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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016

 

PONTO DE VISTA

 

Os sentidos do silêncio

 

The meanings of silence

 

Los sentidos del silencio

 

 

Eliete Eça Negreiros

Cantora de música popular brasileira, ensaísta e doutora em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo FFD-USP

Correspondência

 

 


RESUMO

Reflexão sobre diversos aspectos do silêncio, tanto na filosofia quanto na música.

Palavras-chave: silêncio; som; verdade; conhecimento; contemplação; sentido.


ABSTRACT

A reflection on several aspects of silence in both philosophy and music.

Keywords: silence; sound; truth; understanding; contemplation; meaning; sense.


RESUMEN

Reflexión sobre diversos aspectos del silencio, tanto en la filosofía como en la música.

Palabras clave: silencio; sonido; verdad; conocimiento; contemplación; sentido.


 

 

O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

(Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa)

Ausência de som, ausência de palavras, à primeira vista pode parecer que o silêncio é ausência de sentido. É o antes do dizer, do significar. Ou o depois: esgotada a linguagem, depois que tudo está dito, resta o silêncio. Se assim fosse, seria um paradoxo falar do sentido do silêncio e, ainda mais, dos seus sentidos.

Mas o silêncio abriga em seu âmago várias modalidades de significação. Silêncio original, de onde nascem todos os sons. Silêncio da contemplação, quando aquietamos os pensamentos, silêncio interior, em que o olhar pousa em coisas sem nome, em formas e cores. Silêncio como esquecimento, quando aquilo que foi é como se nunca tivesse sido. Silêncio como repressão, quando calamos por medo, quando não pensamos por medo, quando apagamos as palavras ou as engolimos. Silêncio diante do espanto com o que vemos no mundo. Na música, o silêncio funciona como uma espécie de limite, separando os sons e possibilitando que se distingam e definam as notas musicais, além de ser, juntamente com a duração, responsável pelo ritmo. Silêncio final - a morte, silêncio-jazigo para onde tudo o que foi dito converge e é sugado, enigma que, ao mesmo tempo que é ausência de voz e das vozes que aquela voz continha, instaura uma pluralidade de vozes ditas, imaginadas, um coro de vozes, polifonia de possíveis e impossíveis sentidos em aberto, ad infinitum, como no poema de Ferreira Gullar, “Infinito silêncio” (2004, p. 489):

houve
(há)
um enorme silêncio
anterior ao nascimento das estrelas
antes da luz
a matéria da matéria
de onde tudo vem incessante e onde tudo se apaga eternamente
esse silêncio
grita sob nossa vida e de ponta a ponta a atravessa
estridente
(Gullar, 2004, p. 489)

Agora vamos viajar por veredas que trilharam alguns pensadores, músicos e poetas que se debruçaram sobre esse tema, sem pretender abarcar sua amplidão, mas buscando atalhos que iluminem alguns aspectos do silêncio.

 

1. O silêncio como conhecimento: Plotino e a contemplação silenciosa

Para Plotino, o silêncio é o estágio mais elevado do conhecimento da realidade, ou seja, do Um, unidade que tudo abarca sem sair de si. Quando o aspirante à verdade tem a experiência da unidade, essa experiência é total e silenciosa. Através do pensamento racional, diz ele, nós nos distanciamos desse centro e, através da contemplação silenciosa, somos reconduzidos a ele, podendo assim experimentar a verdade. Essa experiência da verdade é indizível e se caracteriza por um certo abandono a esse centro primordial: ao querer falar dela, nos desligamos da unidade, nos desdobramos e, assim, perdemos a experiência.

Em Plotino, a contemplação é o caminho que sai do Uno e a ele retorna: “A compreensão deste caminho só se adquire na caminhada, quando através da marcha percorremos todas as paisagens e vislumbramos com os 'olhos da Alma' os segredos ali guardados”, explica Gabriela Bal em seu livro Silêncio e contemplação: uma introdução a Plotino (2007, p. 27). Por meio da contemplação, somos levados ao silêncio.

Apoiado na teoria das três naturezas, apresentada por Platão no diálogo Parmênides, Plotino caracteriza as três realidades primeiras: o Um, o Intelecto e a Alma. É a partir dessas realidades primordiais, inteligíveis e incorpóreas que é possível explicar todas as coisas. O Um, origem de tudo, permanece em si mesmo, imóvel. Abaixo dele, vem o Intelecto e, depois, a Alma.

A contemplação não é uma mera categoria existente no pensamento de Plotino, mas é o seu próprio pensar. O todo está presente nas partes e estas refletem o todo. Tudo o que existe contempla, e toda contemplação é uma decorrência da própria natureza das coisas e tende para o Uno: a contemplação é silenciosa, e tudo se dá sem que haja esforço. A contemplação acontece no silêncio e é silêncio, é o modo de ser de tudo, e por isso toda realidade é contemplação e silêncio.

Pierre Hadot, no livro O que é a filosofia antiga? (1999), explica que para Plotino a realidade é gerada a partir de uma unidade primordial - o Uno ou o Bem - de onde surgem níveis de realidade gradativamente inferiores: o Intelecto, a Alma e as coisas sensíveis:

O discurso filosófico de Plotino, para todos os níveis da realidade, conduz a uma ascese e a uma experiência interiores que são o verdadeiro conhecimento, pelo qual o filósofo eleva-se para a realidade suprema alcançando progressivamente níveis mais e mais elevados e mais e mais interiores da consciência de si. Plotino retoma o velho adágio “somente o semelhante conhece o semelhante”. Mas isso significa para ele que é somente se tornando espiritualmente semelhante à realidade que se quer conhecer que é possível conhecê-la. A filosofia de Plotino revela assim, por outro lado, o espírito do platonismo, isto é, a indissolúvel unidade do saber e da virtude: só há saber em e pela progressão existencial na direção do Bem. (p. 236)

O conhecimento em Plotino é visto como uma ascese cujo primeiro passo acontece quando a alma racional toma consciência de que ela não se confunde com a alma irracional, aquela que anima o corpo e que é perturbada pelo prazer e pela dor. Diz Plotino: “Restringe-te e examina-te”; “Tira o que é supérfluo [...] não cesses de esculpir tua própria estátua” (Hadot, 1999, p. 237). A alma racional é iluminada pelo intelecto e aí se inscreve o raciocínio filosófico e a prática da virtude. Mas, além dessa atividade intelectual, a alma racional terá um conhecimento de si, como se ela própria fosse o intelecto. Todavia, nesse momento da ascese, ainda não chegamos ao ponto culminante: há uma realidade transcendente que é a experiência silenciosa, não discursiva, a experiência do Uno, que é a mais elevada e que é indizível, indivisível. Essa experiência corresponde à contemplação silenciosa, à total imersão do eu na unidade, a ponto de não haver distinção entre ambos. É indizível e una, pois que, se se quisesse explicá-la, a unidade seria perdida, se dividiria com o distanciamento e desdobramento causado pelo discurso. Diz Hadot: “Essa experiência é indizível e, ao descrevê-la, Plotino nada pode dizer sobre o Uno, ele descreve unicamente o estado subjetivo de quem a experimenta. Contudo, essa experiência é o que conduz realmente ao Uno” (1999, p. 241).

Plotino distingue entre o ensino do discurso e a experiência não discursiva: a teologia é discursiva, nos ensina, instrui sobre o Bem e o Uno, mas o que conduz ao Uno é a virtude, a purificação da alma, o esforço para viver a vida segundo o Espírito. O ensino é uma orientação, indica em qual direção se deve ir, mas para se chegar ao Uno, ao conhecimento mais elevado, é necessário andar efetivamente por uma estrada que só se trilha sozinho, a jornada solitária.

Essa concepção de que o conhecimento deve ser vivido e de que essa vivência é solitária e silenciosa, podendo a razão apenas indicar o caminho, encontra-se, numa outra dimensão, na ideia da busca do conhecimento do mundo, no samba “Vida”, de Paulinho da Viola e Elton Medeiros (1975). O protagonista do samba é alguém a quem foi pedido um conselho sobre o modo de viver, e o sambista diz que só pode indicar o caminho, mas não pode dizer o que deve ser escolhido nem como será a experiência. A música começa e termina com o elogio do silêncio - “Mais não se pode dizer”, “Mais eu não posso dizer”:

Mais não se pode dizer,
Nem eu, nem ninguém,
Você é quem deve colher
Depois de semear também,
Você é quem pode rasgar o caminho
E fechar a ferida
E achar no seu justo momento a razão
De tudo aquilo que chamamos vida.

Vamos lá,
Deixa o coração
Recolher os pedaços do sonho perdido
Essa é a lei nos caminhos
Onde a ilusão e a dor
Fazem parte do primeiro artigo
Traços comuns em nossas vidas
Não justificam um conselho sequer
E logo eu que procuro

Infinitas formas de amar e viver
Posso apenas declarar que o medo
É que faz a nossa dor crescer.

Mais eu não posso dizer.

O samba é a resposta do poeta a alguém que está perdido na estrada da vida, sem saber o que fazer, e que lhe pede conselho. O samba então é como uma iniciação aos mistérios do mundo: na vida, há algumas regras - a lei nos caminhos - que podem ser ensinadas, mas cabe a cada um viver e decidir o que fazer. Podemos ver aqui o topos plotiniano da jornada solitária, em que a experiência do caminhante e a busca do sentido da vida só podem ser realizadas pelo próprio caminhante, só podem ser vividas e não transmitidas. A verdade não tem receita. É experiência de cada um. Por isso, na canção, o silêncio do sambista é o ponto mais alto do conhecimento, pois é o reconhecimento de que sua jornada é solitária e seu encontro com a verdade é silencioso, único, intransmissível e não pode ser ensinado. Por isso o poeta diz: “Mais não se pode dizer.” O não poder dizer, o silêncio, é o mais alto grau de sabedoria que o poeta alcançou, depois de muito ter vivido e aprendido.

 

2. O músico, o amoroso e o filósofo, segundo Plotino

No Tratado das Enéadas, falando da dialética, “uma ciência que pode se pronunciar a respeito da verdade final, da natureza e da relação de todas as coisas” (2000, p. 48), a arte que nos conduz ao Uno, ao Bem, Plotino pergunta quais são as pessoas que percorrem essa jornada solitária. Ele cita Platão, que no Fedro diz que são aquelas pessoas que “já viram todas as coisas ou a maioria delas”, e continua: “Esses, em seu primeiro nascimento, entram no germe de um homem que se tornará um filósofo, um músico ou um amoroso. O filósofo toma o caminho ascendente por natureza; o músico e o amoroso precisam de um guia exterior” (p. 45).

O músico é

facilmente comovido e tocado pela beleza. No entanto é um tanto ou quanto lento para despertá-la em si mesmo, está muito aberto ao estímulo exterior; e assim como as pessoas nervosas são muito sensíveis ao ruído, ele o é às melodias e à beleza nelas contidas. Qualquer desarmonia nos sons e nos versos lhe causa repulsa e ele busca o que tem ritmo e estrutura harmônicos. (p. 46)

Assim, o músico, segundo Plotino, tem uma natureza muito sensível e impressionável e está sujeito aos estímulos exteriores para poder alcançar o Uno e a beleza. Ele precisa aprender a abstrair o elemento material - a melodia e a harmonia - e a encontrar os princípios que regem a música, pois a beleza está nesses princípios, “devem ensiná-lo que aquilo que o encanta é, na verdade, a harmonia inteligível e a beleza que há nela: a Beleza universal e não uma beleza particular” (p. 47). A excessiva sensibilidade do músico o impede de encontrar a verdade.

O amoroso tem uma espécie de reminiscência da Beleza universal, mas não consegue apreendê-la separadamente de um objeto belo. Ele é arrebatado pelas belezas visíveis, mas precisa aprender a não ser tocado por uma forma corporal, mas sim por uma disciplina mental, aprender

a ver a beleza em toda parte e discernir que ela é algo diferente das formas corporais, que ela vem de outro lugar. Deve-lhe ser dito que ela se manifesta mais claramente em outras coisas como, por exemplo, numa vida digna, num sistema social bem organizado; e ele deve ser educado para reconhecer a beleza nas artes, nas ciências e nas virtudes. Isso o acostumará a amar as coisas incorpóreas. (p. 47)

O filósofo, segundo ele, é naturalmente atraído para as coisas elevadas:

Tem asas, por assim dizer, e não tem necessidade, como os precedentes, de se separar do mundo sensível. Ele se move para as alturas, mas seus passos são incertos; de modo que ele precisa apenas de alguém que lhe mostre o caminho e o instrua, pois é desapegado das coisas sensíveis por natureza. (p. 48)

 

3. O viajante solitário e o santuário

Os escritos de Plotino são como que um guia ao viajante solitário na sua jornada em busca da verdade, que afinal é uma volta à origem. Quando nos identificamos com um determinado nível de realidade, diz ele, somos atraídos para um nível mais elevado, e assim vamos perfazendo juntamente com ele a ascese em direção ao Uno, ao Bem. Nesse caminho, nos envolvemos num processo de purificação, nos desapegando de tudo que não nos pertence desde o início.

Quando nada mais pode ser dito, Plotino recorre à metáfora do santuário para falar um pouco do encontro do caminhante com o Bem:

O santuário representa a morada do inefável, local acessível apenas aos iniciados, ou seja, àqueles que realizaram a conversão da Alma e não se identificam com o sensível, mas que reconhecem ser este a imagem da realidade suprema, à qual converge o olhar. [...] Percorrer o caminho que conduz ao santuário é despojar-se das imagens e paisagens já vistas, mesmo as mais belas e resplandecentes, porque a verdadeira beleza não se encontra fora, mas dentro do templo. (Bal, 2007, p. 73)

Plotino ensina de que modo aquele que entra no santuário pode ver essa beleza imensa ali resguardada:

Sim, que ele se volte e procure associar-se à sua própria intimidade, aquele que pode fazê-lo, abandonando a visão exterior pelos olhos e não se interessando mais pelo esplendor anteriormente entrevisto nos corpos. Vendo-as, com efeito, essas belezas corpóreas, não é preciso se precipitar na sua direção, mas sabendo que elas são apenas imagens, vestígios e sombras, é necessário fugir em direção àquilo de que elas são imagens. Pois se alguém se precipita para elas querendo agarrá-las porque pensa tratar-se do ser verdadeiro, este seria como o homem que tendo desejado agarrar seu belo reflexo na água, como em alguma parte conta um mito exprimindo-se através de enigmas, penso, desapareceu no fundo da água. (p. 74)

A visão do interior do santuário se apresenta como enigma para todos aqueles que buscam a verdade. Dentre estes, o sacerdote-sábio não se contenta em compreender o enigma e o que este é capaz de revelar: ele vive a experiência da unidade, a verdadeira visão, sabendo que a visão do interior do santuário não depende de ele entrar nesse espaço, mas pode se realizar sempre que ele entra em si mesmo querendo realizar essa verdadeira visão, pois o verdadeiro templo é imaterial e invisível e a experiência é indizível. Daí chegamos novamente ao silêncio como ponto máximo do conhecimento da verdade. “Aquele que viu sabe o que eu digo”, dirá Plotino (citado por Bal, 2007, p. 77).

 

4. Plotino e Pascal

Para Plotino, o silêncio, que corresponde ao movimento dos astros no céu, à harmonia cósmica, não traz em si nada de assustador, diferentemente do silêncio pascalino, carregado de inquietação e de pavor. Lembrando a antológica passagem de Pascal nos Pensamentos:

Quando penso na pequena duração de minha vida, absorvida na eternidade anterior e na eternidade posterior, no pequeno espaço que ocupo, e mesmo que vejo, fundido na imensidade dos espaços que ignoro e que me ignoram, aterro-me e assombro-me de ver-me aqui e não alhures, pois não há razão alguma para que esteja aqui e não alhures, agora e não em outro momento qualquer. Quem me colocou nestas condições? Por ordem e obra de quem me foram designados este lugar e este momento? Memoria hospitis unius diei praetereuntis. O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora. (1979, p. 91)

Pierre-Maxime Schuhl, no artigo “Le silence dans la philosophie de Plotin” (1968), escreve:

O silêncio eterno da natureza produz em Plotino uma impressão profunda; mas não é uma impressão de pavor nem de inquietude: a ausência de barulho se associa nele à ausência de sofrimento e de esforço. É assim que a criação das coisas por imitação das Formas se faz no silêncio e sem cansaço. (p. 135)

 

5. O silêncio na música: John Cage

O som é vibração, onda que se propaga pelo espaço, atinge nosso ser e é captada e interpretada por nossos ouvidos. Quando nós representamos o som como uma onda sonora, estamos apontando para uma certa periodicidade dessa vibração. José Miguel Wisnik, em O som e o sentido (2011), afirma que

o som é o produto de uma sequência rapidíssima (e geralmente imperceptível) de impulsões e repousos, de impulsos (que se representam pela ascensão da onda) e de quedas cíclicas desses impulsos, seguidos de sua reiteração [...]. Não é a matéria do ar que caminha levando o som, mas sim um sinal de movimento que passa através da matéria, modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, o seu desenho. (p.17)

A onda sonora pode ser percebida na natureza em duas grandes modalidades: a que possui frequências regulares e que produz o som musical, com altura definida, e a que possui frequências irregulares e produz o ruído, o barulho. O barulho do mundo. Vivemos imersos num mar de ruídos díspares, atordoantes, e para sermos ouvidos já não falamos, gritamos:

Quem se dispuser a escutar o som real do mundo, hoje, e toda a série de ruídos em série que há nele, vai ouvir uma polifonia de simultaneidade que está perto do ininteligível e insuportável. [...] O jogo entre som e ruído constitui a música. O som do mundo é ruído, o mundo se apresenta para nós a todo momento através de frequências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma ordenação. (pp. 33 e 53)

Já o canto é som, música. Conseguimos por meio de certas músicas criar um universo sonoro harmonioso, com frequências, alturas e intensidades definidas dentro do barulho do mundo: “Um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador” (p. 33).

Digo que o som do mundo seria ruído porque na música contemporânea essa distinção entre som e ruído vai se dissolvendo. Os ruídos passam a fazer parte da composição, são incorporados a ela e se transformam em elementos da música, em sons. Um exemplo da incorporação do ruído na música é “Épico”, de Caetano Veloso (1973), do álbum Araçá azul (em que o barulho do trânsito compõe o universo sonoro no qual se desenha a melodia das cantigas que Caetano entoa):

Ê, cidade

Sinto calor, sinto frio Nordestino do Brasil?

Vivo entre São Paulo e Rio

Porque não posso chorar.

Augusto de Campos, em O anticrítico (1986), falando de John Cage no poema “Cage: Chance: Change”, escreve que o músico

em 1937 já dizia:

“enquanto no passado o ponto de discórdia estava entre a dissonância e a consonância no futuro próximo ele estará

entre o ruído

e os assim chamados sons musicais.” (p. 215)

O som está envolvido em silêncio assim como o silêncio abriga a possibilidade de infinitos sons. John Cage tinha no silêncio um de seus temas capitais. Músico, poeta, artista plástico, pensador, seu primeiro livro chama-se Silence (1961). Diz Augusto de Campos, a respeito do silêncio em Cage, em “O profeta e guerrilheiro da arte interdisciplinar” (1998):

Um silêncio carregado de significados, provindo, ideologicamente, da filosofia zen e musicalmente de Webern [...]. O silêncio, como dimensão estrutural do discurso musical, é fundamental em suas composições, nas quais sons e ruídos se integram sem qualquer hierarquia. Mas o silêncio de Cage não é metafísico. É, antes, um modo de apropriação do acaso, porque, como realidade acústica, não existe: “Nenhum som teme o silêncio que o extingue e não há silêncio que não seja grávido de som.” (p. 134)

A famosa peça de John Cage 4'33” é uma constatação da presença ruidosa no silêncio: um pianista vai tocar uma peça, mas fica com as mãos em suspenso sobre o piano por 4 minutos e 33 segundos, sem tocar nada. Ruidosamente, o público começa a se manifestar. A música suspensa vira silêncio, que vira ruído e depois música: o silêncio se transforma em ruído e o ruído em música do mundo. Sobre essa peça, escreve Augusto de Campos:

em 4'33'' (1952)
um pianista entra no palco
toma a postura de quem vai tocar
e não toca nada
a música é feita pela tosse
o riso e os protestos do público
incapaz de curtir quatro minutos e alguns
segundos de
silêncio

o silêncio sempre o interessou
(de fato, seu primeiro livro se chama
silence)
e nesse sentido ninguém entendeu
melhor webern do que ele
por mais que os dois pareçam distantes
e embora para ele sob outro ângulo
o silêncio não exista:
“there is no such thing as silence”
“nenhum som teme o silêncio que o
ex-tingue
e não há silêncio que não seja grávido de
som” (1986, p. 218)

 

6. A linguagem e o silêncio: Merleau-Ponty e Sartre

Merleau-Ponty, em “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” (1980), faz a crítica da noção clássica de linguagem, em que se pensa que o mundo poderia ser traduzido em palavras. Na época clássica, tanto a linguagem verbal quanto a pintura tinham a pretensão de poder traduzir o mundo. Mas, parafraseando o poeta-sambista Noel Rosa, o mundo não tem tradução. Não temos de um lado o mundo e de outro a linguagem que o traduziria. A linguagem, ao apropriar-se das coisas, nomeando-as, imprime nelas a sua marca e acaba se referindo a si mesma, quer dizer, buscando expressar o mundo, a linguagem fala de sua própria natureza. Por isso, tanto as coisas quanto a linguagem carregam seu próprio silêncio. Nas coisas, na linguagem e na relação das coisas com a linguagem há algo que é indizível. Nas coisas, porque a linguagem não consegue penetrar em seu âmago; na linguagem, porque há uma opacidade de sentido, resultante do desejo de expressar e da impossibilidade de fazê-lo plenamente; na relação entre as palavras e as coisas, o silêncio se potencializa pelo encontro desses dois silêncios e pelo desejo de significação.

Mas assim como a linguagem carrega em seu âmago algo impenetrável, seu silêncio, o silêncio também carrega a possibilidade da linguagem. Se, quando falamos, silenciamos, quando silenciamos, falamos. Em Que é a literatura? (1999), Jean-Paul Sartre, a quem Merleau-Ponty dedica o ensaio antes citado, diz que o homem,

uma vez engajado no universo da linguagem, não pode mais fingir que não sabe falar: quem entra no universo dos significados não consegue mais sair: deixemos as palavras em liberdade, e elas formarão frases, e cada frase contém a linguagem toda e remete a todo universo: o próprio silêncio se define em relação às palavras, assim como a pausa, em música, ganha o seu sentido a partir dos grupos de notas que a circundam. Esse silêncio é um momento da linguagem; calar não é ficar mudo, é recusar-se a falar - logo ainda é falar. (p. 22)

 

7. Tudo está dito

O silêncio: página em branco do poeta, tela vazia do pintor, pausa antes do som. Mas esse ponto zero tem em potência todas as formas de vida, senão nada ali seria criado, nada germinaria. Poderia ser um abismo que sugasse qualquer intenção de nascimento. Como disse o filósofo: por que existe o ser e não o nada? O silêncio não é o nada. Assim como o vazio contém a possibilidade de todas as formas, o silêncio contém a possibilidade de todos os sons. Como disse Cage: “There is no such thing as silence.” E, no entanto, o silêncio é imenso e há tanta coisa a falar, um paradoxo, impossível falar tudo sobre o silêncio.

A geração contínua de som e silêncio, essa dialética entre o não ser e o ser, esse movimento perpétuo em que o silêncio gera o som, que por sua vez está envolvido em silêncio e o gera, alimenta uma cadeia sonora e semântica infinita, que busca dar sentido à vida, criar sentido, ainda que este seja mera criação humana, para zombaria dos deuses. Termino citando o poema de Augusto de Campos “Tudo está dito” (1979, p. 23), que contempla o dito e o não dito, o som e o silêncio, pois, se tudo está dito, nada mais haveria a dizer, no entanto...

Tudo está dito

Tudo está visto

Nada é perdido

Nada é perfeito

Eis o imprevisto:

Tudo é infinito.

 

Referências

Bal, G. (2007). Silêncio e contemplação: uma introdução a Plotino. São Paulo: Paulus.         [ Links ]

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Veloso, C. (1973). Épico [gravada por Caetano Veloso]. In Araçá azul [LP]. Polygram.         [ Links ]

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Correspondência:
Eliete Eça Negreiros
elietene@gmail.com

Recebido em 8.9.2016
Aceito em 22.9.2016

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