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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Silvana Rea

Editora

 

 

Em entrevista a Benedetto Vecchi, Zygmunt Bauman (2006) conta que para a cerimônia de entrega do título de doutor honoris causa, em Praga, pediram-lhe que escolhesse entre os hinos da Polônia e da Grã-Bretanha. Opção difícil, segundo ele, pois se radicara na Grã-Bretanha após uma oferta para lecionar, o que lhe fora proibido na Polônia, seu país natal. Mas, mesmo tendo se naturalizado inglês, na Inglaterra era um estrangeiro ou um refugiado - sempre se viu e foi visto como polonês. A solução encontrada foi a de um hino dupla face, ao mesmo tempo excludente e inclusivo: o hino da Europa.

Aqui na América Latina, Marcelo Viñar (1998) relata que, no item nacionalidade de seu passaporte, naturalmente preenche uruguaio. Mas, conta ele, na Espanha, uruguaio quer dizer “sudaca” (sudorese, lubrificado) e, na América do Norte, hispano significa qualquer latino-americano que viva nos Estados Unidos - epítetos que deslizam de um dado descritivo para um juízo de valor.

Viñar ainda traz o relato de um paciente peruano, de origem indígena, que se apresentava com ideias delirantes de que seu pé exalava mau odor. Como ele se utilizava insistentemente da expressão “quero ser claro”, o trabalho de análise evidenciou uma oposição identitária entre a “raça branca” de seu pai e o mau odor da “raça inferior” da mãe índia. Portanto, a questão de pertencer a uma comunidade e ser estrangeiro, proposta na reflexão de Barthes (2003) em Como viver junto, não é tão simples de ser resolvida como o dilema de Bauman. É necessário nos reportarmos a aspectos essenciais do ser humano, visto que refletir sobre exílios e repatriações é discutir posições identitárias.

A condição de exílio faz parte da história da humanidade. Já nos lembra Foucault (1978) da segregação social do louco na Idade Média, quando juntamente com os leprosos foi encerrado fora das portas da cidade; e que na Era Clássica foi forçado ao internamento - uma exclusão tratada como um problema de polícia, sendo associada à vagabundagem e à libertinagem.

Vivemos hoje tempos de radicalismo, preconceito e intolerância ao diferente. Donald Trump, eleito à presidência norte-americana há poucos meses, ameaça construir um muro na fronteira entre Estados Unidos e México, impedindo o trânsito entre eles.

Ora, se considerarmos o século XVIII como a época do Iluminismo, da formação dos Estados Nacionais e do liberalismo na economia, entenderemos que esse também foi o momento de ênfase na ideia de indivíduo e na noção de eu. Com a noção de eu, surge necessariamente no imaginário a figura do outro. É quando, na literatura, Daniel Defoe publica Robinson Crusoe, e Jonathan Swift, Viagens de Gulliver, metáforas da viagem à alteridade.

Ao final do século XIX, a razão iluminista e a identidade, entendida a partir da noção de idêntico, não se sustentam mais. É quando Freud constrói a psicanálise, simultaneamente fruto e consciência crítica desse momento histórico. O sujeito postulado por ela está em crise, dividido em si mesmo, múltiplo e descentrado - o homem da modernidade, que na literatura produz os personagens de subjetividade fendida, como Frankenstein, de Mary Shelley, O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e mais à frente Orlando, de Virginia Woolf.

Foi a partir desse ponto de vista que Freud entendeu o sofrimento das pacientes histéricas, que o levaram à noção de inconsciente - a inevitável alteridade de nós a nós mesmos. Os mecanismos de recalque mostram a alteridade que nos habita, esse outro de mim que desconheço. O nosso estranho, já nos dizia Freud (1919/1969b), esse familiar estrangeiro. Portanto, para a psicanálise, quem eu sou sempre se refere a outrem. O início da vida humana e seu processo de subjetivação se dão a partir da presença fundante do outro, mais ou menos traumática. O conceito de identificação, a primeira experiência de enlace afetivo com outra pessoa, descreve um modo fundamental pelo qual o outro comparece em nós, nós no outro, e a importância do diferente no cenário edípico, da presença do pai como o forasteiro, uma perturbação fundamental para a configuração do terceiro.

Com o tema Exílios e repatriações, que nos foi sugerido pela colega de Ribeirão Preto Patrícia Tittoto, trazemos à discussão o movimento de sair e voltar, como na viagem de Ulisses em seu retorno a Ítaca, onde chega transformado. E como na brincadeira do carretel - um jogo de ir e vir que cria lugares de fundação do sujeito. No entanto, no percurso entre o próximo e o distante, entre aqui e ali, entre ausência e presença, há uma ameaça à estabilidade da própria existência, visto que o carretel arrisca a se perder, do mesmo modo que corre esse risco quem o lança para longe. Uma inexorável fratura de alguém que teve as raízes arrancadas de seu local de origem, essa experiência, por outro lado, permite compartilhar diferentes identidades. Afinal, sair da terra natal implica estranhamento. Porque é sempre pelas frestas de seu próprio mundo que o viajante penetra, quando abre passagem em paisagens alheias. A condição de estrangeiro não testemunha apenas a estranheza do mundo que visita, mas evidencia os desarranjos do território de quem viaja, as fissuras e fendas identitárias da frágil familiaridade no interior de si próprio. E assim fica evidente que só alcançamos o outro sendo um outro em nós mesmos; que não atingimos o outro a partir de fora, se já não o atingirmos a partir de dentro (Cardoso, 1993).

Mas não podemos esquecer que Freud (1920/1969a) também se vale do jogo do fort-da para tecer sua reflexão sobre a compulsão à repetição, ou seja, sobre a presença da pulsão de morte no psiquismo humano. Aqui, o estrangeiro separado e fora de mim ocupa o lugar de objeto não identificado que não permite a identificação, e é portanto ameaçador.

Desse modo, cabe oferecer a palavra a Einstein, quando pergunta a Freud se é possível controlar a evolução da mente do homem, a fim de “torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade” (Freud, 1932/1969c, p. 243). E cabe a resposta que obteve, de que nada vale tentar eliminar essas inclinações destrutivas, como o ódio contra qualquer pessoa além de suas fronteiras. O que se pode fazer é tentar investir em vínculos emocionais amorosos que utilizem a identificação, introduzindo assim as modificações psíquicas que acompanham o processo civilizatório, com o desvio e o deslocamento dos fins instintuais, para a sua limitação.

Mas qual seria o limite possível?

Com o tema Exílios e repatriações, despedimo-nos desta gestão de editoria, certos de um movimento exitoso de ida e vinda. Agora, novos territórios nos aguardam, novos projetos e realizações.

 

Referencias

Barthes, R. (2003). Como viver junto (L. Perrone-Moisés, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bauman, Z. (2006). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi (C. A. Medeiros, Trad.). São Paulo: Zahar.         [ Links ]

Cardoso, S. (1993). O olhar viajante (do etnólogo). In A. Novaes (Org.), O olhar (pp. 347-360). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Foucault, M. (1978). História da loucura (J. T. Coelho Netto, Trad.). São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, pp. 13-75). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 273-314). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Freud, S. (1969c). Por que a guerra? In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22, pp. 237-259). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Viñar, M. (1998). O reconhecimento do próximo: notas para pensar o ódio ao estrangeiro. In C. Koltai (Org.), O estrangeiro (pp. 173-192). São Paulo: Escuta; Fapesp.         [ Links ]

 

 

A programação editorial da Revista Brasileira de Psicanálise para 2017 segue conforme o divulgado.

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