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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo Sept./Dec. 2016

 

EM PAUTA

 

O barulho do silêncio

 

The noise of silence

 

El sonido del silencio

 

 

Ana Maria Andrade de Azevedo

Analista de crianças e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de um fragmento de sua experiência pessoal, a autora desenvolve algumas ideias acerca do silêncio. São abordados três autores dentro da psicanálise: Wilfred Bion, André Green e Jean-Claude Rolland. Com base nas contribuições deles, a autora procura ampliar a reflexão sobre o silêncio.

Palavras-chave: silêncio; fala; imagem; sonho; linguagem.


ABSTRACT

Starting from a fragment of her personal experience, this author develops some ideas which constitute an attempt to help in the study of silence. This paper considers three authors within the field of psychoanalysis: Wilfred Bion, Andre Green, and Jean-Claude Rolland. Starting from those author's contributions, this author develops some ideas on the theme of silence.

Keywords: silence; speech; image; dream; language.


RESUMEN

A partir de un fragmento de su experiencia personal, la autora desarrolla algunas ideas sobre el silencio. Son considerados tres autores dentro del psicoanálisis: Wilfred Bion, André Green y Jean- Claude Rolland. A partir de sus contribuciones, la autora busca ampliar la reflexión sobre el tema del silencio.

Palabras clave: silencio; habla; imagen; sueño; lenguaje.


 

 

A epifanía da imagem requer o silêncio do discurso.

(Jean-Claude Rolland)

O que nos leva a refletir e escrever sobre um tema? Nossa clínica, nossos congressos e, por que não, nossas recordações e nossa experiência. Penso que, muitas vezes, escrever faz parte do processo analítico, seja porque as anotações estimulam ideias, seja porque o processo psíquico intrassubjetivo assim o exige.

Esse é talvez o caso aqui: ao tentar escrever sobre o silêncio, tema que me interessou, me veio à mente uma lembrança de muitos anos atrás: eu ainda estava em análise, passando por momentos difíceis, sem saber o que dizer ou como conversar com meu analista naturalmente. O silêncio se impunha muitas vezes. Certo dia, num momento de sessão, minha mente é tomada por uma frase que surge acompanhada de uma imagem: “O silêncio desses espaços infinitos me assusta.” Eu sabia que a frase era de Blaise Pascal, embora nunca tivesse sido uma leitora assídua de filosofia. A imagem que concomitantemente tomava minha mente se relacionava à ideia de espaço, uma imagem que se aproximava ao apresentado no filme 2001: uma odisseia no espaço.

Impactada e emocionada com a situação, relato o que me acontecia a meu analista e me surpreendo quando ele responde: "E não acha que essa lembrança a ajuda?"

Na verdade eu não conseguia compreender bem o que ele poderia estar querendo dizer com aquilo, mas eu realmente me sentia melhor com a evocação da frase de Pascal, e também aliviada com a observação de meu analista. Faz já muitos anos que isso aconteceu, e curiosamente nunca me esqueci desse momento!

Não apenas a frase em si mesma me surpreendeu como a intensidade dessa vivência ligada ao espaço, ao silêncio e ao medo me marcou fortemente, ajudando-me de fato a tolerar aquele momento e a começar a pensar sobre a questão: silêncio.

Continuei minha trajetória como analista e, aos poucos, fui observando como era difícil também tolerar o silêncio quando com pacientes. Acredito hoje que essa dificuldade é bastante comum entre os analistas em geral. Penso que certo desconhecimento em relação aos processos linguísticos em psicanálise, aliado à denominação dada por Freud à psicanálise, desde o início de seu trabalho, como a cura pela palavra, talvez tenha contribuído para reforçar a crença no poder da palavra e na suposta importância de um “saber consciente”, apoiado na percepção dos fatos.

Muitas vezes associamos o insight e o conhecimento à percepção, esquecendo que esta é característica dos processos egoicos, portanto da consciência. Acredito que o insight é muito mais do que isso. Só a percepção não será suficiente para que um processo de transformação aconteça, pois este pode ser, e é na maioria das vezes, fruto da racionalidade.

Nesse contexto, o surgimento de uma associação livre durante minha sessão de análise, desenterrando a frase de Pascal e a imagem de espaço, provocando uma intensa vivência emocional, só poderia ter sido surpreendente.

Deixando de lado a surpresa e enfatizando a experiência emocional como um todo, posso afirmar que esse pequeno incidente contribuiu para desencadear, com o passar do tempo, uma forte mudança de perspectiva em minha mente - mudança essa relacionada não apenas ao uso ou não da palavra como também à função do analista e ao funcionamento da dupla analítica durante a sessão.

Com o passar dos anos, a obra de Bion me interessou muito, fui leitora de seus textos e, em minha experiência clínica, a apreensão dos fatos psíquicos sofreu por muito tempo (talvez continue a sofrer) o efeito das propostas e ideias desse autor.

Alguns aspectos que me marcaram, nesse longo tempo de minha experiência como analista, referem-se ao desenvolvimento das ideias de Bion sobre o processo onírico, sobre o funcionamento mental, sobre a memória e a experiência emocional analítica, aspectos esses que foram tratados por mim em vários trabalhos escritos (Azevedo, 1987, 1990). Essas questões continuaram e continuam a me interessar e, em seus livros Transformações (1965/1971) e Cogitações (1992/2000), tenho podido encontrar trechos interessantes que contribuíram com o tema que me foi proposto tratar aqui, o silêncio.

Não pretendo abordar toda a obra de Bion, mas sim tentar, fazendo uso de algumas de suas ideias, refletir sobre a questão do silêncio e da associação livre no trabalho de análise. Pensar na associação livre leva-me a considerar o processo onírico, visto como o modelo mais próximo ao funcionamento psíquico.

Sem dúvida, após 1920, o pensamento freudiano se distancia do modelo do sonho como satisfação dos desejos reprimidos, enfatizando o deslocamento da energia afetiva para o processo de figuração e do pensar em imagens. As imagens sonhadas possuirão uma potência sensorial, que irá relançar o movimento no sentido inverso, o da regressão formal.

A figurabilidade, sendo uma exigência psíquica fundamental, permanente e presente não só nos sonhos, faz parte da vida psíquica em geral. Poderíamos chamá-la de transformação do pensamento em imagens. A figuração pode ser considerada como um meio de acesso à nomeação.

Vou limitar-me a alguns breves trechos da obra de Bion, que servirão para ilustrar o que pretendo salientar. Em Cogitações, ao tratar da questão do sonhar, ele afirma:

O trabalho onírico que conhecemos é apenas um pequeno aspecto do sonhar, o sonhar propriamente dito sendo um processo contínuo pertencente à vida de vigília, agindo em todas as horas da vigília, embora não sendo observado usualmente [...]. De qualquer modo, a hipótese de que numa sessão analítica eu posso ver o sonho do analisando tem se provado valiosa. (1992/2000, pp. 50-51)

A ideia de considerar o trabalho onírico como um processo mais amplo, desenvolvido na mente, o tempo todo e não apenas durante o sono, possivelmente torna nosso contato com a formação de imagens na mente muito mais importante do que poderiamos imaginar. Esse processo de formação de imagens, preparatório da nomeação, muitas vezes não alcança esse objetivo, a nomeação, mas sempre constitui economicamente um movimento importante.

Seria a frase de Pascal, evocada em meio a um silêncio numa sessão, parte de um processo onírico continuo da vida de vigilia? Um pensamento sem pensador? Uma imagem alcançando a nomeação? Penso que essas hipóteses são importantes. Continuando com Bion:

o uso psicanalítico do sonho como um método pelo qual o inconsciente é tornado consciente é um emprego inverso do que seria em realidade o mecanismo empregado na transformação do consciente em material adequado para a estocagem no inconsciente. (1992/2000, p. 51)

Penso que Bion amplia a proposta de um processo onírico contínuo, salientando que no processo duplo de transformação, também do consciente para o inconsciente por meio do trabalho da função alfa, tem origem o que conhecemos como construção da memória - um tipo de memória peculiar, inconsciente, além daquelas herdadas pela filogênese e pela ontogênese, que também fazem parte dessa instância, o inconsciente. O fato é que essas inscrições e marcas acontecendo e sendo estocadas na memória, em todas as horas da vigília e do sono, permitem que tenhamos uma infinidade de traços mnêmicos em nosso inconsciente, dos quais muito pouco ou nada sabemos.

Aqui podemos pensar no inconsciente “substantivo” e no inconsciente enquanto adjetivo, isto é, como qualidade. Acredito que numa experiência analítica podemos ter acesso a tudo isso que estou mencionando - a alternância entre momentos de silêncio e momentos de fala articulada, de repente o surgimento de lembranças, novamente silêncios, que se sucedem aos comentários interpretativos do analista, enfim, como passos de uma dança, com ritmos alternantes, que exigem destreza e habilidade.

Bion afirma que, para que essa dança e esse ritmo possam se transformar em elementos psíquicos (junto aqui silêncios e falas) constitutivos da experiência e da memória, só o que for sonhado pelo dream-work alpha poderá ser armazenado sob a forma de memória. Ele se refere aqui não só aos sonhos durante o sono, mas também a toda a experiência da vigília.

Dentro dessa mesma reflexão, que inclui o processo do sonho, a formação da memória, a importância da função alfa na elaboração da experiência e da associação livre na psicanálise, quero incluir aqui a noção de evolução em Bion. Em “Notas sobre a memória e o desejo”, presente em Cogitações, ele diz:

Em qualquer sessão ocorre evolução. Da escuridão e do sem forma, algo evolui [...]. [Essa evolução] compartilha com os sonhos a qualidade de estar totalmente presente ou ser inenarrável e subitamente ausente. É essa evolução que o psicanalista precisa estar pronto para interpretar. (1992/2000, pp. 392-393)

Bion também fala nesse texto de intuir a evolução, e em outro momento expande o que entende por evolução: “Evolução é um termo pelo qual designo a experiência em que alguma ideia ou impressão pictórica aparece como um todo na mente, sem ser convidada” (p. 395).

Acredito que a experiência descrita no início aí se insere. Apesar da distância temporal e da característica pessoal e subjetiva desse pequeno exemplo, creio que é possível dizer que a evocação imagética ou a impressão pictórica contida na frase formulada por Pascal emergiu (evoluiu) naquele momento, sem ser convidada, como uma forma de “ajudar-me”, como salientou meu analista, a conter a intensa angústia suscitada pelo contato com o espaço psíquico e a escuridão do não saber.

Fiz uso desse acontecimento como uma espécie de introdução ao tema que me interessou, o silêncio. O título escolhido por mim, de certa maneira, já coloca o que penso a respeito: o barulho do silêncio.

Tentando trazer algumas ideias de autores contemporâneos acerca do tema do silêncio, optei por considerar principalmente o trabalho de André Green e de Jean-Claude Rolland. Na verdade, desenvolvo aqui também minhas próprias perspectivas a respeito, permitindo-me conjecturar um pouco.

André Green é um autor bastante conhecido, principalmente por sua contribuição à psicanálise com O trabalho do negativo (1993) e por seu trabalho com pacientes borderline, no que ele chama de clínica da contemporaneidade. Green foi um leitor incansável de Freud e, embora não tenha tratado isoladamente do tema do silêncio, creio que é possível pensá-lo a partir de suas colocações.

Sabemos como Freud opôs o sistema de representações de palavra, presente no pré-consciente, às representações inconscientes, que seriam formadas apenas pela representação de coisa. Mais tarde, após seus trabalhos sobre a metapsicologia (1915), essa divisão não é mais tão clara, e, como menciona Green, a existência de uma “zona-tampão” no pré-consciente veio tornar essa ideia mais problemática.

Essa zona no pré-consciente, segundo Green, nada mais é que uma zona de trocas ativa, onde os investimentos e os traços mnêmicos circulam, caracterizando essa zona em uma área de transformação, em que a linguagem desempenha um papel importante. As modalidades representativas, então, não se limitariam mais à dupla representação de coisa e representação de palavra. A separação não é mais tão clara, além das dificuldades provocadas pela importância dada à figurabilidade e aos afetos. Na verdade, os afetos e as imagens, graças ao trabalho desenvolvido anteriormente sobre os sonhos, também adquirem o status de representação, sejam elas conscientes, sejam inconscientes.

A partir de 1973, Green descreve a escuta analítica como aquela que busca ouvir uma palavra escondida para um destinatário oculto. A associação livre será a única forma de aproximar a comunicação verbal do analisando a um estado mental semelhante ao sonho, que possa então vir a ser escutado e também sonhado pelo analista - isso na medida em que a “palavra escondida” for considerada como o elemento a ser escutado transferencialmente numa análise.

Essas colocações já se encontravam em Freud (apesar de não terem sido amplamente desenvolvidas por ele), no trabalho de 1940 Esboço de psicanálise (1973a), em que seu objetivo principal era estabelecer a diferença entre os pensamentos ordenados pela linguagem e os pensamentos dos processos inconscientes.

A linguagem é uma forma, diz Green (2002), produzida para ser escutada e interpretada. Numa psicanálise, podemos distinguir dois pontos de apoio: o silêncio e a interpretação, a palavra interior e a palavra enunciada (que é interpretada pelo seu emissor). A linguagem é um processo condicionado pela palavra, é uma forma, o que permite concluir seguramente sua natureza pré-consciente. No entanto, a linguagem irá sempre atender aos interesses e exigências dos aspectos conscientes do ego e do superego, mantendo oculto e silenciando o que não puder ser evidenciado ou vivenciado.

Enquanto no inconsciente encontramos as representações de coisa inconscientes (a palavra interior), os únicos verdadeiros investimentos de objeto, na consciência, na linguagem, na palavra enunciada, o predomínio será do processo racional, e os investimentos de objeto sofrerão os efeitos dos mesmos mecanismos do processo onírico, isto é, deslocamentos e condensações, transformações em seu contrário.

Talvez, entre outras questões, tenham sido essas dificuldades que contribuíram para que Green tentasse outra aproximação ao trabalho psíquico quando formulou as noções de negativo e de trabalho do negativo. Diz ele:

quase tudo que conhecemos a propósito do id é de caráter negativo, comparado com o ego [...] iremos nos deparar com essa situação paradoxal onde a mais ruidosa e a mais afirmativa das instâncias do aparelho psíquico só é concebível no negativo daquilo que sabemos do ego [...] o ego é o id no negativo. (2002, p. 261)

Talvez o leitor esteja se indagando por que, num trabalho sobre o silêncio, falo tanto sobre a representação psíquica, sobre a linguagem, sobre o sonho e agora sobre o negativo. Estamos na verdade irremediavelmente “presos” à linguagem em nossas comunicações. Como então falar do silêncio sem ser usando palavras?

Continuemos, apesar disso, já que não somos nem poetas nem artistas.

Acredito que, assim como foram extremamente benéficos para a psicanálise o desenvolvimento do trabalho do negativo e a formulação do negativo por Green, possibilitando o alcance de uma perspectiva mais complexa e mais dinâmica sobre o funcionamento psíquico, também pode ser importante considerar o silêncio como o negativo da fala, como a não linguagem, como uma forma simples das transformações operadas pelo negativo.

No nível do inconsciente, sabemos que se trata sempre de um “trabalho”, pois o funcionamento do psiquismo é sempre um trabalho. Ampliando essa proposta, podemos acrescentar que o aspecto mais interessante na consideração do silêncio como um trabalho do negativo aponta para a relação de ambos com a ausência. Se pensamos o negativo como o lugar onde alguma coisa estava e não está mais, fica claro que também o silêncio é a ausência da fala, o lugar onde o barulho da fala estava e não está mais.

Além de se constituir num trabalho, e não num estado, o silêncio como o negativo da fala pode vir a nos oferecer então uma visão da organização da mente, quando num estado diferente.

O sonho é uma experiência emocional e psíquica que nos permite compreender a organização estrutural e psíquica da mente durante o sono, enquanto trabalhando com imagens. Acreditamos que essa proposta também pode ajudar na consideração da experiência silenciosa.

A associação livre foi por nós aproximada a esse trabalho do sonho, bem como à rêverie. Pensamos que a associação livre é um momento em que podemos considerar a presença de um trabalho sobre as imagens, um trabalho do negativo, dado que sua relação com as palavras se caracterizará de maneira diferente.

Na associação livre, podemos dizer que o encadeamento lógico e a relação de continuidade - processos esses que se dão no pré-consciente, quando é feita a ligação dos restos mnêmicos e dos afetos com as palavras - sofrem alterações. Na verdade, a consciência e o ego podem ser “driblados” na associação livre. Daí sua proximidade ao trabalho onírico e também ao processo imagético.

Levando em conta esses processos e a especificidade do silêncio, propomos que este é parte de um trabalho do negativo, um momento em que predomina outra linguagem, uma linguagem em imagens, que irá permitir o acesso a um estado que se encontra entre a perda total do objeto e sua presença excessiva (Green, 2005/2007). Talvez nada mais ofereça uma possibilidade tão clara desse estado, “em suspenso”, como o silêncio.

De acordo com Freud e Green, o campo das percepções não se restringe apenas ao campo da sensorialidade, quer dizer, ao universo das relações com o mundo externo. As percepções internas são igualmente importantes, e a noção das excitações internas será igualmente significativa.

Em meu modo de ver, as representações em palavras são recursos para preencher a falta que caracteriza um estado de experiência em suspenso, como menciona Green (2005/2007) - um estado no qual, embora o objeto não desapareça completamente, a ameaça de sua ausência é aterradora.

A necessidade da linguagem, como nos mostra Freud, surge justamente com a experiência do fort-da, como uma primeira tentativa da criança para lidar com a ausência, substituindo o objeto ausente por um movimento e por um som, e assim sendo capaz de suportar o sofrimento provocado pela ausência da mãe. Acredito que é possível pensar que criação psíquica dependerá sempre de uma situação de ausência de objeto.

Estaríamos então o tempo todo às voltas com a perda do objeto, com a necessidade da recriação alucinatória dele, pela fala, pela revivência corporal do som, pelos movimentos? A linguagem como expressão de uma defesa contra o luto?

A tomada de consciência repentina no encontro analítico [...] por uma interpretação ou por uma associação livre do analisando [...] gera uma sensação de realização, como se finalmente algo tivesse sido recuperado, algo do si mesmo tivesse encontrado um refúgio; um fragmento errante da mente [...] algo que antes estava ausente. (Green, 2005/2007, pp. 90-92)

O que ocorre (uma ausência) estará sempre ligado a outro momento e a outro tempo. Não falamos aqui de um passado no sentido histórico do termo, mas sim de algo que se encontrava fora da consciência e que não podia estar aí antes.

Por que quero aqui ligar as ideias de experiências em suspenso e de objeto errante com a ideia das representações e imagens inconscientes (representações inconscientes que, apesar de estarem lá, não são acessadas nem reconhecidas pelo sujeito, a não ser quando a associação livre prevalece sobre o encadeamento do pensamento consciente, nos lapsos de linguagem e em momentos de silêncio em que a representação imagética é acionada)?

Green nos diz que os processos inconscientes são capazes de certo tipo de pensamento, diferente daqueles do processo secundário. Como exemplo, cita o processo de identificação projetiva, que não deixa de ser uma forma de pensamento inconsciente.

E o silêncio? Não poderia ser incluído nessa possibilidade? Não estariam aí agindo os pensamentos inconscientes, errantes? Momentos em que o contato psíquico com as representações inconscientes e os restos mnêmicos (lembranças) evoluem sem a presença da linguagem verbal, ou melhor, em busca de uma possibilidade de linguagem pictórica e/ou imagética para vir a tornar-se consciente?

"O silêncio desses espaços infinitos me assusta" - poderia essa frase ser pensada e figurada como se referindo a algo próximo ao que Green denomina como objeto errante, que foi capaz de evoluir (Bion) em busca de uma forma de representação que pudesse aceder à consciência, diminuindo assim a intensidade da tensão e da angústia geradas pelo contato e pelo medo do espaço infinito do inconsciente?

Essa é minha proposta e interpretação, pensando no fragmento de memória apresentado no início deste texto. Tentarei agora expandi-la para uma consideração mais ampla sobre o silêncio, que possa contribuir talvez para nossa aproximação clínica.

Penso que Jean-Claude Rolland tem toda uma reflexão a respeito tanto do silêncio quanto da comunicação verbal em análise, uma reflexão consistente e profunda da qual tentarei apresentar alguns pontos.

Numa direção diferente, sem deixar de estar em acordo com muito do que Green nos traz, Rolland dá uma enorme importância ao processo silencioso, principalmente na situação clínica. Diz ele:

O silêncio na análise está longe de ser uma coisa indesejável; não é indesejável e em nenhum caso é índice de fracasso do discurso [...]. Tem numerosas significações, é uma necessidade da expressão verbal (como na música), na medida em que é ferramenta na instauração da separação entre os significantes que transformam o ruído que é a fala em linguagem articulada. Calar-se é a sombra correspondente ao dizer. (2015, p. 185)

Entendo e concordo com o que Rolland propõe sobre o silêncio, como uma expressão do negativo, como parte da comunicação, parte importante na medida em que permite discernir uma formação composta: por um lado, uma estrutura determinante da arquitetura da psique; por outro, o destino de uma energia (libido) que irá animar as operações do mundo interior.

A escuta atenta do curso da palavra e do silêncio durante uma análise leva-nos, segundo Rolland, a perceber que a palavra associativa se cala cada vez que há uma ameaça de contato com a natureza secreta do objeto ao qual ela se refere. O estancamento da libido seca a linguagem, e a palavra se converte em mutismo. Essa seria uma função ligada à resistência, funcionando como oposição ao conhecimento. São as formações reativas.

Rolland também nos fala de um silêncio dos começos, aquele que, ao longo de todo o desenvolvimento do discurso, repete, celebra, comemora o nascimento não só da linguagem, mas da vida do espírito. Ele nos sugere que, no desenvolvimento, a organização das imagens precede a aquisição da língua. Ambas são complementares, mas servem a duas economias psíquicas diferentes.

A imagem, como sabemos, é um instrumento que permite a presença alucinatória dos objetos. Ao tratar dessa questão, Rolland salienta o aspecto econômico presente tanto na alucinação como na fala; estas asseguram, na superfície do aparelho psíquico, uma função homeostásica, que irá diminuir a tensão causada pelo desejo do objeto e a angústia de sua ausência. Tanto o nomear como o alucinar são formas que geram uma diminuição de tensão e dão lugar à fantasia de controle do objeto.

Mas não necessariamente a presença no psíquico de imagens corresponderá a uma alucinação. Como salienta Rolland, que se dedica muito ao estudo da imagem, esta (a imagem) é também uma forma de renovar os vínculos com os objetos perdidos, muitas vezes recalcados.

Ao mesmo tempo que a imagem traz de volta a situação ou a pessoa ausente, fala dos sentimentos, das emoções que essa ausência provoca, e assim contribui para um processo de renúncia. Já a palavra faz presente o objeto, automaticamente ocupando seu espaço e distanciando-se de um processo de renúncia.

Quando se instaura um silêncio pleno de imagens, que irá de certa forma ajudar na renúncia dos objetos perdidos, um silêncio processual (Rolland, 2016), temos um momento difícil da análise, mas possivelmente bastante criativo para o paciente.

A condição do silêncio, da suspensão da fala, será então fundamental na experiência psicanalítica, sendo vista como um momento em que a emoção ligada ao objeto inconsciente e à sua representação poderá evoluir, provocando indiretamente a redistribuição da libido nas instâncias psíquicas. É um processo doloroso, muitas vezes difícil tanto para o analista como para o analisando.

Escutar um silêncio é uma coisa estranha, mas é exatamente isso que o analista precisa fazer nessas horas. A transferência permite ao analista participar do jogo de imagens mentais do momento, graças à experiência emocional (inconsciente) que implica esse momento de transformação.

O trabalho da imagem é partilhado silenciosamente no processo analítico. Já o deslocamento constrói a língua. A língua é uma instância simbólica, exterior ao próprio sujeito; ela se impõe ao espírito e exige que os desejos sejam expressos pela atividade da fala.

O pensamento em imagens predomina no sonho e na construção de fantasias, ou seja, num processo de pensar expressivo, emocional e representativo, enquanto que a língua fica mais circunscrita aos processos superiores do julgamento, da razão e da lógica. O pensamento, na verdade, faz uso dessas duas formas, escolhendo seus modos de expressão como uma orquestra. A poesia é sem dúvida um exemplo dessa orquestração.

Acredito que não é necessário chamar a atenção para a importância tanto de um processo quanto de outro, levando-se em conta inclusive o caráter inventivo e arcaico da imagem, mencionado por Freud no capítulo 6 de A interpretação dos sonhos (1900/1973b), e o importante reconhecimento da realidade no processo secundário.

Num texto de 2016, Jean-Claude Rolland diz:

Podemos notar que a terceira língua, que age silenciosamente no discurso enunciado e sobre a qual o analista precisa afinar sua escuta para torná-la audível, tem um aspecto ligado ao silêncio (do analista e do paciente), que exerce um papel muito importante no desenvolvimento do processo analítico. Esse, o silêncio, é o meio de tornar presente os movimentos da alma sem expressão verbal, atraídos pela transferência no processo analítico (afetos, medos, imagens corporais etc.). Fédida fala em relação ao silêncio como um salto no desconhecido.

Positivamente, o silêncio torna presente o não comunicável pela linguagem: o desconhecido. É preciso lembrar, no entanto, que uma psicanálise é uma experiência entre duas subjetividades, o que faz com que uma dinâmica precise ser instaurada entre esses dois polos: a linguagem imagética e a linguagem falada.

Também o analista se vê tomado por imagens em muitos momentos, e se vê muitas vezes impelido a fazer uso delas. A presença de um interlocutor é necessária para iniciar um processo de deslocamento da experiência em expressão (Rolland, 2006), assim como para um bebê é fundamental a existência de uma mãe para poder encontrar um sentido, um valor, na experiência emocional.

Antes de concluir o texto, algumas palavras sobre a dificuldade de, partindo de uma experiência, alcançar uma expressão. Acredito que esse ângulo da questão é familiar a todos nós analistas: durante muito tempo, em nossa Sociedade de Psicanálise e em meus trabalhos sobre a psicanálise, a palavra e a noção de experiência (Bion, 1965/1971) ocupou um lugar e teve uma presença significativa, que talvez para muitos ainda tenha. Em minha clínica atual e em minhas reflexões neste momento, deixou de ter tanto destaque, ou melhor, não está mais tão presente. Podemos considerar esse fato totalmente sem importância e deixá-lo de lado. Ou podemos refletir sobre ele, pois penso que está intimamente ligado à questão do silêncio, da imagem e também da expressão (interpretação?).

Volto à questão, pois. O elemento fundamental em relação à experiência emocional parece estar de fato na dificuldade de sua expressão, seja numa relação interna do sujeito com ele mesmo, seja numa relação mantida com o outro. A expressão aqui se refere ao uso da palavra, como menciona Rolland, numa tentativa de abstração e de certo distanciamento da vivência. A expressão então não se refere mais ao desconhecimento, e sim à colocação num código, ou numa linguagem, seja ela qual for, daquilo que já passou, que já aconteceu. É possível que esse momento corresponda ao que denominamos como interpretação.

Como pretender então falar do “novo” em psicanálise? Quando associamos? Quando formulamos uma ideia? Como pretender, sem ser poeta ou artista, “abrir” e “expandir” o conhecimento?

Um pouco por obra do acaso, chegou às minhas mãos, recentemente, um livro de Didi-Huberman intitulado A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg (2013), título sugestivo para o tema aqui tratado. Fica aqui como sugestão para aqueles que se interessam pelo tema das imagens em sua relação com a memória e com os processos expressivos.

Foi como processo psíquico que Warburg interrogou a memória em ação nas sobrevivências modernas [...]. Tudo isso nos indica a que ponto a dimensão psíquica, aos olhos de Warburg, devia ser considerada a partir de um ponto de vista que ele mesmo qualificava de monista: tratava-se de não separar a “psique e sua carne”, ou inversamente de não separar a substância imagética e seus poderes psíquicos [...]. Para Warburg, os poderes da imagem, poderes psíquicos e plásticos - trabalham diretamente no material sedimentado e movimentado de uma memória inconsciente [...]. O historiador [ou o analista talvez?] não aceita sem dificuldade que a própria evidência de seu trabalho, a história, seja barrada, desnorteada, por uma memória zeitlos (intemporal), uma memória insensível às continuidades narrativas e às contradições lógicas. (Didi-Huberman, 2013, p. 271)

Essa citação tem por finalidade chamar a atenção à vinculação da substância imagética aos poderes psíquicos e plásticos, que trabalham diretamente no material (psíquico?). Não seria esse o caso dos sonhos? Não estou eu aqui hoje falando de um aspecto de minha memória que, apesar de ter acontecido há mais de vinte anos, veio se desenrolando no psíquico silenciosamente, como uma memória zeitlos, trabalhada no intemporal do sempre?

 

Referências

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Correspondência:
Ana Maria Andrade de Azevedo
Av. Brigadeiro Faria Lima, 1903/75, 7º andar
01452-001 São Paulo, SP
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Recebido em 25.10.2016
Aceito em 8.11.2016

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