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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016

 

RESENHAS

 

O claustro uma investigação dos fenômenos claustrofóbicos

 

 

Joice Calza Macedo

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas GEPCampinas

Correspondência

 

 

Autor: Donald Meltzer
Tradutora: Maristela Spera Martins Editora: Karnac, Londres, 2015, 190 p.
Resenhado por: Joice Calza Macedo

 

 

A editora Karnac nos brindou com uma das grandes obras do psicanalista Donald Meltzer: O claustro: uma investigação dos fenômenos claustrofóbicos (1992). Resenhar esse livro constituiu-se, para mim, numa tarefa de muita responsabilidade frente à profundidade do que é examinado e discutido pelo autor, que, com sua sensibilidade clínica, contribuiu com ideias originais que ajudam a desvelar a complexidade da mente humana.

Logo nas primeiras páginas nos defrontamos com o que é de informação pública, o seu profundo conhecimento da obra de Freud, Klein e Bion. Por cada página do livro, perfila a riqueza de sua experiência clínica; notamos com clareza que, para ele, a compreensão das estruturas iniciais é mister para o crescimento da mente simbólica. O livro, nas próprias palavras de Meltzer, é um “pequeno livro”, mas isso não significa que seja um livro fácil, pois o assunto tratado é o claustro, que nos dizeres de Meltzer é um “vale das lágrimas e não 'O vale da edificação das Almas', de Keats” (p. 119). Precisamente, esse trabalho traz um valio-síssimo aporte teórico, que nos ajuda no atendimento de pacientes com sérias perturbações narcisistas.

Donald Meltzer amplia o conceito de identificação projetiva introduzido por Klein e enriquecido por Bion. É uma obra que aborda a fantasia onipotente de intrusão nos objetos internos, através de práticas masturbatórias, que principiam nas primeiras semanas e meses de vida, cujo objetivo é livrar-se da dor psíquica. Desde a introdução do livro e ao longo dos 13 capítulos, sem contar com o apêndice (de Meg Harris Williams), nos deparamos com um autor que desenvolve um estilo e uma compreensão sobre aspectos capitais para a psicanálise.

O livro é dividido em três partes. A primeira prepara o leitor para o tema que será desenvolvido a posteriori - é composta de uma introdução e dois capítulos. A segunda parte é apresentada em quatro capítulos, cuja impressão na leitura é de irmos penetrando cada vez mais no coração do livro (segundo Meltzer) ou, no meu modo de entender, no interior de uma floresta, o que implica saber sobreviver nesse território. Na terceira parte, temos sete capítulos que abordam questões como a possibilidade de sair do claustro, além de problemáticas específicas relacionadas a esse conceito: política, adolescência, esquizofrenia, entre outras. O livro finaliza com o apêndice de Meg Harris Williams, em que, por meio da peça Macbeth, de Shakespeare, ela discorre a respeito de equívoco versus ambiguidade.

 

Parte I

Na introdução, Meltzer comunica ao leitor o quanto o conceito de identificação projetiva concebido por Klein teve influência em seu trabalho clínico. Ele enfatiza que o livro é uma tentativa de agrupar os conhecimentos advindos de sua experiência, procurando expandir sua compreensão sobre tal conceito, assim como suas repercussões no funcionamento psíquico.

No primeiro capítulo, “A visão de Melanie Klein sobre identificação projetiva”, Meltzer faz um breve mas interessante comentário acerca desse conceito nos textos kleinianos: “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (1946), “Sobre identificação” (1955), “Inveja e gratidão” (1957) e Narrativa da análise de uma criança (obra póstuma). Aponta questões pouco esclarecidas por Klein no que se refere à identificação projetiva, mas deixa evidente o quanto precisou “beber dessa fonte de conhecimento” para que suas formulações teóricas pudessem ir além de Klein.

Intitulado “Revisão de publicações anteriores”, o segundo capítulo pretende comentar, ampliar e aprimorar suas ideias sobre identificação projetiva apresentadas em suas principais publicações. É uma ótima oportunidade de revermos algumas de suas obras ou trechos delas. No decorrer desse artigo, aborda os fatores que contribuem para a formação do caráter anal, a relação entre “pseudomaturidade” e os estados obsessivos, os motivos para a identificação projetiva maciça, entre outros. Deixa claro que o problema básico nesses casos é o da dor psíquica, sendo necessário um “seio-latrina” para conter a projeção. Esse capítulo traz de forma embrionária aportes teóricos importantes que posteriormente ajudarão Meltzer a pensar o conceito de claustro.

 

Parte II

No capítulo 3, “A dimensão geográfica do aparelho mental”, Meltzer oferece ao leitor um modelo de mente. Divide o espaço mental em seis áreas geográficas: mundo externo, útero, interior dos objetos externos, interior dos objetos internos, mundo interno e sistema delirante (situado em “lugar nenhum” e que não tem realidade psíquica). Meltzer se detém em cada um dos espaços mentais, mas deixa claro que se interessa pela identificação intrusiva com objetos internos, por ter mais importância pelos problemas técnicos trazidos numa análise.

“A segmentação da mãe interna” é o título do capítulo 4, em que distingue a concepção do interior da mãe interna, que deriva da imaginação, daquela que é produto da intrusão onipotente (patológica). Ao contrastar as duas visões, obtemos um diferencial de como a realidade psíquica pode ser vista na saúde e na perturbação. Segue-se uma explicação do processo de integração do bebê, bem como das dificuldades para que ocorra o processo de integração das diferentes funções das partes do corpo da mãe, apreendidas por analogia com a experiência que a criança tem dos seus orifícios em face dos cuidados maternos.

No capítulo 5, “A vida no claustro”, procura-se diferenciar os processos identificatórios projetivos comunicativos dos intrusivos. O autor trata de experiências passivas de identificação projetiva, de ser aspirado para dentro do claustro. Discute que todos os portais de entrada - olhos, orelhas, nariz, boca, pele, ânus, uretra, genital - são potenciais para a intrusão. Ainda nesse capítulo, expõe e elucida com casos clínicos a vida dentro da cabeça/seio materno, dentro do compartimento genital e dentro do reto materno, que nas palavras do autor é o “coração do livro”. Nesse compartimento, o que importa é a sobrevivência, pois o sadismo e a tirania/submissão imperam, anunciando a violência. O prisioneiro desse compartimento ou se conforma, ou ingressa como o grande líder, que entrega a sua vida a um objeto maligno. Meltzer dá uma descrição tão minuciosa desses pacientes, que rapidamente os visualizamos presos nesse compartimento e podemos antever os problemas que teremos no trabalho com eles.

No capítulo 6, “Problemas técnicos do claustro”, Meltzer discute, com uma linguagem sensível, como tais pacientes com graves distúrbios de personalidade chegam ao nosso consultório e como se desenrola o processo analítico. É um capítulo que ressoa em nossas experiências clínicas com pessoas que não revelam sua personalidade, mas sim suas técnicas de adaptação ao mundo claustrofóbico em que habitam. Os aspectos transferenciais e contratransferenciais são amplamente examinados. Meltzer comenta que, ao atendermos essas “crianças” que perderam o caminho de volta para casa, vemos pessoas que, por trás de uma aparente cooperação, escondem a “música da falsidade”, e lidar com essas questões na clínica pode ser muito difícil.

 

Parte III

No capítulo 7, “Saída de dentro do claustro versus mudança de consciência”, o autor busca fazer uma distinção entre o claustro e os fenômenos de instabilidade e rigidez. Sugere que existe uma zona intermediária entre a instabilidade e a rigidez que consiste na prontidão de tentar novamente. A partir desse tema, aborda questões relacionadas à continuidade e à descontinuidade no processo psicanalítico e comenta que, através da sensibilidade contratransferencial, o analista pode ter condições de sentir “a mudança na atmosfera, a temperatura ou distância, observando uma onda de solidão ou uma sensação de estar sendo esnobado” (p. 112). O analista com seu diapasão psíquico poderá perceber quando há uma reentrada no claustro em oposição à mudança de consciência e ao senso de identidade.

Meltzer inicia o capítulo 8, “O papel do claustro na irrupção da esquizofrenia”, propondo que devemos adicionar à dimensão geográfica da mente o “lugar nenhum” (fenômenos esquizofrênicos). Ele também procura responder a algumas indagações: como o “lugar nenhum” se configura, como partes da personalidade passam a viver nesse lugar, tornando-se alienadas, e quais são os fatores que determinam o seu acesso à consciência.

Segue-se o capítulo 9, “Acerca da onipresença da identificação projetiva”, em que o autor enfatiza que nem todas as partes da personalidade desenvolvem a capacidade para a intimidade, tendo de aprender de diferentes modos, sendo muitas vezes compelidas a se acomodar em vez de se desenvolver. Ele também aborda a existência de partes infantis que vivem ou em identificação projetiva, ou interessadas em entrar no claustro dos objetos internos de forma onipotente (produzindo estados de afastamento).

No capítulo 10, “Sintomatologia versus caracterologia: o processo psicanalítico”, Meltzer nos lembra que estamos no advento do limiar da posição depressiva, à medida que o processo analítico resolve os estados confusionais, pois, quando são reconhecidas as confusões zonais e suas separações pelo pensamento e a imaginação do paciente, a descrição das partes do self pelo analista se torna possível, e o corpo principal do trabalho analítico toma lugar. Com a situação analítica estabelecida, fica muito claro que a sintomatologia é na realidade parte do caráter e que os estados psicossomáticos destacam-se como não integrados à vida mental. Trata desse processo não só do ponto de vista de pacientes normais e neuróticos.

O autor dedica os capítulos 11, 12 e 13 a problemáticas específicas do claustro: “O claustro e a adolescência”, “O claustro e as perversões/adições” e “O claustro e a política”. Aborda o papel da identificação intrusiva nos fenômenos da adolescência. Comenta a respeito dos jovens que foram deixados para trás e dos que foram deixados de fora da experimentação saudável. Segundo o autor, ambos os grupos têm problemas do claustro e apresentam uma sexualidade pré-genital. Neles, há uma privação emocional prematura que gera incapacidade de alianças emocionais, levando-os a um pessimismo com a vida, a não terem uma experiência de amor apaixonado de uma pessoa saudável e madura. No que se refere ao papel dos fenômenos projetivos que acompanham a identificação intrusiva nas perversões e adições, Meltzer considera que a teoria dos afetos de Bion, LHK, amplia o alcance da análise a uma região que se defende do prazer e da dor, incapaz de desfrutar de felicidade e alegria para viver, embora tenha prazeres, que não estão relacionados à experiência do desenvolvimento. No que se refere à política, aborda o claustro na vida comunitária, especificamente nas instituições psicanalíticas. O capítulo é uma ótima oportunidade para refletirmos sobre a missão das instituições psicanalíticas e os perigos dos desvios que esses locais podem enfrentar.

No apêndice do livro, encontramos o ensaio “Equívoco de Macbeth, ambiguidade de Shakespeare”, escrito por Meg Harris Williams, escritora e artista. Meg utiliza conceitos de Meltzer ventilados nesse livro para pensar essa história profunda, sangrenta e obscura das tragédias de Shakespeare, sobre deslealdade e a desintegração de um indivíduo que arrasta para o nada o maior número de pessoas, do ponto de vista dos equívocos (meio de autoengano) em contraste com a ambiguidade poética.

Esse livro apaixonante nos possibilita um contato profundo não só com a ampla experiência clínica do autor, mas também com a originalidade de suas concepções teóricas no que se refere a esses pacientes que mantêm uma relação fantasiosamente onipotente e intrusiva com graves consequências quanto à percepção do mundo e das relações. Tais pacientes encontram dificuldades imensas no que se refere ao contato com a realidade, temem que suas manobras intrusivas em relação ao objeto interno sejam descobertas. Essa forma de relação borra os limites entre o self e objeto. Cada parágrafo do livro merece várias leituras, pois, quanto mais nos familiarizamos com o texto, mais descobrimos algo sutil que nos obriga ao desafio de desvelar a complexidade desses prisioneiros do claustro.

 

 

Correspondência:
Joice Calza Macedo
Rua Dr. Antonio Galizia, 155, sala 10
13024-510 Campinas, SP
Tel.: 19 3232-7223
joice.calza@terra.com.br

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