ambos, regidos por mecanismos inconscientes, que também podem funcionar sobre um outro campo em nossas atividades intelectuais que envolve uma seleção subjetiva de dados.

Tentando acompanhar o trânsito desse silêncio, chegamos a um ponto em que, suponho que assim como o sonhar, o silenciar persiste e insiste em busca de expressão, pois o recalque não elimina a representação daquilo que prolifera; longe de estar morto, o inconsciente, segundo Freud, “é algo bem vivo, suscetível de desenvolvimento, e que mantém com o Pcs toda série de relações; entre outras a de cooperação” (citado por Garcia-Roza, 1995, p. 240).

Freud utilizou-se das expressões representação de coisa e representação de palavra para ter um alcance de distinção metapsicológica, e seria interessante observar que uma representação de palavra está associada a uma concepção ligada à verbalização e à tomada de consciência, ideia que nos permite entender a passagem do processo primário para o processo secundário.

O aparato psíquico captura e transforma a dispersão pulsional numa transformação (utilizando um termo especificamente bioniano) das pulsões segundo a ordem da linguagem.

O silêncio seria a representação de um pensamento recalcado que irrompe à consciência com uma condição: a suspensão da fala. O silêncio seria um modo de tomarmos consciência do recalcado. Pode ascender à consciência, mas permanece nele o essencial do recalcamento, o conteúdo negado da fala. Uma separação ocorreu, uma recusa (afetiva) da palavra e a aceitação intelectual do conteúdo. Dessa maneira, esse tipo específico de silêncio foi entendido primordialmente como uma simbolização anterior à aquisição da fala, um mecanismo que torna possível o aparelho de linguagem ser utilizado de uma outra forma: o silêncio permite que o aparelho de linguagem prescinda da referência de outro aparelho de linguagem para funcionar. Assim, as representações-objeto adquirem seu significado sem a representação-palavra.

Pacientes que usam o silêncio poderiam revelar a preponderância de imagens baseadas em experiências de estágios pré-genitais que estariam represadas (desejos edipianos).

O silêncio traz informações importantes, pois fusiona emoção e pensamento sem passar pela palavra.

Decifrar esse silêncio consistiu em chegar ao termo substituído, ou seja, ao referente que atendesse à dupla condição de ocupar a posição da fala que foi substituída, mas mantendo com ela uma relação de contiguidade. Essa decifração dependeu do contexto e era pertinente a ele. É muito simples reconhecer um silêncio, mas muito difícil dar a ele uma definição compreensiva. Dizer que isso se formou permutando a fala pelo silêncio é relevante, mas não o suficiente para gerar metonímias adequadas, pois nem toda parte que substitui a fala produz o efeito desejado.

Para o silêncio ser efetivo e bem-sucedido, algumas condições precisaram ser observadas: a princípio, o silêncio substituiu a fala e equivaleria à fala substituída, mas só a principio, pois grande parte dessa metonímia não se sobrepôs perfeitamente em significado às suas decifrações; o grande potencial modificador da fala relativo ao enunciado próprio decorre do fato de o silêncio ser hiperbólico.

Outras modificações presentes no silêncio seriam a redução, a ampliação dos espectros da fala, além de funções econômicas, pois suponho que o silêncio teria uma significação maior que o enunciado que Rose pretendia fazer; ele aumentaria a extensão sêmica da fala porque transferida valores semânticos de um local para outro, ocorrendo assim uma aceleração ou supressão de etapas do sentido.

Podemos pensar o silêncio como uma organização derivada do recalcado que teve a capacidade de transitar para o consciente altamente organizado, partindo de um investimento que lhe foi favorável, mas que custou alguma distorção: a perda da palavra falada. Se não fosse assim, não poderia iludir a censura para ter acesso ao Pcs/Cs. Isso também acontece com os atos falhos e os sonhos. De alguma forma, condições são criadas para que, livre de restrições impostas pelo Pcs/Cs, produza-se esse derivado do recalcado. Para finalizar, podemos pensar que a retranscrição (Umschrift) de traços mnêmicos, o reordenamento descrito na “Carta 52”, seguiu nesse caso o nexo de uma metonímia.

Freud tinha razão quando proferiu que linguagem é algo que se adquire, o aparelho de linguagem é algo que se constrói.

Pretendi descrever a ideia de que, sob o ponto de vista funcional, esse silêncio trouxe em si a marca inequívoca de Freud: uma força recalcada que se esforçaria para abrir caminho até poder entrar em atividade, mas que seria controlada por uma força que a recalca, sob um ponto de vista estrutural, como o inconsciente sofrendo a oposição do ego (Freud, 1923/2011a).

O interesse maior deste trabalho foi assentado na noção de silêncio: um texto que não é feito de palavras, mas de imagens; que não é estruturado como linguagem. O silêncio seria um texto com gramática própria que precisa de um decifrador para ser captado, o próprio sujeito silencioso. O silêncio não é um sonho, mas comporta-se como tal (um devaneio cifrado?), remetido e recebido pelo sujeito. Diferentemente da fala, o silêncio não é uma mensagem dirigida ao outro, mas a si mesmo.

Percebi posteriormente em outros pacientes algo que aprendi naquela sessão “anecoica” com Rose: o silêncio favorece a compreensão da realidade psíquica no indivíduo humano, é promotor de organização de uma função crítica que permite a eles “tomar a palavra”. Rose disse que ficou nela uma experiência “forte” daquela sessão; que ficou “sábia” pelo inusitado encontro de uma estratégia mental que a preparou a não mais cometer os mesmos erros de antes; era uma “coisa” no campo da linguagem, em que faltava um termo para nomear o que tinha acontecido com ela naquela sala, uma vivência da infância, uma muda experiência entre o não ainda da instalação da fala e o depois... quando conseguiu perceber um oceano de significados, mas silenciosos para mim.

 

Notas

1 Câmara anecoica ou acústica: local octogonal cujas paredes são revestidas de material especial; um cômodo silencioso, sem eco ou reverberação; é utilizado em laboratórios de pesquisas.

2 Datada de 6 de dezembro de 1896.

 

Referências

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Correspondência:
Orlando Hardt Jr.
Avenida São João, 660/40, Jardim Nova América
12242-560 São José dos Campos, SP
orlandohardt@yahoo.com

Recebido em 17.8.2016
Aceito em 31.8.2016

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