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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo Sept./Dec. 2016

 

OUTRAS PALAVRAS

 

A mente do analista: personalidade e teorias Teorias do analista e transformações em O

 

Psychoanalyst's mind: personality and theories Analyst's theories and transformations in O

 

La mente del analista: personalidad y teorías Teorías del analista y transformaciones en O

 

 

Celia Fix Korbivcher

Membro efetivo, analista didata e analista de crianças da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, a autora investiga a respeito das especificidades da tarefa analítica, levando em conta que essa é uma tarefa na qual o seu principal instrumento de trabalho é a pessoa do analista como um todo, a sua personalidade, a sua mente e as teorias utilizadas por ele. A autora desenvolve a ideia de que as teorias do analista necessitam estar incorporadas à sua pessoa como um todo, à sua mente. Recorre à teoria das transformações como uma teoria de observação do fenômeno mental na sessão analítica, detendo-se particularmente nas transformações em O (tornando-se a realidade). Sugere que as teorias do analista poderão fazer parte do campo das transformações em O e relaciona essa experiência a um momento de fruição estética, um momento que pode ser apenas vivenciado, e não traduzido em palavras. Essa experiência poderá, eventualmente, permitir que o paciente se aproxime de um estado em uníssono consigo mesmo e que mudanças importantes ocorram. O material clínico apresentado irá ilustrar essas questões e estimular a discussão.

Palavras-chave: mente do analista; personalidade; transformações em O; intuição; fruição estética.


ABSTRACT

In this paper, the author investigates the specificities (or particularities) of the psychoanalytic task. The main work instrument in this task is the whole person of the analyst, which includes his (or her) personality, his (or her) mind, and the theories he (or she) uses. The author develops the idea that analyst's theories must be incorporated into his (or her) mind, into his (or her) person in a holistic way. According to Bion's words, the author observes, the analyst must “be psychoanalysis” rather than “know about psychoanalysis”. The author resorts to the theory of transformations in order to describe a theory of observation of mental phenomenon in the psychoanalytic session, and focuses particularly in transformations in O (becoming reality). The author suggests that theories of the analyst may be part of the field of transformations in O, and relates this experience to a moment of aesthetic fruition - a moment to be only experienced, a moment that cannot be put into words. This experience may eventually enable the patient to approach (or reach) a state of mind in which he (or she) is “at one with himself (or herself)”. This experience may also enable some changes to happen. Clinical vignettes herein presented shall illustrate these issues and feed the debate.

Keywords: analyst's mind; personality; theories; transformations in O; intuition; aesthetic enjoyment.


RESUMEN

En el presente trabajo, la autora investiga las especificidades de la tarea analítica teniendo en cuenta que se trata de una labor en que el principal instrumento de trabajo del analista es su persona como un todo, su personalidad, su mente y las teorías que usa. Desarrolla la idea de que las teorías que usa el analista, en la relación con el paciente, necesitan estar incorporadas en la mente. Hace uso de la teoría de las transformaciones como siendo una teoría de observación del fenómeno mental en la sesión analítica, deteniéndose particularmente en las transformaciones en O (siendo la realidad). La autora propone la idea de un analista “siendo psicoanálisis” en contraste con “conociendo psicoanálisis”. Esta postura, asociada a la intuición psicoanalíticamente entrenada, podrá permitir que el paciente se acerque a un estado en unísono consigo mismo. La autora defiende que las teorías del analista, usadas dentro de este enfoque, podrán formar parte del campo de las transformaciones en O. Se presenta material clínico con la finalidad de ilustrar estas cuestiones y permitir el debate.

Palabras clave: la mente del analista; personalidad; teorías; transformaciones en O; intuición; fruición estética.


 

 

1. Introdução

Tenho me perguntado com frequência sobre aquilo que caracteriza o nosso ofício como psicanalistas. Afinal, que estranha atividade é essa, a psicanálise, cujas características a tornam uma prática que, por um lado, pretende ser científica e, por outro, se serve de instrumentos de trabalho tão pouco precisos? Que oficio é esse em que o analista dispõe como principal ferramenta de sua própria mente, uma mente sujeita às mesmas vicissitudes das de seu paciente? Que trabalho é esse em que predomina a incerteza, a imprecisão, e cujo fenômeno a ser observado pelo psicanalista na sessão será distorcido pelo próprio ato de observar (Bion, 1965/1983)? Que atividade é essa que propõe ao analisando desenvolver a capacidade para pensar, sendo que “o pensar”, em si mesmo, contrariaria a forte tendência do ser humano de evitar o pensamento? Que atividade é essa em que o paciente, ao nos procurar, vem buscar alívio para a sua dor e no lugar recebe a proposta de aumentar a capacidade de tolerá-la, além de ter que se conscientizar do desamparo inerente à condição humana?

Essas indagações têm ocupado a minha mente no exercício desse ofício ao qual tenho me dedicado já há décadas.

No presente trabalho, examino as especificidades da tarefa analítica, uma tarefa em que o principal instrumento de trabalho do analista é a sua mente, a sua personalidade e as teorias a ela incorporadas; enfim, a pessoa do analista como um todo.

Recorro à teoria de Transformações (Bion, 1965/1983) como um método de observação dos fenômenos mentais na sessão analítica, detendo-me em particular nas transformações em O (tornar-se). Desenvolvo a ideia de que as teorias utilizadas pelo analista pertenceriam ao campo das transformações em O e relaciono essa experiência a uma vivência de fruição estética. Sugiro que as teorias do analista necessitariam estar incorporadas à sua mente, à sua pessoa, o analista “tornando-se psicanálise”, e não “conhecendo sobre psicanalise”. O analista poderá, desse modo, favorecer que ocorram eventualmente mudanças psíquicas importantes no paciente. Apresento material clínico de uma paciente em que ilustro e discuto essas questões.

 

2. A mente e a personalidade do analista

Lembrei-me de uma situação contada por um jovem engenheiro que começava suas atividades profissionais na área de engenharia de fundações e que deveria executar projetos nessa área. Tão logo iniciou essa atividade, ele se defrontou com estados de extrema angústia devido à imprevisibilidade contida na tarefa. Os projetos, apesar de serem bastante precisos, incluíam uma dose de incerteza quanto ao solo a ser encontrado, como este reagiria à interferência de determinados procedimentos. O engenheiro logo verificou que qualquer manipulação naquele solo alterava as suas características e, sendo as fundações subterrâneas, as anormalidades surgidas eram inacessíveis à observação, podendo ameaçar a estrutura da edificação. Os níveis de angústia do jovem foram aumentando conforme ele foi colocando em prática os projetos. Imediatamente, ele tomou contato com a sua solidão sem poder encontrar uma autoridade que respondesse às questões imponderáveis que iam surgindo com a experiência. O engenheiro percebeu que contava, sobretudo, com a sua intuição.

Não seria esse um modelo comparável à atividade psicanalítica, na qual o analista também transita por um solo desconhecido, instável, em que as dúvidas, os questionamentos predominam? O analista, assim como o engenheiro, para realizar a sua tarefa depende de sua personalidade e de sua intuição, uma intuição psicanaliticamente treinada.

A personalidade do analista é o principal pilar sobre o qual ele se apoia para realizar a sua tarefa. As características da sua personalidade, além das experiências que foi amealhando ao longo da vida, atuam fortemente em seu campo de trabalho.

O analista, como o seu paciente, é dotado de uma mente com atributos intrínsecos a qualquer ser humano. Frente a determinados estímulos, ele torna-se sujeito a reações emocionais semelhantes às de seu paciente. Diante de situações de forte tensão emocional, em que a dor mental é intolerável, o analista pode também evadir-se, descarregando o excesso de tensão sobre o objeto. Ele pode ainda evitar o contato com aquela situação alucinando outra de sua criação ou se proteger recolhendo-se numa concha autística. O analista, do mesmo modo que o seu paciente, pode operar com as partes neuróticas, psicóticas, autísticas ou não integradas de sua personalidade. Como podemos observar, a tarefa analítica envolve certa dose de “aleatoriedade” e imprecisão, visto que o principal instrumento de trabalho do analista é a sua mente. Essa aleatoriedade, entretanto, é calcada na intuição psicanaliticamente treinada do analista e nas teorias das quais ele se serve.

A análise pessoal do analista representa o elemento mais significativo de sua formação. Ela é que irá favorecer o desenvolvimento de sua intuição, o conhecimento de seu próprio funcionamento mental e a atualização das suas potencialidades. O analista, por meio de sua análise pessoal, é treinado para manter o vértice psicanalítico, mesmo em situações de forte pressão emocional.

 

3. Teorias/Transformações

Bion, a partir de Transformações (1965/1983), principalmente com a noção de O, provocou uma importante mudança de paradigma na psicanálise. Para ele, o campo de trabalho do analista é o do aprendizado com a experiência emocional compartilhada pela dupla analítica na sessão, e a teoria das transformações é um método de observação dos fenômenos mentais dentro desse campo. Nessa teoria, Bion parte da ideia de Heizenberg de que “os fatos a serem observados são distorcidos pelo próprio ato da observação” (p. 62). Passam a ser incorporados ao campo analítico, além dos movimentos da mente do paciente, os movimentos da mente do analista, as suas emoções e a interação entre ambos. O campo analítico torna-se um campo complexo, “ilimitado em extensão e ainda mais, nenhum dos fenômenos naquele campo pode ser ignorado, porque todos interagem” (p. 62).

Segundo Bion, o analista não possui acesso aos fenômenos em si, à coisa em si, O, mas às suas transformações. Tanto as manifestações do paciente como as apreensões do analista na sessão são consideradas transformações pessoais de ambos. Isso nos leva a pensar que um mesmo fenômeno pode ser observado de diferentes pontos de vista, sendo que os diferentes significados atribuídos a ele podem ser igualmente pertinentes, a depender do vértice adotado pelo observador. Desaparece a partir daí o analista neutro, o observador passivo, estático, dono de um conhecimento absoluto, e passa a ser introduzido no campo analítico um analista “em movimento”, portador de uma mente que “age”, “inter-age” e “re-age” de forma dinâmica com o seu paciente (Korbivcher, 2001, 2010).

Bion nessa teoria considera diferentes dimensões da mente: a do pensar, a do conhecer e a do ser, tornar-se. Bion centrou inicialmente o seu interesse na dimensão do conhecer, K, deslocando-o posteriormente para O (tornar-se). O conceito de transformações está conjugado ao de invariância. Para que haja a transformação de determinado fenômeno, algumas invariantes dele devem se manter inalteradas; caso contrário, não seria uma transformação desse fenômeno, mas outra experiência.

Bion deixa em aberto a possibilidade de que outros grupos de transformações possam ser incluídos na teoria das transformações. Em 2001, propus acrescentar aos grupos de transformações sugeridos por Bion as transformações autísticas e, em 2013, sugeri incluir também as transformações não integradas (Korbivcher, 2001, 2013).

As transformações autísticas se caracterizam por se formarem num meio autístico, o que implica a ausência da noção de objeto interno e objeto externo. Algumas de suas invariantes seriam: presença de atividades autossensuais, ausência de vida afetiva, experiência de “vazio afetivo”, e as relações entre eu e não eu dominadas por sensações -“objetos e formas autísticas” (Tustin, 1986).

As transformações não integradas ocorrem num meio não integrado. São caracterizadas pela presença de intensas manifestações corporais não mentalizadas, sem representação psíquica. Seriam comparáveis ao que Bion (1997) denomina de estados inacessíveis da mente, estados embrionários acompanhados de manifestações de medo subtalâmicas. Algumas das invariantes das transformações não integradas seriam: presença de manifestações corporais, um estado constante de extrema vulnerabilidade, vivências de ameaça de queda num buraco negro, de ameaça de diluição e dissolução, além da ameaça constante de perda da noção da própria existência.

 

4. Transformações em O

Escrever sobre O, sobre transformações em O, pode parecer paradoxal, pelo fato de O, como Bion define, ser incognoscível. Podemos apenas realizar algumas conjecturas a respeito da noção de O.

Em relação a O, Bion escreve:

Eu vou usar o sinal O para denotar o que seria a realidade última representada por termos como realidade absoluta, verdade absoluta, deidade, infinito, a coisa em si. O não cai no domínio do conhecimento ou do aprendizado, a não ser incidentalmente. O pode tornar-se, mas não pode ser conhecido. É escuro e sem forma, e entra no domínio de K quando evolveu num ponto no qual pode ser conhecido. (1970, p. 26)

Bion também afirma:

O hiato entre conhecer um fenômeno e ser a realidade se assemelha ao hiato entre conhecer sobre psicanálise e ser psicanalisado. Em outras palavras, existe um hiato entre os estados de mente requeridos para conhecer fenômenos e o estado de mente “sendo a realidade” [...]. A interpretação deve fazer mais do que aumentar o conhecimento. (1965/1983, pp. 148-149)

Isso significa que a interpretação deve fazer mais do que aumentar o conhecimento, o que provocaria apenas um acúmulo de informação, e não um desenvolvimento real e de experiências transformadoras. Com essa proposta, Bion expandiu o campo analítico, de um campo finito para um campo infinito.

Grotstein é um autor que estudou profundamente a noção de O. Em relação a O, ele escreve:

Bion atravessou agora o Rubicão da respeitabilidade psicanalítica em Londres e iniciou uma revolução metapsicológica, cujos ecos estão ainda repercutindo no panorama psicanalítico mundial. De pé verdadeiramente sobre um “pico em Darién”, ele penetrou no mundo plano do positivismo de Freud e Klein (as pulsões instintuais como causa primeira) e introduziu a incerteza cósmica interior ou exterior, a infinitude, o relativismo e a numinosidade como seu sucessor. (2007, p. 114)

Grotstein escreve ainda:

Bion rompeu as fronteiras procrustianas que caracterizavam o positivismo lógico de Freud e Klein e empurrou a psicanálise para o “infinito profundo e sem forma”, O [...]. Ele tinha transposto o limite do mundo conhecido. Eu acredito de fato que ele tenha transcendido as estruturas do nosso conhecido Weltanschauung psicanalítico. (p. 116)

Bion, ao conceitualizar O, como diz Grotstein, promove uma mudança importante de paradigma na psicanálise. Ele abandona a ideia de que o campo analítico é finito, compreendido entre consciente e inconsciente, expandindo-o para a dimensão do inefável, para um campo infinito e ilimitado no qual a incerteza e a dúvida prevalecem.

A respeito de O, Reiner escreve:

O é o pilar das ideias de Bion, em torno do qual todas as suas teorias se juntam. Rêverie, função alfa, pensamento sem pensador, suspensão de memória e desejo (Bion, 1967), PS→D, etc. Então uma compreensão emocional das ideias de Bion se torna essencial para se ter uma realização das suas ideias. Pode-se ver a experiência metafísica de O como um fato selecionado que organiza e ajuda a dar sentido às teorias de Bion. Isso corresponde ao inerente atributo humano de uma necessidade fundamental pela verdade, à qual Grotstein (2007, p. 139) referiu como a ideia de uma “verdade instintual” presente ao longo do trabalho de Bion. (2012, p. 2)

Reiner considera O um conceito central nas ideias de Bion, um “um fato selecionado” que organiza e ajuda a dar sentido às suas teorias. Com o conceito de O, o foco de interesse de Bion sobre o “pensar” a realidade muda para “tornar-se” a realidade. Essa ideia aponta para a necessidade de haver uma realização emocional e não intelectual a respeito dos conceitos teóricos de Bion.

Bion menciona enfaticamente a importância de se considerar o tipo de linguagem que o analista emprega com o seu paciente. Ele indaga:

Com quem você está lidando quando alguém vem ao seu consultório? Que animal é este; um cientista ou aquela pequena criatura; o peixe (referindo-se a algo que havia sido dito pela audiência sobre um cientista e um peixe). Se o paciente demonstra ansiedade, dizendo: “Doutor, eu estou com medo de estar ficando louco”, e se dá conta de que alguma coisa está interferindo com o seu processo de pensamento verbal articulado, nós iremos dizer para este homem articulado algo que poderia infiltrar-se através da mesma via pela qual foram expressas ideias aparentemente articuladas e racionais. Com qual animal iremos falar? Que linguagem você utiliza quando fala com o seu cachorro que está subindo numa árvore perseguindo um gato? Francês, inglês, português, e por que você acha que o animal compreende você? (1978/1992, pp. 173-174)

Nessa citação, Bion estimula o analista a indagar-se sobre quem é o paciente com quem ele se encontra e qual é a linguagem que utilizará com ele para se comunicar, principalmente se tratar-se de algo primitivo. Essa linguagem, a meu ver, seria a linguagem das emoções, o analista em uníssono com o seu paciente, “tornando-se” a emoção do momento da sessão. Segundo Bion (1970), tal experiência é decorrente da capacidade negativa1 do analista e da sua disciplina de ausência de memória e desejo.2 O analista, estando nesse estado de mente, pode encontrar uma linguagem capaz de alcançar o seu paciente. Esta seria uma linguagem de êxito,3 conforme Bion a denomina.

No campo das artes plásticas, a arte contemporânea é um movimento que provocou uma mudança radical de paradigma, próxima à que ocorreu na psicanálise com Bion. Esse movimento propõe instalações dentro das quais o apreciador se aloja e se submete à experiência emocional despertada pela sua interação com a obra. O apreciador abandona, desse modo, a postura de um observador externo que apenas contempla passivamente a obra.

Visitando o Museu Guggenheim, em Bilbau, fui acometida de um impacto ao entrar numa sala onde se encontravam esculturas de Richard Serra, The matter of time. São enormes volumes formados por sete esculturas monumentais feitas por finas chapas de aço marrom-escuro, altíssimas, colocadas próximas umas das outras e levemente inclinadas em relação ao solo. Elas estão dispostas de um modo elíptico, ou espiral-concêntrico, ou labiríntico, formando caminhos estreitos que podem ser penetrados e explorados pelo visitante. Toda a instalação e as esculturas individualmente dão, ao mesmo tempo, a impressão de muita leveza e de grande instabilidade. Ao interagir com a instalação como um todo, fui tomada por forte impacto emocional, desencadeando-me vivências conflitantes de encantamento, instabilidade e angústia. Essa talvez fosse a intenção de Serra, uma vez que, segundo o artista, o peso é para ele um valor. Isso está associado a uma experiência que Serra teve aos 4 anos de idade, em que ele viu um gigantesco navio sendo lançado na água e transformado de “enorme peso morto em uma estrutura livre, leve e flutuante” (Espada, 2013, p. 147).

A experiência emocional vivenciada por mim com essa obra de Serra poderia ser considerada um momento de fruição estética ou, nos termos de Bion, um momento de aproximação a O; apreciador em uníssono com a obra, “tornando-se” a experiência emocional provocada pelo contato com a obra.

A transformação em O é uma experiência em curso que emerge num determinado momento da sessão analítica a partir da interação viva entre analista e analisando. Essa vivência poderá propiciar ao analisando uma experiência de fruição estética em que prevalece a emoção do momento, e não um conhecimento racional traduzido em palavras. Experiências como essa podem ser modificadoras para a dupla.

 

5. Material clínico

A paciente telefona-me na véspera da sua sessão solicitando uma mudança de horário. Explica que deverá buscar os filhos na escola e que não gostaria de perder a sua sessão. A situação me sensibiliza e decido atender ao seu pedido.

Ao chegar, noto-a envolta numa atmosfera carregada. Entra com o semblante sério, deita-se e permanece longo tempo em silêncio. Sinto-me isolada, sem possibilidade de fazer contato, o que me surpreende devido à sua solicitação para não perder aquela sessão.

A seguir, num tom bastante desanimado, diz que havia se dado conta de que precisou se esforçar muito para manter uma conversa com uma criança que estava com ela no carro. Diz que é sempre assim, que a conversa não flui, não sabe sobre o que falar, mas sabe que deve participar. Comenta, porém, que o contato não é natural, que se sente sem vida, meio vazia.

Digo-lhe que talvez ela se sinta sem conter dentro de si algo valioso a oferecer; daí a sua tendência a se isolar, surgindo então o sentimento de vazio.

Após um tempo em silêncio, diz:

Tive um sonho com X [um amigo] que me deixou muito assustada. Eu estava “ficando” com X quando me dei conta de que estávamos num rio onde havia adiante uma enorme cachoeira. Eu estava sendo arrastada pela correnteza e via que eu iria despencar lá para baixo. Fiquei com muito medo, mas com grande esforço consegui me agarrar num galho e sair do rio.

A paciente está nesse momento envolta num clima de forte emoção. Fico impactada pelas imagens do sonho e penso que talvez tivessem relação com o movimento anterior, mas não digo nada sobre isso naquele momento. Depois de algum tempo, indago: “Mas o que te assustou no sonho?” Ela responde:

Tenho medo de me deixar levar. Fiquei muito assustada com a ideia de ser arrastada. Eu sempre sou arrastada pelas situações. Pensei que, se eu não me cuidar, vou ser arrastada por essa história com X, e a minha vida vai despencar.

Fala em seguida, num tom bastante animado, que X havia lhe telefonado e acha que ele também teria sonhado com ela. A sua emoção vai se modificando e excita-se com a própria narrativa de suas fantasias com X. Digo-lhe que parecia muito entusiasmada, mais viva e ao mesmo tempo assustada com isso, com a possibilidade de sonhar, de fantasiar.

Percebo que eu havia deixado de lado a vivência inicial de vazio, narrada pela paciente, e as imagens do sonho, que tanto me impactaram. Digo-lhe que, através desse sonho, ela estaria informando que o seu estado de recolhimento do início da sessão, o estado de vazio, talvez a protegesse de vivências de forte ameaça de despencar, ameaça de perder a noção da própria existência diante da percepção de ser separada.

Noto que o clima entre nós se modifica. Ela parece interessada no que eu digo. Aponta que, na véspera, fora a um evento com uma amiga e que percebeu não ter nada a comentar e que não participou da conversa. Diz que sentiu um vazio, um buraco muito grande dentro de si. Fala que o marido lhe telefonou perguntando se ela não voltaria para casa e diz que é bom ter o marido para cuidar dela e colocá-la na linha: “Sem ele, talvez eu me deixasse levar, e tudo desmoronaria.”

Digo que não sente ter dentro de si algo que a norteie, que a direcione, e que parece precisar se agarrar a qualquer coisa, em alguém, ao marido, a mim, para manter um estado de continuidade e não desmoronar.

Ela se recolhe e, em seguida, bastante angustiada, comenta que estava pensando que tem medo de não estar vivendo a vida, de estar se isolando e de não estar presente nas situações importantes. Diz que a incomoda perceber que os filhos estão crescendo e que ela não tem acompanhado de perto a sua evolução. Diz que eles fazem uma porção de atividades, e ela não os acompanha em nada, pois quem os leva é o motorista.

Ela entra num clima intenso de autoacusação. Percebo o exagero da situação e a sua tentativa de me arrastar com ela para esse clima, parecendo obter certo gozo com isso.

Diante desse exagero, indago: “Mas você acha que isso é assim como está dizendo?”

Ela pensa e, um tanto aliviada, fala que de fato “não é bem assim”. Diz que nos finais de semana está com eles em tempo integral. Conta que estiveram no clube e que observou tudo o que fazem nas aulas, como eles progrediram. Envolta num clima de forte emoção, ela diz:

Ficamos brincando na piscina. Depois eu coloquei uma boia de braço em cada um, e nadamos muito, cada um segurando num ombro meu. Foi tão bom! Senti-me acompanhada, como se fossem meus companheiros. Nadamos muito devagar. Eles também gostaram muito.

Enquanto narra essa experiência, comove-se e começa a chorar. Diz que não sabe por que está tão emocionada. Chora e repete diversas vezes que não entende por que está tão emocionada assim.

Essa reação me toca por vê-la viva, emocionada, de um modo novo entre nós. Comento perceber que o clima da sessão mudou muito desde o início e indago: “E aquele vazio, e o buraco, onde foram parar?'” Digo que, ao contrário do que ela havia afirmado antes, eu a via agora muito emocionada ali comigo, vivendo uma experiência, uma situação que não supunha ser capaz de viver, algo diferente, algo novo.

 

6. Comentário

Nos primeiros movimentos da sessão, podemos notar o dinamismo da relação analista/ analisanda, uma modificando a outra a cada momento. A analista, já antes dessa sessão, empática com as dificuldades da paciente, aceita prontamente o seu pedido de troca de horário, o que resulta numa expectativa sua de encontrar-se com alguém que gostaria de se comunicar. Para a sua surpresa, a paciente ao chegar encontra-se imersa num estado de recolhimento, sem motivação para contato, percebendo-se sem vida, sem energia, meio vazia, desligada e muito distante. A analista relaciona o estado de isolamento ao fato de ela se sentir sem nada dentro, vazia, sem ter com o que contribuir. A paciente narra em seguida um sonho em meio a um clima de muita angústia, principalmente ao se referir à correnteza forte e ao terror de ser arrastada, de despencar, devendo agarrar-se num galho para não cair. Essa imagem impacta a analista. Surgem dúvidas e inquietações. O que teria levado a paciente a romper o clima anterior e narrar o sonho? Seria uma reação à fala da analista, por ter lhe apontado o estado de vazio? Observamos uma reação do solo/mente da paciente à interferência da analista, sem a possibilidade, entretanto, de precisarmos o que teria ocorrido. Nas associações ao sonho, a paciente menciona o seu temor de ser arrastada pela relação com X e de sua vida desmoronar. Paciente e analista, possivelmente, diante da angústia provocada pelo impacto da imagem da correnteza que aparece no sonho, imergem num estado de alucinose, envolvendo-se ambas com a narrativa a respeito de X. A analista, ao se conscientizar desse fato, resgata o estado de recolhimento do início da sessão e o associa à imagem de queda narrada no sonho. O recolhimento é visto como uma medida protetora em face de vivências aterrorizadoras, ante a ameaça de perda da noção da própria existência. A paciente, ao se conscientizar quanto ao isolamento em que vive, inicia uma atividade autoacusatória, vista pela analista como exagerada, o que a leva a indagar à paciente se seria assim mesmo. Essa indagação propicia uma ruptura no clima da sessão. A paciente, muito emocionada, passa a narrar o episódio com os filhos na piscina. A intensidade da emoção toma conta do momento. A analista, já em outro estado, registra para a paciente a diferença entre esse estado que está compartilhando ali, naquele momento, e o estado de vazio emocional do início da sessão.

 

7. Discussão

Como podemos saber se a abordagem adotada pelo analista irá alcançar o paciente? Como saber quais seriam as repercussões de suas intervenções sobre a mente do paciente? Elas promovem desenvolvimento, maior contato do paciente consigo mesmo, ou catástrofe? O que faz com que o analista siga uma direção e não outra? Seria a sua intuição? Seriam as teorias que ele utiliza? Como saber se a linguagem que utilizamos com o paciente será compreendida no local para onde a endereçamos e se irá propiciar desenvolvimento ou uma catástrofe (Bion, 1978/1992)?

Não dispomos, evidentemente, de respostas para tais indagações, devido à dimensão de imprevisibilidade contida na tarefa analítica. Dispomos apenas de algumas evidências indicando a direção que foi tomada e as suas consequências.

A sessão narrada nos oferece uma gama de possibilidades para pensarmos a respeito dessas questões. Vou me deter em dois movimentos que mais me chamaram a atenção.

O sonho narrado pela paciente seria um desses movimentos. O sonho poderia ser abordado de diferentes vértices, todos igualmente pertinentes dependendo do referencial adotado por aquele analista específico.

A analista, diante da experiência emocional provocada pela narrativa do sonho, relacionou o clima de isolamento e de vazio compartilhado com a paciente no início da sessão à atmosfera de terror narrada no sonho - medo de ser arrastada pela correnteza e de despencar num espaço sem fim. A analista, partindo de sua intuição e de teorias incorporadas à sua mente, direcionou-se para a área de vivências primordiais. O isolamento do início da sessão foi considerado como uma manobra protetora ante a ameaça da consciência da separação do objeto. Com o evoluir da sessão, entretanto, a paciente é capaz de sair desse isolamento e, por meio da narrativa do sonho, expressa vivências primordiais aterrorizadoras de não integração, a que fica submetida. Outro analista poderia pensar que as fantasias sexuais em relação a X é que a ameaçavam de ser arrastada pela correnteza, de despencar e perder o controle da situação. Tal analista estaria considerando essa comunicação como parte de áreas mais desenvolvidas da mente, áreas pré-edípicas.

Examinemos agora a abordagem da analista diante da sequência em que a paciente passa a se acusar de maneira exagerada de estar perdendo fatos importantes do desenvolvimento dos seus filhos, em função de seu estado de isolamento. A analista, sentindo-se “arrastada” por esse exagero, indaga se seria assim mesmo. Essa formulação bastante simples emerge de súbito, provocando certa surpresa na paciente. Esta passa a questionar emocionada a própria afirmação por meio da narrativa de sua experiência com os filhos na piscina. Decorre daí um clima intenso de forte emoção que passa a ser compartilhado pela dupla, ao contrário do clima que havia no início da sessão, um clima vazio e sem vida.

Paciente e analista encontram-se aqui em uníssono uma com a outra, o que significa que a analista, em meio à disciplina de ausência de memória e desejo e à capacidade negativa, surge com um movimento espontâneo, genuíno naquele instante, provocando uma ruptura no andamento do curso da sessão, de modo a produzir uma atmosfera nova, uma nova dinâmica, distante daquela estabelecida anteriormente entre a dupla.

Como indaga Bion, como sabemos se a linguagem que utilizamos com o paciente é compreendida no local para onde a endereçamos? A única evidencia de que dispomos é a resposta da paciente à nossa abordagem. Na sequência de movimentos descrita, verificamos que a direção tomada pela analista propicia à paciente vivenciar uma importante experiência modificadora, em que analista e paciente passam a operar na dimensão da área do “ser”, O, e não mais do “conhecer”, K. Esse seria, a meu ver, um momento de fruição estética, que não pode ser traduzido em palavras, apenas vivenciado emocionalmente. Essa experiência decorre do emprego de uma linguagem de emoções - o analista “tornando-se a emoção”, O, distante da linguagem do conhecimento, K. Não se trata, porém, de uma linguagem aleatória, mas calcada na intuição psicanaliticamente treinada do analista diante de sua experiência emocional do momento.

O analista, para propiciar ao paciente aproximar-se de O, deve estar também em uníssono consigo mesmo, de modo que a sua comunicação com o paciente brote de dentro de si por meio de uma linguagem simples, espontânea, de maneira integrada à experiência emocional daquele momento.

Para finalizar, cito Bion:

No momento em que não estamos atendendo pacientes, lendo livros e lendo sobre psicanálise, nós não estamos somente mortos, mas condenados. Não há futuro nisso. Tudo o que ocorre depois disso é aprender mais e mais teoria psicanalítica, o que eu acredito que já exista em grande quantidade. Penso que necessitamos de muito poucas teorias e que é importante [...] fazer a sua leitura de maneira que essas teorias se tornem parte de você e, para o bem ou para o mal, essa é a sua compreensão delas, na extensão em que essas teorias em particular são trabalháveis por você. Isso é o que é realmente importante. (2013, pp. 6-7)

Penso que essa passagem de Bion sintetiza muitas das ideias apresentadas neste trabalho. Bion nos desafia a pensar a respeito do uso que o analista faz das teorias na sua prática clínica. Ele não desaconselha estudarmos ou lermos sobre psicanálise, mas afirma: fazer a sua leitura de maneira que essas teorias se tornem parte de você” ou, melhor dizendo, o analista sendo psicanálise.

 

Notas

1 A capacidade negativa foi citada numa carta de John Keats a seu irmão, em que diz que “um homem deve ser capaz de permanecer em meio a incertezas, mistérios e dúvidas, sem ter de alcançar nervosamente nenhum fato e razão” (Keats, 1966, pp. 328-329).

2 Bion (1970) recomenda que o analista, ao trabalhar com o seu paciente, desenvolva a disciplina de ausência de memória, de desejo e de compreensão. Bion cita uma carta de Freud para Lou Andreas-Sa-lomé, em que sugere que o analista deve cegar-se artificialmente ao trabalhar com o seu método. Bion acrescenta que o método para conseguir cegar-se artificialmente seria rechaçar memória e desejo. A presença de memória, desejo e compreensão, segundo Bion, opacifica a mente do analista.

3 Bion utiliza o termo linguagem de êxito baseado na ideia de Keats sobre o “homem que alcança”. Este é aquele que, por meio da capacidade negativa, tolera dúvidas, incertezas, mistérios, sem a busca desesperada pelo fato ou motivo. A linguagem de êxito é diferente da linguagem de substituição - linguagem que é um substituto para a ação, e não um prelúdio a ela. A linguagem de êxito inclui o linguajar a um tempo prelúdio e forma de ação. A confluência psicanalista-analisando é em si exemplo de tal linguagem (Bion, 1970, p. 125).

 

Referências

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Recebido em 21.8.2015
Aceito em 26.4.2016

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