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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016

 

RESENHAS

 

Orientação profissional

 

 

Lilian Quintão

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 

Autora: Maria Stella Sampaio Leite
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2015, 248 p.
Resenhado por: Lilian Quintão Lilian

 

 

É bem-vinda a contribuição de Maria Stella Sampaio Leite, Orientação profissional, mais um livro da coleção Clínica Psicanalítica, organizada por Flávio Ferraz. Assunto da maior importância, prática amplamente exercida, mas que carece de publicações na área da psicanálise que deem conta da complexidade do tema em termos de articulação com a teoria psicanalítica e a teorização da prática. Trabalho de fôlego, a autora não só faz um apanhado geral de todos os conceitos e princípios que, como psicanalista, utiliza como também apresenta uma clínica viva, casos de adolescentes e suas famílias, mostrando as técnicas que usa sem medo de se expor. Além disso, coloca questões fundamentais para sua prática e as discute, como veremos a seguir.

O livro está divido em duas grandes partes: “Teoria e fundamentos” e “Por uma clínica viva”. É dirigido a psicanalistas e também a interessados no assunto, sem perder o rigor teórico nem empobrecer conceitos essenciais da psicanálise.

Já na apresentação, Maria Stella coloca a posição daqueles que a procuram - em sua maioria, adolescentes: “desnorteio”, decepção diante da realidade da vida, de caminhos que não acontecem em linha reta; na sequência, propõe uma discussão muito interessante a respeito de três questões fundamentais para o profissional que recebe esses adolescentes: Profissão? Vocação? Ocupação? A questão não é escolher - ou descobrir, pois muitas vezes a demanda é essa - a profissão certa para a pessoa certa, nem revelar uma vocação como se fosse um dom a ser desvendado, e muito menos indicar uma ocupação que seja adequada às capacidades. No entanto, trata-se de contemplar as três. Daí a autora denominar seu trabalho com orientação vocacional/profissional (OV/P).

É aqui que a psicanálise entra em cena, porque a ideia é lidar com as sobredeter-minações de cada um: sua história, suas identificações, suas aspirações - em última análise, seu desejo. Trabalho de extrema delicadeza, trabalho sobre meio-fio, um pé na realidade, outro na fantasia e nas motivações inconscientes. É justamente a habilidade de movimentar-se nessa zona cinza, de dúvidas e contradições, ou em zigue-zague - como diz a autora -, sem oferecer atalhos nem fazer dessa prática uma pequena psicoterapia, que torna um pequeno trabalho grande. Pois estamos falando de adolescentes e seus sonhos, ideais e desejos; de algo que venha a dar um sentido à sua vida, que os ajude a assumir suas escolhas como sujeitos, em nome próprio, e que possa ter a ver com seu destino. Que seja uma experiência que deixe sua marca, uma experiência inesquecível!

Trata-se de uma psicanalista às voltas com uma prática focada e objetiva. Para tanto, lança mão de um arcabouço teórico sólido - basta ver a bibliografia. Freud está presente do começo ao fim. No entanto, o autor em que se apoia como fonte con-ceitual é o falecido psicanalista argentino Rodolfo Bohoslavsky, precursor da OV/P com base psicanalítica. Esse autor construiu uma teoria e uma metodologia de intervenção, em uma perspectiva clínica, que têm como referência Freud, Melanie Klein, além de outros autores argentinos contemporâneos e fortemente comprometidos com o social, como Bleger e Pichon-Rivière. Bohoslavsky revolucionou a forma de entender o processo de OV ao privilegiar a dimensão simbólica na análise da problemática psicológica do paciente e do sentido dado por ele às ocupações e profissões. Estão em jogo nessa dinâmica a interação dialética entre sujeito e objetos internos e externos, seus vínculos.

Uma questão de grande importância é a construção das identidades pessoal, profissional e vocacional - o eu sou eu -, sempre referidas ao outro e sobredeterminadas por circunstâncias de vida do sujeito. “Justamente porque a identidade veicula, expressa e articula as determinações de ordem subjetiva com determinações de ordem objetiva que ela deve ser tomada como objeto de análise privilegiado na orientação vocacional (Bohoslavsky, 1977; 1983)” (p. 69).

Outro conceito fundamental para esse autor é o mecanismo de reparação, forjado por Melanie Klein, em que o luto pelos objetos primários internos e externos é um dos motores principais. Algumas citações:

A identidade vocacional se pauta pelos processos reparatórios do sujeito e pela forma como ele enfrenta seus lutos.

Analisar a escolha procurando entender o caráter sintomático da decisão, que requer uma leitura interpretativa, a fim de entender o caráter sobredeterminado da escolha.

A estrutura do aparelho psíquico, por um lado, e a estrutura social, por outro, que se expressam através da dialética de desejos, identificações e demandas sociais, [...] devem ser objetos de nossa consideração.

O processo de ov focaliza a dialética das identificações com vistas à construção da identidade, os mecanismos de luto e reparação e a autonomia egoica na tomada de decisão. (pp. 69-72)

O capítulo sobre a adolescência abre com o tema central da demanda e desse momento da vida do indivíduo, o futuro. Não é pouco e não se trata apenas de uma escolha, mas de felicidade, esperanças, sonhos, medos. Aqui, Stella introduz o arsenal teórico com o qual irá trabalhar, a começar pela análise das identificações e suas raízes inconscientes, sua gênese, o caráter defensivo que lhes deu origem. Quando elas atuam com autonomia dos motivos originais, diz Bohoslavsky, podem ser pensadas como características próprias da pessoa. O trabalho do adolescente é elaborar os ganhos e perdas, as mudanças corporais, as mudanças de posição na constelação social e familiar, o luto de algumas das identificações, principalmente as parentais, e nesse sentido poder deles separar-se, buscando novos espaços e novas relações. Poder desviar a energia sexual para o exterior, superar o complexo de Édipo. Para tanto, há que se levar em conta o mecanismo de sublimação, que se encarregará do deslocamento da pulsão sexual para caminhos e objetos outros, que contemplem tanto a gratificação narcísica quanto o ideal do eu. Em outras palavras, movimento de criação de novos objetos de satisfação erótica (p. 47). Citando autores como Winnicott (e os conceitos de espaço transicional, de criação), Lacan e Nasio, Maria Stella conclui: “o trabalho livremente escolhido tem o mesmo status das produções culturais e da religião, todas derivadas da sublimação, as pulsões sexuais desviadas do alvo e do objeto, capazes de comover profundamente o sujeito” (p. 52).

Na segunda parte do livro, a autora apresenta alguns casos clínicos e a forma como os trabalhou. Suas etapas, entrevista, atendimento individual, mas basicamente grupal, atendimento ao jovem junto com os pais, a realidade ocupacional, a escolha profissional no imaginário familiar. Essa segunda parte, deixo ao leitor contemplá-la e enriquecer-se com o colorido da clínica em funcionamento. Vale a pena ler.

Em última análise, estamos falando do desejo e de seus paradoxos. É esse o tema central, o desafio e a delicadeza do trabalho de Maria Stella - trabalho de filigrana e cuidado com os sonhos do jovem. É por isso - também - que seu trabalho é tão bem-vindo.

Boa leitura!

 

 

Correspondência:
Lilian Quintão
lilianquintao@terra.com.br

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