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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Sonhos de luto na menopausa

 

Mourning dreams in menopause

 

Sueños de duelo en la menopausia

 

 

Teresa Rocha Leite Haudenschild

Analista didata e de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora propõe que o enfrentamento positivo das perdas da menopausa depende da capacidade de elaborar lutos, adquirida durante toda a vida precedente - o luto primário, o luto edípico, o luto da puberdade, o luto da vida de solteira, assim como os pequenos lutos da vida cotidiana. Isso exige um contato constante com a realidade externa e interna, portanto contato com a dor, e disponibilidade para trabalho psíquico. Apresenta os sonhos de luto de uma paciente de 55 anos em que ela elabora o luto pela perda do corpo e da sexualidade da juventude, da fertilidade biológica e dos filhos, que saíram de casa para formar suas próprias famílias. Entre esses, há um sonho de recapitulação, em que a paciente integra vários períodos de sua vida.

Palavras-chave: sonho; menopausa; luto; negação.


ABSTRACT

The author suggests that dealing positively with the losses of menopause depends on the ability to elaborate mourning. This ability is developed throughout the preceding life, starting from primary mourning, and passing through oedipal, puberty, and singlelife mourning. This ability is also built upon small mourning experiences in everyday life. It requires a constant contact with internal and external reality, and therefore contact with psychic pain, and availability to cope with it. The mourning dreams of a fifty-five-yearold analysand are herein presented. In her dreams, she mourns the loss of the young body and sexuality, of the biological fertility, and of the children, who have left home in order to build their own family. Among these dreams there is a recapitulation dream, in which she integrates several periods of her life.

Keywords: dream; menopause; mourning; denial.


RESUMEN

La autora propone que el enfrentamiento positivo de las pérdidas de la menopausia depende de la capacidad de elaborar duelos, adquirida a lo largo de toda la vida - el duelo primario, el duelo edípico, el duelo de la pubertad, el duelo de la vida de soltera, como también los pequeños duelos de la vida cotidiana. Eso exige un contacto constante con la realidad externa e interna, por lo tanto contacto con el dolor, y disponibilidad para el trabajo psíquico. Presenta los sueños de duelo de una paciente de 55 años en los que ésta elabora los duelos por la pérdida del cuerpo y de la sexualidad de la juventud, de la fertilidad biológica y de los hijos, que salieron de casa para formar sus propias familias. Entre ellos hay un sueño de recapitulación, en el que la paciente integra varios períodos de su vida.

Palabras clave: sueño; menopausia; duelo; negación.


 

 

Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão...

(“Memória”, Carlos Drummond de Andrade)

 

Introdução

Os sonhos de menopausa podem ser de luto ou de negação, maior ou menor, da realidade interna e/ou externa (Segal, 1993), resultantes de elaborações ou fugas da dor psíquica originada da constatação de que não se pode mais ser mãe, de que o corpo envelhece. São sonhos que pontuam a passagem por esse período tão importante da vida de uma mulher, em que as modificações hormonais são tão intensas quanto as da puberdade. Mas, se nesta há incremento hormonal, na menopausa há diminuição. Deutsch (1923/1984) diz que tudo o que a mulher ganha na puberdade, ela perde na menopausa. Thérèse Benedek (1927/1950), psicanalista e endocrinologista, discorda desse ponto de vista dizendo que a mulher que conseguiu realizar bem a maternidade e a satisfação sexual não sofre na menopausa transtornos psíquicos, pois se nesta, como na puberdade, há uma reedição dos conflitos edípicos, a mulher madura pode enfrentá-los com mais serenidade e sem intensa ambivalência, como relata Meyers, “no sentido de constituírem um self totalmente novo, mais integrado, com um melhor funcionamento, investido com crescente autoestima, com capacidade para novos prazeres e com senso de liberdade” (2002, p. 99).

 

Trabalho do sonho e trabalho do luto

Cabe ao analista, como representante paterno e ligado ao processo secundário e à realidade diurna, ajudar o paciente a sair do bolsão (materno) onírico do trabalho do sonho (Green, 1972), sair da cena do sonho, essencialmente visual, para metabolizá-la, pensá-la.

Bion (1963) enfatiza que o sonhar já pressupõe um aparelho psíquico para pensar pensamentos (função alfa), capaz de transformar os dados sensíveis da realidade externa e interna em elementos alfa (originados de uma experiência emocional), que podem então ser guardados na memória. Esses são os elementos que se articulam na produção de sonhos pelo inefável sujeito do inconsciente (Grotstein, 2001).

O luto consiste na renúncia ao investimento de certos objetos perdidos pelas mulheres na menopausa, como o corpo e a sexualidade da juventude, a fertilidade biológica, a família constituída com os filhos jovens e a relação intrafamiliar com eles. Nessa época, pode perder também os pais e, às vezes, o marido. Isso exige o trabalho de um ego inteiro que não funciona somente em processo primário, como nos sonhos. Certos sonhos são como criações artísticas que preparam novos investimentos de objeto na realidade de vigília. Entre eles, podemos pensar nos sonhos de recapitulação (Guillaumin, 1979), que recordando, às vezes, investimentos de toda uma vida como que viram a página (J.-M. Quinodoz, 1999) para que se descortinem outras possibilidades de investimento e relações objetais.

 

Sonhos de luto na menopausa

A Sra. A. é fotógrafa profissional, tem 55 anos, quatro filhos, netos e mantém uma vida sexual ativa e prazerosa com o marido há mais de trinta anos. Diz que a chegada da menopausa lhe trouxe uma espécie de serenidade que nunca sentiu. Era algo como uma aposentadoria merecida.

Conta que acordou com um sonho vivo na mente e o escreveu. Peço para ela contar o sonho, mas ela o lê para mim.

Estrada

Estou numa estrada de terra, larga, cor de areia, olhando um capinzal alto balouçando ao vento. É bem de manhã, com um sol claro e céu celeste pálido, como num filme italiano, lindo... De repente, como que do nada, surge do capinzal um casal de noivos muito jovem. Presa com uma coroa de flores sobre a cabeça dela, esvoaçante, a longa gaze bipartida, como asas transparentes de uma branca borboleta farfalhando ao vento. Ele, alegre, a apoia em seu braço direito, sorridente, andando ambos ao som de uma música ritmada por tambores e algo como uma viola de corda. Atrás deles, um cortejo de jovens como eles. Quando atingem a minha estrada, viram à esquerda e a seguem, voltando as costas para mim, sem me notar. A música vai se tornando cada vez mais inaudível, até que não a ouço mais.

Uma música mais rápida subitamente se faz ouvir, agora ritmada por flautas, e como que do nada, no capinzal, mais à direita, surgem crianças, pulando sorridentes. As pequeninas vêm à frente, de mãozinhas dadas. As meninas com as cabecinhas enfeitadas de flores. Os meninos com calças curtas, mostrando as perninhas rechonchudas. As idades passam, sendo as últimas quase da idade da noiva que se foi. Elas também chegam à minha estrada e dobram para a esquerda, como que nem me vendo. Vejo-as saltitarem até sumirem no horizonte.

De repente, flautas lúgubres, mais lentas. E do meio do capinzal surge um cortejo fúnebre, muito simples. Os acompanhantes, poucos, carregam o humilde caixão de madeira clara. E tristes, pesados, vagarosos, tomam a minha estrada em direção a sua esquerda, como os outros. Percebo que já é tarde, quase noite, devo ir-me. Para onde?

 

Sonho de recapitulação

Conta que o que mais a impressionou no sonho foi sentir-se fora dele, como uma observadora, e as cenas surpreendentes que se sucediam, e também o fato de o sonho ser pontuado por músicas de percussão repetida, com um ritmo próprio a cada momento da vida.

Digo que o fato enfatizado por ela, de que não era vista, confirmava essa impressão de estar fora, mas que num determinado momento ela pontuou estar na cena, dizendo “minha estrada”, justamente quando não era enxergada pelas crianças.

Ela me responde com um tom de tristeza: “Sim. Elas eram cativantes. Queria mesmo ter sido vista por elas... ”

Digo que o sonho traz os vários ciclos da vida: juventude, infância, idade madura (representada por sua posição no meio do caminho) e o término... Peço-lhe associações, e então começamos o trabalho de elaboração das cenas do sonho.

Relaciona o véu da noiva, bipartido, com o próprio véu de casamento, combinando com o vestido, estilo Renascimento; a solicitude do noivo com a maneira com que seu marido a tratava, desde sempre; o capinzal com o de seu sítio, onde o casal costumava passar os fins de semana, cada um criando suas obras em sua área; o vento como a indicar o sopro sempre presente da vida que passa; o vento no capinzal lembrava a ela o mar, como o movimento contínuo das ondas.

Comento que essa estrada de terra onde ela se situa parece ser o chão firme de sua vida íntima,1 representação que seu inconsciente lhe envia para que ela se dê conta da situação em que se encontra: no meio do caminho da vida, contemplando o que já vivera e o que restava nela desses ciclos de vida, para poder prosseguir. E prosseguir apoiada pelo marido, como ambos renascendo para uma vida nova, cada um com suas criações.

Ela então, após uma pausa, me diz: “Sabia que Psiquê em grego quer dizer alma e também borboleta?” - referindo-se ao véu estilo renascença que surgiu no capinzal como uma enorme borboleta.

Digo: “Então é como se uma borboleta enorme, recém-nascida, estivesse levantando voo, pairando sobre a cabeça da noiva? Como se a sua psique pudesse protegê-la nos novos casamentos que virão?”

Ela fica em silêncio, como pensando, e diz que em cada cena havia detalhes que a impressionaram muito, como a viola de corda, instrumento da Idade Média cujo som sempre a atraíra, marcando o compasso da vida, e que no sonho, mesmo na situação de espectadora não participante, cada cena lhe provocava muita emoção e surpresa.

Aponto que ela, na idade média da vida, pode se situar no meio de uma estrada e observar a vida que passa, contínua, sem parar.

Ela conta que, quando os noivos se foram, a aparição das crianças captou toda a sua atenção, encantando-a.

Digo-lhe que as meninas das várias idades mostravam seus corpos em florescência, e também como que desabrochavam em sua vida mental, como indicam as flores em suas cabecinhas - flores que podíamos correlacionar com as da cabeça da noiva e com o véu-borboleta-esvoaçante...

Ela diz que as crianças eram muito graciosas e pareciam estar se divertindo, cada uma de um modo muito seu. Como contraponto à alegria delas, foi o momento do sonho em que mais se entristeceu.

Lembrei-lhe que esse era o adeus à sua possibilidade de ser mãe, e que então era a despedida mais triste, visto que continuava a usufruir da vida de casal.

Ela concorda e acrescenta que o que a impactara na cena das crianças foram as pernas dos meninos, tão jovens.

Destaco que, assim como as crianças, ela se diverte de um modo muito próprio com as coisas que faz; também, como lamentara, semanas antes, o fato de seu marido não poder mais dançar tanto com ela, como sempre fizera, pois as pernas dele estavam envelhecendo...

Ela diz que as dela também: “Penso que é a parte do corpo que mais envelhece. Meus seios estão firmes ainda, mas as minhas pernas estão envelhecendo.

Lembra-se então de que, quando conheceu seu marido, ainda menino, ele usava calças curtas, mostrando os joelhos, como as dos meninos do sonho.

Digo que está constatando que, assim como o marido, já não tem as pernas de menina, como a de seus netos.

Ela diz: “Ainda bem que posso dançar.'”

“Sim”, respondo, “ainda bem que pode movimentar seu corpo e tem em sua mente uma criança alegre que ainda pode dançar e até saltitar”

Ela ri e fica em silêncio por algum tempo.

Chegamos ao final dessa sessão e, nas sessões seguintes, ela não torna a falar no sonho. Até que, cerca de um mês depois, logo ao chegar, comenta:

P: Estava pensando no lema de Mies van der Rohe: “Menos é mais”...

A: O que te lembra isso?

P: O caixão de madeira simples do sonho, sem alças douradas e enfeites. Era claro, de madeira avermelhada e muito bem-feito, como essas caixas feitas à mão por artesãos. Parecia leve: os carregadores estavam lentos e pesados porque estavam tristes, não pelo peso do caixão.

A: Você está me falando da tristeza pelas suas perdas da menopausa e pela constatação de que não tem tantos anos de vida pela frente, como sentia em sua juventude. Mas, se a gente enfrenta tudo isso simplesmente, tudo fica mais leve.

P: A música era triste. As flautas eram lentas. Lembrei-me do cortejo de Psiquê quando os pais a levam para casar-se com o noivo desconhecido e a deixam à beira do precipício onde Zéfiro depois vem para transportá-la a Eros. A música era fúnebre, e não alegre como as dos cortejos de casamento.

A: Assim como Psiquê, você sente que tem que enfrentar sozinha o seu desconhecido destino, levada pelo vento da vida, rumo ao desconhecido parceiro, com a esperança de ser retribuída com amor (Eros).

P: Fiz um trabalho agora para a revista X [uma revista feminina que está comemorando 50 anos] e o diretor de arte gostou muito.

A: Você não pode mais ter filhos, mas pode criar em parceria, em seu trabalho, com seu marido, aqui comigo.

P: O que é impressionante em Psiquê é a solidão e as surpresas que ela vai tendo em cada momento do conto. Você já leu?

A: Você queria saber se eu posso estar próxima de você em seus sentimentos ao enfrentar a sua nova vida. Mas, por outro lado, penso que me conta, pelo que me diz sobre Psique, que tem também seus pais internos que te acompanham nesse percurso em direção à sua vida futura. Mas você percebe que terá que enfrentar as surpresas que se apresentarão a cada dia sozinha.

P: É. Os pais vão até onde o caminho e a terra acabam. Como não podem ficar para ver quem virá buscá-la, deixam-na lá, vestida de noiva. Mas eles estão certos de que ela fará um bom casamento.

A: Seus pais internos parecem garantir a você que você fará boas parcerias, com quem produzirá obras criativas. Mas estava pensando na tristeza de Psiquê ao se despedir dos pais que se afastam ao som das flautas que parecem chorar...

P: Sim. Era um som que calava na gente.

 

Recapitulação da história afetiva do sonhador

El dormir es como un puente, que va del hoy al mañana.

Por debajo, como un sueño, pasa el agua, pasa el alma.

(“La noche”, Juan Ramón Jiménez)

Esse sonho dramatiza a história afetiva da Sra. A. - faz uma síntese diacrônica de um longo período de tempo, “como se [o sonho] tivesse à disposição uma fonte real de documentos, que escapasse à consciência clara, relativos à história afetiva do sonhador” (Guillaumin, 1979, p. 299).

Além disso, esse sonho tem uma dimensão prospectiva, como se preparasse a paciente para o que virá: o envelhecer, a morte... Guillaumin diz que a dramatização e a narrativa figurativa secundária nos obrigam a perguntar

se, pelo menos em certos casos, o ego do sonho não é, de diversos pontos de vista, mais “maduro”, mais integrado que o da vigília, e com um poder de organização muito diferente [do que o do ego da vigília]. [...] Não nos espantaríamos então que, no tratamento, esse poder - irrompendo na consciência por ocasião da lembrança do sonho, que reenvia a quem está em vigília objetos mais completos e conteúdos mais elaborados que os manipulados por ele na transferência direta - seja sentido como particularmente investido. (1979, pp. 299-300)

Penso que esse ego do sonho é o sujeito inefável do inconsciente (Grotstein, 2001).

Guillaumin chama a atenção para a função de paraexcitação dos sonhos de recapitulação, defendendo o paciente da perseguição dos objetos parciais, pois integram as situações de perda em cenas inteiras e, como no sonho da Sra. A., na vida inteira, favorecendo o luto, e não soluções melancólicas e patológicas.

Danielle Quinodoz chama a atenção para o fato da necessidade de quem envelhece repensar sua própria história: “Ele é levado a realizar que a presença da morte no quadro da vida lhe permite um outro modo de conhecer” (2008, p. 80), de se conhecer e conhecer os outros, nas relações intersubjetivas.

 

Sonho de luto

Dois meses depois, a Sra. A. trouxe-me o seguinte sonho:

Museus

Estou com meu marido num país estranho, hospedada numa casa luxuosa de um casal de árabes, pois meu marido está para realizar um trabalho para eles. A mulher é jovem e carinhosa; vem a meu quarto enquanto me visto para sair e me orienta quanto à roupa mais adequada para sair à rua em seu país: saias que cubram as pernas e sapatos baixos, confortáveis. Saímos e percorremos as ruas até o museu, deitados numa espécie de rede carregada por servos, meu marido, ela e eu.

Algumas ruas são cobertas por arcadas, ricamente adornadas por baixos-relevos e pinturas, que percorro com meu olhar, fascinada. São cenas da vida cotidiana, como as das gravuras japonesas do século XVIII, mas eram com árabes.2 Chegamos a um museu localizado abaixo da rua, acessível por uma estreita escada. Depois de percorrermos várias salas, chegamos a uma sala com grandes lajes de pedra exibindo fósseis: pequenos animais, alguns cortados ao meio, com as entranhas, graciosamente desenhadas, expostas para sempre... Demoro-me muito nessa sala e, quando chego ao final dela, não encontro meu marido e a jovem senhora. Percorro as outras salas sozinha e, quando chego à ultima, não os encontro também, como esperava. Saio e pergunto na rua onde é o museu mais próximo(que iríamos visitar). Dirijo-me para lá enquanto escurece.

Subo uma colina e encontro várias jovens em torno de uma banca de doces, pertencente a uma delas. Pergunto a esta pelo museu, e ela me indica à sua esquerda, estendendo a mão. Vejo-o iluminado no topo de uma pequena montanha. Ela me diz que tenho que descer até o rio(indicando-me o trajeto colina abaixo, na continuidade do meu caminho), atravessá-lo e subir então até o museu. E acrescenta:

“É perto.” Mas já é noite alta, e penso que é perigoso, que é melhor deixar para o dia seguinte. Pergunto-lhe onde encontrar um táxi. Ela me indica, na direção de suas costas, à direita, e vejo então que lá embaixo há uma avenida com tráfego intenso. Desço até lá e disponho-me a esperar o quanto for, contanto que o táxi chegue. Nesse momento, me dou conta de que não sei para onde vou: não tenho o endereço nem me lembro bem do nome estranho do casal que nos hospeda.

Acordo e meu marido não está a meu lado na cama. Chamo-o, e ele me responde. Vou até ele, que está lendo, e o abraço.

Quando volto a dormir, estou de volta à casa, com meu marido, numa espécie de balcão - como esses onde ficamos esperando por um lugar num restaurante, tomando um aperitivo -, e de repente surge sorridente o dono da casa com seu irmão, ambos muito parecidos e morenos, e o apresenta a meu marido, recomendando seus serviços.

Acordo reconciliada.

Perguntei-lhe sobre como se sentia nesse país estranho.

P: Sempre tive curiosidade de saber como vivem, pelo menos os árabes antigos,que viviam em Alambra, por exemplo. Deviam ser sofisticados, viver uma boa vida. A casa era linda, e a senhora doce. Fazia a gente se sentir à vontade. Disse-me delicadamente para pôr uns sapatos confortáveis, pois iríamos andar muito. Quanto à saia longa, eu já estava com uma — gosto de saia longa.

Digo que assim não precisava mostrar as pernas que estavam envelhecendo.

P: É isso mesmo. [Pausa.] E de repente lá estávamos nós três na rede, meu marido, ela e eu, no meio da rua, e os cenários se sucediam: céu azul, abóbadas.

Comento que essa moça poderia representá-la jovem e sexy, deitada ao lado de seu marido, como se fossem duas mulheres - marcando a relação sexualizada e o vínculo maduro que ela tinha com ele.

P: No sonho, não era estranho, era muito natural. Só senti um pouco de ciúmes depois, quando os procuro ao sair sozinha do museu. Pensei: “Para onde foram?” [Silêncio.] As formas nas pedras eram lindas, eram formas de vida eternizadas na pedra. Tinham o tom avermelhado da madeira do caixão...

A: Você parece estar fazendo o luto de seu corpo fértil, jovem e vivo como o da moça do sonho. Será que seu marido pode deixá-la para fazer um casal com uma moça como um dia você já foi?

P: Ó, doce pássaro da juventude!3 [Pausa.] O sentimento, quando não os encontrei, era de desamparo, solidão. Mas não perdi a esperança de encontrá-lose segui adiante. Quando a moça da banca de doces indicou-me o caminho, imaginei-me andando sozinha na boca da noite e o riozinho de que ela falava, que eu teria que atravessar, brilhando como um cordão de prata. Lá em cima, o museu iluminado. Mas não tive coragem de continuar meu caminho no escuro e resolvi voltar para casa.

A: Você diz que, ao procurar o casal, seguindo em frente, você sobe e se vê entre moças “doces”, carinhosas, como a que estava com seu marido. Para continuar sua caminhada, teria que deixar essas moças e seguir sozinha, descendo até o riozinho e depois subindo até o museu. Mas você decide “deixar para amanhã” essa ascensão ao museu, talvez acompanhada. Como está agora por mim.

P: Tive medo. Estava num país estranho. Não queria me arriscar. Desci depressa a colina por trás da moça e, de repente, estava numa rua feericamente iluminada, cheia de trânsito e barulho. Mas me sentia em segurança. Só fiquei “no ar” quando me lembrei que não sabia o endereço para voltar. Foi aí que acordei.

A: Você trabalhou no sonho suas angústias quanto a constatar que seu corpo “petrificou” para a gestação, assim como os animaizinhos na pedra avermelhada, que um dia foram vivos. O homem conserva a capacidade de procriar, e penso que é isso que está implícito no casal “mulher jovem/seu marido” que você põe no sonho. O luto do seu corpo fértil só pode ser feito por você sozinha, e é por isso que você se vê sozinha desde a sala dos fósseis e no seu caminho de elaboração desse luto.

P: [Silêncio.] Você conhece aquela música: “Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor...” É um homem que canta.

A: Você queria conservar a doçura e o carinho dessa mulher, para fazer seu marido gemer.

P: Queria mesmo. [Pausa.] Não quero enfrentar a velhice sozinha.

A: Você pode até enfrentar o museu desconhecido, que pode lhe revelar o que é envelhecer, mas quer a garantia de estar acompanhada.

P: De longe, esse museu parecia a Acrópole iluminada. Mas parecia ser perigoso atingi-lo sozinha àquela hora, entre o dia e a noite.

A: Então você prefere retornar à sua vida atarefada, atulhando sua mente de obrigações e barulhos, como a rua à qual você chega rapidamente.

P: Isso acontece mesmo. É difícil olhar para o que se perde. Mesmo que as lembranças sejam lindas.

A: Importante é que você percebe que não há como retornar.

P: Percebo. Mas foi tão impactante que acordei.

A: É como se tivesse escapado da situação.

P: Escapei. E constatei que meu marido estava lá, disponível e companheiro.

A: Tanto assim, que você pôde continuar a sonhar.

P: Nessa última parte, o personagem principal era ele, que o dono da casa fazia questão de apresentar ao irmão como uma pessoa muito especial. Eles eram muito morenos, como minha mãe: ela parece árabe - acho que é a ascendência portuguesa, moura.

A: Penso que a boa e firme ligação que você teve com sua mãe, que sempre lhe deu valor, pode ser básica para esse affair com seu marido, que pode ser produtivo para ambos, assim como no sonho os negócios a serem realizados com ele pelos dois irmãos.4

Peço-lhe então associações sobre o riozinho prateado, que teria que atravessar.

P: Era como uma correnteza de vida, mas eu ia passar sobre ele e ele seguiria o seu rumo.

A: E, enquanto ele vai fertilizar outras terras, você tem que ultrapassá-lo, deixá-lo para trás e seguir noutra direção, rumo ao museu, que pode guardar formas de vida, mas petrificadas.

P: Você sabe que há uma hipótese de que os antigos gregos guardavam seus tesouros no Partenon? Cada família tinha uma caixa, como hoje nos bancos.

A: Então, quando chegasse à Acrópole, você encontraria seus recursos guardados e poderia usá-los para ir em frente na vida?

Ela fica em silêncio por um longo tempo. Depois diz:

P: Não tinha pensado nisso. Eu queria seguir adiante, mas pensei que numa outra hora, talvez de manhã, fosse mais fácil. Poderia até curtir o passeio, sentar-me à beira do rio um pouco, e depois prosseguir.

A: Você me fala de que precisamos de tempo para metabolizar as angústias e tristezas que tomam de assalto a sua mente, assim como você temia arriscar-se a ser assaltada na boca da noite. Que agora, à luz do dia, junto comigo, pode começar a pensar nesse seu percurso desconhecido, com menos risco.

 

Adeus à procriatividade biológica e aos filhos crescidos

Durante uns seis meses, a Sra. A. teve vários sonhos com seus filhos bebês que cresciam: ela aparecia cantando para adormecê-los, ensinando-os a andar... No sonho que finalizou essa série, um de seus filhos (atualmente com 30 e poucos anos) aparecia com um e meio, em contraluz, na porta que dá para o jardim interno da casa da mãe dela, dizendo-lhe adeus e sorrindo-lhe, caminhando sozinho em direção aos canteiros cheios de flores.

Digo-lhe que parece que assim como em sua juventude dissera adeus aos pais (na associação sobre Psiquê no sonho contado anteriormente), podia agora tanto dar adeus à sua capacidade de ter bebês quanto aceitar seus filhos crescidos, andando com as próprias pernas para longe dela, em direção a uma vida fértil, como o jardim florido da casa de sua mãe.

Ao escrever, pensei também que ela sentia ter transmitido aos filhos a firmeza e fertilidade da terra-solo da casa materna, transmissão transgeracional que eles poderiam por sua vez passar aos netos dela (o mais novo com a idade do menininho do sonho).

 

Envelhecer acompanhada

Recentemente, com uma diferença de dois anos dos sonhos anteriores, a Sra. A. trouxe-me o seguinte sonho:

Estava em minha casa e chegou D., uma colega de faculdade que não via há muitos anos. Estava moça, com a pele bonita. Ela é bem morena, e pele morena não envelhece tão rápido. Olhei para meu marido(no sonho, era parecido com o William Hurt; eu acho que é porque ele ri com os olhos quando fala) e percebi que a pele da testa estava muito manchada. Tinha o tom avermelhado daquelas pedras do sonho do museu, com manchas assimétricas, de vida. Mas ele estava mostrando, muito animado, à amiga que chegara, nossos “tesouros”: umas louças antigas - contando a ela a idade das peças, onde as adquirimos... Pensei: a pele da gente não é como essa louça tão antiga, que permanece com o mesmo brilho e parece até mais bonita, pois é rara.

Digo-lhe que está envelhecendo com seu marido, que permanece entusiasmado e valoriza o que eles construíram juntos. E, se somos vivos e não inanimados como as louças, é bom que tenhamos companhias vivas que envelheçam conosco, com marcas de vida na cabeça...

P: Você viu O doutor,5 com William Hurt?6 Ele era um médico-cirurgião e tinha que se submeter a uma cirurgia na cabeça e não sabia o que poderia acontecer. Ele ficou muito mais próximo de seus pacientes...

A: Você sente que estou próxima de você talvez porque tenhamos que lidar com as mesmas perdas. Há muitas operações a serem feitas em nossas mentes.

 

Para despedir

Para terminar, gostaria de contar a vocês um sonho que tive enquanto escrevia este trabalho. Sonhei que recebia um presente pelo correio: um lencinho vermelho com listinhas coloridas nas beiradas, que se cruzavam nas pontas. Somente três semanas depois, ao reabrir Adiós a la sangre (Alizade, 2005), pude me dar conta do que inconscientemente estivera elaborando nesse sonho: um vivo adeus, compartilhado com amigas da minha geração, à vida que passa, inexoravelmente, como dizem as listinhas coloridas que se cruzam (Tustin, 1981), se cortam, indicando um limite, uma barreira, com poucos centímetros até as bordas. Listinhas idênticas às que aparecem a cada dia em meu velho notebook, que já me rendeu muitos trabalhos em seus muitos anos de uso. Listinhas que são como nossas rugas, que a cada dia aparecem. Desde que sejam coloridas, são marcas de vida, que nos ajudarão a acolher as experiências das gerações jovens que nos sucedem, e a fazer novos trabalhos com nossa mente fértil (Raphael-Leff, 2010),7 apesar do corpo que envelhece, frutos de nossa fertilidade psíquica...

 

Notas

1 Chão construído desde a primeira relação íntima com a mãe, ao nascer, base para todos os “casamentos” a advir, começando pelo “casamento” ou reconciliação consigo mesma (Bion, 1967), e presente na nossa relação e no campo analítico.

2 Penso que ela se refere às xilogravuras japonesas dos séculos XVII a XIX, que retratam a vida diária, chamadas ukiyo-e: figuras do mundo flutuante, expressão que marca a ideia da transitoriedade da vida. Moronobu (1682-1753), Harunobu (1724-1770), Utamaro (1756-1849), Kunisada (1786-1865) e Hiroshige (1797-1858) destacaram-se entre os muitos gravuristas desse período (Hashimoto, 2002).

3 Peça teatral de Tennessee Williams: Sweet bird of youth (1959).

4 Penso que os dois irmãos morenos muito parecidos podem referir-se aos dois seios maternos e, portanto, à relação materno-primária, básica para a constituição das relações futuras, em que vigora a oralidade (cf. Meltzer, 1986). Lembrei-me, então, que anteriormente ela dissera que seus seios eram “firmes”. É interessante também que a paciente, ao contar o sonho, diz que estava tomando aperitivo, como quando se espera um lugar num restaurante.

5 The doctor (1991), dirigido por Randa Haines, filme baseado na autobiografia do Dr. Edward E. Rosenbaum, A taste of my own medicine: when the doctor is the patient (1988).

6 William Hurt - essas perdas “irão machucar”: will hurt.

7 Em “The 'dreamer' by daylight” (2010), Joan Raphael-Leff desenvolve o conceito de identidade generativa, matriz da criatividade, formada no início da vida por meio das relações com os objetos primários parentais.

 

Referências

Alizade, M. (2005). Adiós a la sangre. Buenos Aires: Lumen.         [ Links ] Benedek, T. (1950). Climaterium: a developmental phase. Psychoanalytical Quarterly, 19(1),1-27. (Trabalho original publicado em 1927)        [ Links ]

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Correspondência:
Teresa Rocha Leite Haudenschild
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Recebido em 18.2.2016
Aceito em 2.9.2016

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