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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

EM PAUTA

 

Imigração, tempo e esperança

 

Immigration, temporality, and hope

 

Inmigración, tiempo y esperanza

 

 

Daniel Delouya

Membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e presidente atual da Federação Brasileira de Psicanálise FEBRAPSI

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir da coincidência entre o tema Exílios e repatriações deste número da revista e um convite da revista eletrônica da ipa, Psychonalysis.Today, para tecer uma reflexão de cunho mais pessoal sobre a imigração, apresento este testemunho e amplio as suas inferências gerais à luz de outros trabalhos de psicanalistas sobre imigração. Essa tentativa o leitor encontra na seção “Comentário...”, que segue à reflexão pessoal reproduzida na primeira parte do trabalho.

Palavras-chave: imigração; trauma; idioma; tempo; esperança.


ABSTRACT

This paper resulted from the coincidence between the theme of the current issue of this journal (Exiles and repatriations) and an earlier invitation from the IPA e-journal (Psychoanalysis.Today) to the author to write some reflections on immigration. The author adds his personal impressions and theoretical notes to other psychoanalysts' works about immigration.

Keywords: immigration; trauma; language; temporality; hope.


RESUMEN

En este trabajo presento algunas notas teóricas sobre mi experiencia de inmigrante, elaboradas con base en mis reflexiones para un número especial de la revista electrónica Psychoanalysis.Today sobre el tema de la inmigración.

Palabras clave: inmigración; trauma; idioma; tiempo; esperanza.


 

 

Imigrantes na Europa, nos EUA e em toda parte. Imagens e imagens. Histórias e dramas exibidos, muitas vezes, em tempo real nos meios de comunicação. Assim, durante um ou dois anos, a massificação desse acontecimento - efeito característico de inúmeras notícias que nos acometem - vai nos embrenhar em pesadas nuvens. Abafado nelas, o tempo insiste e emerge ao encontro da lembrança, com suas dores e doçuras.

Migrar, emigrar, imigrar. Imigração, ser imigrante. E quando a emigração se faz às pressas, numa fuga ou quase, em função das circunstâncias... Migrando de uma terra a outra, de uma língua para (e com) a outra. E, às vezes, com a sorte (ou o azar) de se encontrar, no referido momento, em tenra ou latente idade. Aconteceu comigo, mas não acredito que eu soubesse disso naquele tempo. A luz da lembrança cai, de imediato e surpreendentemente, sobre a alegria. Eu me lembro, ao emigrar e ao imigrar, das alegrias, mas não só delas.

Primeiro momento marcante: o sentimento de vertigem ao ser lançado ao ar e, de volta, sobre os fortes braços do irmão que, entre meu medo e prazer, cochicha alegre em meu ouvido: “Nós vamos para lá, vamos mudar daqui. É segredo, não conte para ninguém, ouviu, pirralho?!” Ele, radiante, estava com 13 anos, e eu com 6, contagiado pela excitação e exaltado pelo privilégio de adentrar mais uma fresta do misterioso mundo das tramas dos adultos. Era domingo, e eu estava entretido, assistindo, pela janela de nossa “imensa” sala de jantar, a uma competição de ciclistas, quando fui arrancado para esse aviso sobre um futuro cujas referências me eram ainda bastante incompreensíveis.

Já éramos “estrangeiros” em Marrakesh, embora minha família paterna descendesse de refugiados da Inquisição na Espanha do final do século XIV. E isso porque pertencíamos à comunidade judaica, além de conviver no meio cultural francês. Os cuidados eram, portanto, redobrados ante o mundo muçulmano, pela hostilidade deste aos judeus e ao então jovem Estado de Israel, e também pela contestação geral à influência da França, de cuja dominação o Marrocos acabara de se livrar (em 1960). Como criança, lembro que nosso movimento, o meu e de meus irmãos, era restrito, atento, nas redondezas, a possíveis assaltos. Soube mais tarde das intensas emigrações do Marrocos nesse início dos anos 60, sobretudo da comunidade judaica e de minha família (quase toda) rumo aos EUA, Canadá, Europa e Israel. Somente anos depois dei-me conta de que, na preparação para a fuga, a casa era imantada de um ar de clandestinidade: vários móveis sendo deslocados, removidos, além de atividade intensa e silenciosa em torno de roupas de viagem aprontadas para o frio da Europa. Pois em Paris, e depois em Marselha, dinheiro francês, provavelmente adquirido no mercado negro de Marrakesh, era resgatado de dentro das dobras e botões de nossos casacos e calças. Após longos meses em Marselha, meus pais acataram a pressão de outro irmão, o primogênito, que queria, a despeito do conselho de nossos tios franceses, realizar o sonho sionista e viver no Kibutz. Partimos então para Israel. De Paris e Marselha eu guardo lembranças, incidências que se embaralham com fotografias de várias paisagens e visitas a lugares e casas de familiares, mas todas tingidas de uma excitada espera de embarcação rumo ao destino tão batalhado pelos irmãos mais velhos contra os adultos, pais, tios e amigos residentes na Europa, EUA e Canadá.

Segundo momento marcante: um ano mais tarde, talvez no segundo dia em terra nova, ao voltar eufórico da rua, com sentimento ímpar de liberdade, encontro, ao abrir a porta de casa, o mesmo irmão, porém triste, em lágrimas (nunca o tinha visto chorar antes). Ele, adolescente de 14 anos, estava em pé, encostado no batente da divisa entre a cozinha e a sala, conversando, sob soluços, com os pais (e os emocionando também) sobre a perda de sua terra natal, a imensa decepção com “este fim de mundo” no qual se encontrava...

Logo, e ainda criança, vou adentrando o mundo imigrante, onde a excitação inicial (no irmão e em mim) do primeiro momento se mescla e sobrevive em meio às dores da decepção, interiores à nostalgia do segundo momento. Cito a seguir uma passagem, anotada três décadas mais tarde, de minha lembrança panorâmica desse período, entre 7 e 14 anos de idade:

Cresci num desses bairros situados na fronteira com o inimigo e que também era afastado do centro. Nenhuma criança nascera no lugar antes de eu e a minha família ali chegarmos. Só havia imigrantes. Era um desses “paraísos” de cuja existência Deus jamais se daria o luxo de ignorar ou de se lembrar de esquecer; terra fértil para esses bandeirantes que acabam batizando as ilustres páginas da história, e em cujo sangue fervilha a ideologia que, embora sincera, torna a ser, de praxe, cega, rude, estúpida e ignorante à história, aos sonhos e às paixões - à vida, em suma - dos que pretende sacrificar para a realização da sua utopia. Criou-se ali, porém, muita vida (algo que o homem de cima não poderia prever): muitas línguas, oito ou mais, que ainda consigo identificar; cheiros, costumes e nuanças de modos de viver e de práticas religiosas, e outras diferentes, estendendo-se ao longo de um espectro curioso, desde as tradições judaicas do Leste Europeu até aquelas desenvolvidas nas comunidades dos países norte-africanos; sem falar dos que vinham dos nossos vizinhos - o inimigo - do outro lado da fronteira, e cujas vozes, canções, cheiros e luzes nos chegavam ao entardecer, quando a noite começava a pairar sobre essa pequena comunidade que nada sabia da ideologia que começara a traçar seu destino. Ideologia estranha essa que pretendia fazer do país um melting pot e que, no entanto, só fazia o oposto, ou seja, isolando, de dentro e de fora, seus imigrantes, sua geração do futuro. (Delouya, 1998, pp. 35-36)

Os dois momentos entre excitação e decepção, entre descoberta e nostalgia, definem a experiência do ser imigrante. E isso se verifica mesmo quando a articulação entre os dois estados de alma é afetada, como na lembrança que citei, pelo peso das específicas circunstâncias políticas, sociais e pessoais. A abertura sobre o estrangeiro, sob as amarras do familiar, é própria do trabalho do luto, no qual se trava a luta constante pelo acesso às promessas e aos sabores do novo ambiente. De um lado, o desejo, a excitação em face do encontro do novo mundo e da nova língua; de outro, os embates com a nostalgia, com o anelo do lugar e do tempo de outrora.

As lembranças da infância e da idade da latência, algumas encobridoras e outras infiltradas pelos ditos e testemunhos dos adultos, levaram-me a essa apreensão. Entretanto, elas surgiram a posteriori pela convocação e exame da experiência decorrente da minha segunda (ou seria terceira?) e última imigração, realizada há mais de 30 anos, dessa vez como jovem adulto, para o Brasil, deparando-me com uma nova língua e uma nova terra e cultura.

No Brasil e na América Latina em geral, de três décadas atrás, e ainda hoje, o respeito, a curiosidade e uma certa reverência se destacam na acolhida e receptividade do estrangeiro oriundo do velho e “mais culto” continente. A consciência cultural brasileira e latino-americana e seus elos com a história colonial alinham esse gesto na identificação paradoxal com o “Primeiro Mundo” e no desprezo do “Terceiro Mundo” no qual se vive e do qual se faz parte. Não obstante, esse gesto cordial entre as anfitriãs das classes média e alta não diminui o descompasso sentido pelo imigrante em relação a seu entorno. Pois existe algo sutil nesse meio brasileiro, com o qual tive um íntimo contato, que aumenta ainda mais o trabalho psíquico do imigrante. A identificação paradoxal do latino-americano denuncia certamente o fraco elo com as próprias instituições. Questões como as instabilidades políticas na região e a corrupção edificaram identificações com elites apoiadas na reificação de nomes de família, na valorização de suas propriedades de latifúndio e outras heranças, no desprezo ao trabalho, no preconceito racial etc. Basta acompanhar as novelas de televisão das últimas décadas, que serviram de veio cultural principal das massas neste país, para averiguar esse eixo de identificação. Tudo isso cria uma discrepância que aumenta, ainda mais, a distância do estrangeiro em relação a esse meio de raízes e vícios coloniais. O que é passível de propiciar ao estrangeiro um desprendimento ainda maior na sua criatividade cultural e econômica. As sensibilidades culturais latino-americanas e, de outro lado, um certo aprisionamento em valores sociais reificados deixam um terreno mais livre para os desafios do imigrante com o novo ambiente, com a nova terra. No entanto, as mesmas condições da América Latina servem de apoio para anseios algo românticos com a “natureza”, as partes “mais primitivas” e “mais inocentes” das regiões e frações mais “nativas” deste continente. A meu ver, esses elementos substituem, ao menos parcialmente, os elos do imigrante com o seu meio de origem; facilitam, por assim dizer, o desenlace nostálgico do trabalho de luto.

A migração, a emigração e a imigração denotam um deslocamento geográfico e demográfico, o sujeito instalando-se em um novo e diferente meio cultural. Não obstante, destacamos sobretudo uma dimensão temporal, o trabalho do tempo, ou seja, o trabalho psíquico específico ao ser imigrante. A partir de vivências próprias que remontam aos períodos de migração, com as idades de 6-7 anos e de 25-26 anos, para continentes, culturas e línguas diferentes, pude distinguir - novamente sob o prisma do tempo, no après-coup - um duplo movimento: um, privilegiado - o que não quer dizer que seja livre de dores -, de posição de estrangeiro, de frescor de abertura sobre novas e infindáveis possibilidades de inserção; outro, mais penoso, e igualmente, e talvez mais duradouro, de luto, entre nostalgia e desenlace das origens. Entretanto, esse trabalho do tempo, suas características e seus destinos singulares em cada imigrante dependem e são intricados no contexto cultural particular ao qual se imigra, assim como carregam as marcas específicas de inserção no contexto cultural do meio do qual se emigrou.

O duplo movimento de ser estrangeiro, que produz, em termos gerais, o espectro de vivências do confronto do imigrante com a vida em terra nova, assemelha-se em muitos aspectos com o percurso do processo analítico. Vários autores e trabalhos detiveram-se sobre esse sítio de estrangeiro próprio à revelação do inconsciente, o que não constitui o objetivo deste pequeno comentário.

Cabe ainda retornar ao motivo e início desta escrita, que se reportava às migrações geradas em função da guerra civil na Síria. Isso obrigou o Ocidente - às voltas com sensibilidades econômicas, demográficas e étnicas - a se haver com as urgências, sobretudo éticas, dessas migrações. As incidências trágicas, as condições precárias envolvidas nessa travessia dos imigrantes sempre foram, são e serão impactantes, traumáticas. As condições espetaculares do espectador atual, antenado em tempo real, ou quase, com os “acontecimentos no mundo”, no palco público, massificam, ou seja, tendem a abolir de vista e de vivência, o desenrolar da vida do sujeito, do nosso próximo (Neben-mensch), do nosso vizinho, o imigrante.

Não é demasiado lembrar aqui Freud, que sempre insistiu sobre a sorte como um fator essencial para a vida psíquica. A sorte do objeto de origem (o adulto) não diz respeito só a quem ele foi e como nos acolheu nos inícios da vida, mas ao contexto cultural do qual ele foi emissário e para o qual ele nos despacha, onde o repertório adquirido é posto à prova e onde se abrem novas sortes. Em toda imigração, sobretudo aquela imposta a um grupo em função de crises político-sociais e religiosas agudas, não falta a má sorte do choque abrupto nos imigrantes: uma exposição subjetiva causada pelo hiato cultural, no vazio do qual as raízes arrancadas do solo de origem encontram-se suspensas, desesperadas para o reencontro de nova e incerta terra - exposição em que a impotência e a carência no seio do idioma e das línguas, dos valores e costumes, assim como as implicadas vergonha, humilhação e revolta, colocam em xeque a vida das primeiras gerações (cujas sombras e ecos nos visitam, intrusos incansáveis, insistindo na tormenta). Crise, instabilidade e precariedade de toda sorte são frequentes; da mesma forma, a marginalização na doença, na loucura, na dispersão e na violência nunca falta ao cenário que impregna parcela considerável da comunidade dos imigrantes. No entanto, a sorte do emigrante e do imigrante não é sempre de todo má - muitas vezes, ao contrário. A imigração, sobretudo do ponto de vista do restabelecimento geracional, é uma sorte do indivíduo, assim como é para os coletivos, no relançamento, na renovação da vida do sujeito e das diversas culturas, das nações que o acolhem. Migrar, emigrar e imigrar é colocar a vida em marcha, é insuflar o tempo, a história do sujeito e das culturas.

 

Comentário sobre a literatura psicanalítica em volta da imigração

Nature's law.

That man was made to mourn.

(Robert Burns)

Como fui convidado para um testemunho pessoal, e não tanto para uma reflexão, não me ative a pensar, com vagar e de forma rigorosa, o tema da imigração. Por exemplo, a distinção que estabeleci entre os dois polos - desenlace das origens e excitação em investir o novo ambiente - pertence, em psicanálise, ao mesmo processo: o luto. O que Freud denomina, no trabalho de luto, de teste da realidade - a noção de perda - desencadeia, de um lado, a dor do desenlace e, de outro, a liberação da libido para reinvestimento de novos objetos. São, portanto, partes do mesmo processo. Por que separá-las no sujeito imigrante? Outra questão: é um fato histórico, quase incontestável, que a difusão da psicanálise e sua transmissão “corpo a corpo” ocorreram em meio a migrações sucessivas: de início, em grande parte, para a Inglaterra; logo depois, a partir da Europa, para os Estados Unidos (nos anos 30 e 40 do século passado), e ao mesmo tempo, mas com pequena defasagem, para a América Latina. Com exceção de Melanie Klein, que aceitou o convite de fixar moradia em Londres, o restante de seu grupo e outros analistas, que emigraram para as Américas e instauraram aqui as forças motrizes da psicanálise, foram em grande medida obrigados a se exilar, tornando-se verdadeiros refugiados em busca de asilo. Surpreende, entretanto, a escassez de relatos e autoanálises dessa travessia, mesmo em psicanalistas com destacado talento de escrita da vida psíquica. Como, por exemplo, um autor sensível e profícuo como Masud Khan, longe de suscitar qualquer semelhança com a figura do refugiado, não deixou entre seus inúmeros escritos uma palavra sequer acerca de sua condição de emigrante e imigrante? E André Green? Este sim se pronunciou sobre sua imigração, mas somente no final da vida, quando interrogado por entrevistadores. A exceção dessa curiosa falta encontra-se na obra de ninguém menos do que Sigmund Freud. Seu acesso ao terreno psicanalítico ocorre não só pelo trabalho em torno da perda do pai como pelo fato de que esse labor, o luto, remonta ao exílio de sua cidade natal, Freiberg (Príbor), na Morávia. Ele se identifica com o pai, Jacob, obrigado a emigrar (nas pegadas de sua extensa genealogia, de judeus errantes forçados ao exílio); no entanto, está sempre empenhado no resgate da inesgotável libido ali represada, na criança feliz de outrora, vagando e brincando pelas ruelas da cidade natal (Freud, 1924/20113).

Considero o luto, com seus percalços, impasses e limites, o desafio central da clínica psicanalítica. As noções de patologias de luto, melancolias, lutos impossíveis ou não ou mal feitos, as perversões etc., assim como suas variantes em outros idiomas psicanalíticos - entre as posições depressiva e esquizoparanoide, ou entre a simbolização e o gozo, ou ainda a distinção de análise pela interpretação versus análise pela construção -, reportam-se, todas, de algum modo ao trabalho de luto e suas mazelas. O processo da imigração no sujeito é um desdobramento desse trabalho ante sua inserção no meio social. A dor dessa elaboração dificulta disponibilizá-la à comunicação mesmo no colega psicanalista, posição em que o poeta e o escritor se veriam mais confortáveis. Não obstante, grande parte da literatura psicanalítica acerca da imigração se matiza nos interstícios do luto, ou, mais precisamente, dos impasses enfrentados nesse trabalho em função dos traumas infligidos, seja ao emigrante na terra de origem, seja ao imigrante no meio que o acolhe/rejeita. Nas palavras do poeta escocês antes citado:

Man's inhumanity to man

Makes countless thousands mourn!

(Burns, 1784)

As discussões sobre exílio e repatriação vêm crescendo aceleradamente na literatura psicanalítica,1 sobretudo em países que se encontram sob efeitos de importantes imigrações. Objeto de estudo por excelência da sociologia e da antropologia, a observação dos efeitos da imigração dispõe-se aos psicanalistas somente mais tarde, no trabalho clínico, a partir da segunda geração de imigrantes. Entretanto, na França dos anos 60, ao acolher os imigrantes de suas ex-colônias - sobretudo norte-africanos, mas também de outras partes da África -, cria-se uma nova abordagem, a etnopsiquiatria, cujos discursos e integrantes dialogam com a psicanálise (Nathan, 1993). Nos EUA, onde, até poucos anos atrás, quase 20% da população era composta de imigrantes (e isso nas sucessivas gerações de imigrações da Europa, México, Cuba, Índia e do Oriente asiático), correntes culturalistas da psicanálise tiveram, desde os anos 40 e 50, uma atenção especial ao tema. Vários artigos e livros abordam aspectos diversos no universo psíquico dos imigrantes, a partir de material colhido em longas experiências clínicas na França, Inglaterra, EUA e outros países, como Austrália, Canadá e Israel, territórios de imigração e com tradição de prática e pensamento psicanalítico. Muitos autores proeminentes se destacam nessa última década - tanto em função de seu próprio passado quanto em vista de imigrações e exílios forçados, motivados por conflitos e tragédias coletivas de toda sorte, em certas regiões, nos últimos anos - ao relacionar os estudos íntimos da clínica com a vivência e o ser imigrante. León Grinberg, Ricardo Ainslie, Salman Akhtar, Vamik Volkan, entre outros, são psicanalistas contemporâneos bastante citados quanto à temática da imigração.

Como indicado antes, esses trabalhos abordam, de um lado, o trauma da ruptura com as origens, com tudo que compõe os elos que ligam à sua terra natal, sua cultura específica, seus costumes, seus laços familiares e amizades, seus bens e sua relação com a língua; de outro lado, o choque traumático com a nova cultura, que, à parte a frequente alienação e hostilidade ao estrangeiro, inclui muitas vezes o racismo (sobretudo onde a diferença racial é fisicamente aparente), entre outras dificuldades de adaptação social e econômica. Ademais, a variação nas facilidades e nos contextos de inserção do sujeito em função de sua faixa etária (criança, púbere, adolescente, jovem, adulto) torna-se, em poucos anos, uma fonte de mal-estares e conflitos entre gerações no seio da família e da comunidade dos imigrantes. O desenrolar dessa diferença afeta os graus de vergonha, culpa, marginalização e até vários tipos de adoecimento e formas de loucura pelos quais são passíveis de serem acometidas sobretudo as proles dessas famílias.

Embora grosseira, gostaria de propor, inicialmente, uma distinção entre a elaboração da ruptura com a terra de origem e aquela que implica o desafio com o novo entorno. A primeira pertence de forma mais evidente à separação no trabalho de luto; a segunda, aos impasses identificatórios desse trabalho. Uma dimensão de investimento objetal versus outra, de cunho narcísico. As identificações matizadas no tecido intersubjetivo do vivido cultural têm suas raízes nas identificações primárias, que se erigem no processar da constituição edípica. A distinção entre o plano de investimento e o narcísico não é de essência. O ensaio de 1915 “Luto e melancolia” (2010) já alude a que a raiz das identificações são investimentos, o que se explicita no livro O eu e o isso (1923/2011b): os primeiros investimentos são identificações. As identificações que se evidenciam como tais (no regime do eu) devem-se ao luto, como investimentos (de objeto) abandonados; são aquisições - sujeitas a futuras transformações no plano intersubjetivo - em face da descoberta de objeto e da concomitante configuração do eu. Tudo isso é parte do trabalho do luto. O desenlace dos investimentos do objeto está entrelaçado ao futuro reconhecimento - a perda - do objeto e à constituição de si. Não obstante, tudo o que se faz no trabalho do tempo, no destecer penelopiano, no fundo da alma do imigrante em relação aos investimentos de origem, deve-se a esses elos - o ambiente de origem com seus espaços, suas paisagens, seus sentidos e tons e o sabor de sua língua - que constituem o seu corpo, fontes essas que permitem ao imigrante lidar e se tornar criativo no embate com o novo meio. Segundo Akhtar (1999), o imigrante que sofre uma expulsão traumática de sua terra de origem fica privado da experiência de nostalgia, como se amputado de recursos defensivos - de idealização de suas vivências de origem - para amortecer suas frustrações e combater os escolhos da imigração. Parece-me que a nostalgia e a saudade, tais como comparecem no plano psicológico, ofuscam o entendimento do trabalho de luto. Pois, mesmo tratando-se de sobreviventes de traumas de guerra ou de campos de concentração, de refugiados em estado de choque, o trabalho de luto se faz, apesar de muito lentamente, pela abolição inicial de qualquer dimensão dizível e figurável, para em seguida emitir sinais de retorno pelos delírios, pesadelos, atuações masoquistas de toda sorte, paralisias etc. Um retorno, tentativa de cura (Freud), de reinvestimento.

Entretanto, é o plano das identificações que é o mais aparente, que grita mais em tudo que envolve os imigrantes. Em primeiro lugar, a xenofobia, com as tristes e deteriorantes consequências de racismo ativo, revela em sua contrapartida - nos próprios imigrantes - uma crise análoga: sentir-se estrangeiro consigo mesmo, reflexo da diferença cultural com o meio, ou mesmo do incômodo e da decepção com a geração dos pais, da qual “se herdou” a má sorte de ser estrangeiro, marginal; ou, outra consequência, numa revolta a essa humilhação, no ódio ao meio, a cujas consequências radicais, políticas, assistimos há pouco - a oposição se deteriorando em atos terroristas dos jovens, retaliando o ambiente que os rejeita, a eles, seus pais e sua raça. A descoberta do outro de nós mesmos é consequência dessa separação originária - sobre a qual fiz menção antes -, que constitui projetivamente, no ódio, o outro em sua alteridade e estrangeiridade. É ela que mobiliza, numa espécie de desespero, toda a formação desse caldeirão intersubjetivo de identificações do período de latência e que se põe à prova na violência da adolescência e do início da vida adulta. O desespero em encontrar suporte nas identificações em meio ao grupo, em torno dos ideais, substitui o apoio amoroso de outrora da vida da infância - esse playground que o adulto fornece em contraparte a esse vasto terreno violento de desamparo, do desconhecido, para que seja possível garantir e construir os subsídios autoeróticos, os investimentos dos objetos de origem. A xenofobia é o negativo, o aspecto ou espectro de miragem, das identificações.2 Uma xenofobia apaixonada e fundamental está na origem da vida psíquica (Freud, 1915/2010). Ódio e paranoia do eu, em cuja raiz habita o terror, o desamparo, e que pode encontrar um caminho de cura, parcial e progressivo, nessa emigração e imigração lenta para lidar com o estrangeiro em si em meio ao encontro e mobilização das identificações com os outros no espaço social e político. Tal embate, no plano narcísico das identificações, constitui um dos penosos e irremediáveis impasses na cultura, estando, no entanto, aberto ao trabalho de luto e esperança para o imigrante e para a vitalidade dos países que o recebem.

Para finalizar, fiquei surpreso, ao rever a literatura, com minha diferença quanto ao aspecto do tempo, da esperança, da consequência animada do luto. Uma lembrança se impõe: quando criança, jogando bola, alegre entre os meninos, eu era apelidado afavelmente de o francês. Um amigo me explicou que, ao chegar ao grupo, eu falava, de biquinho, essa língua estrangeira... O som desse apelido nunca deixou se apagar essa fugidia recordação de fazer parte, mas não de todo, da turma - em função de ser imigrante, estrangeiro!

 

Notas

1 Deixo em suspenso, como já assinalado, toda a importante literatura, mais profunda e ao mesmo tempo mais ampla, que liga a imigração ao tema do estrangeiro, central para a psicanálise. A esse respeito, remeto o leitor à bela coletânea O estrangeiro, organizada por Caterina Koltai (1998).

2 Vamik Volkan, psicanalista americano, originário de Chipre e que se dedicou ao estudo dos conflitos entre grupos, nações, entre elas e suas minorias, com e contra os imigrantes, escreveu entre outros um livro significativo a esse respeito: Matando em nome da identidade (2006).

 

Referências

Ainslie, R. C., Tummala-Narra, P., Harlem, A., Barbanel, L. & Ruth, R. (2013). Contemporary psychoanalytic views on the experience of immigration. Psychoanalytic Psychology, 30(4),663-679.         [ Links ]

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Koltai, C. (Org.). (1998). O estrangeiro. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Nathan T. (1993) ... fier de n'avoir ni pays, ni amis, quelle sotisse c'était. Paris: La Pensée Sauvage.         [ Links ]

Volkan, V. (2006). Killing in the name of identity. Virginia: Pitchstone Publishing.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Daniel Delouya
Rua Capote Valente, 439, conj. 104
05409-001 São Paulo, SP
danieldelouya@gmail.com

Recebido em 30.01.2017
Aceito em 13.02.2017

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