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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

EM PAUTA

 

Exílio, repatriação e falso self: rupturas e suturas

 

Exile, repatriation and false self: ruptures and sutures

 

Exilio, repatriación y falso self: rupturas y suturas

 

 

Anna-Maria de Lemos Bittencourt

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da temática Exílios e repatriações, a autora irá considerar as rupturas precoces no psiquismo e a defesa self falso, que pela cisão mantém o self verdadeiro em exílio. Indaga se a busca do verdadeiro self, objetivo da análise, segundo Winnicott, pode ser considerada uma forma de repatriação, e examina então os significados de self, exílio e pátria. Aborda também as possíveis formas de sutura promovidas pela experiência analítica e suas extensões.

Palavras-chave: continuidade de existência; ambiente suficientemente bom; cisão do self; integração; espaço potencial.


ABSTRACT

Starting from the current issue's theme, that is Exiles and repatriations, the author will consider premature ruptures in the psyche and the defense of the false self - a false self that keeps the true self in a state of exile through the ego defense mechanism of splitting. According to Winnicott, the pursuit of the true self is the purpose of psychoanalysis. This paper questions whether this pursuit may be considered a way of repatriation. As such, the author examines the meaning of self, exile, and homeland (or fatherland). This paper also studies possible sorts of sutures which may be provided by the psychoanalytic experience and its extensions.

Keywords: continuity of existence; good-enough environment; splitting of the self; integration; potential space.


RESUMEN

Partiendo de la temática Exilios y repatriaciones, la autora considerará las rupturas tempranas en el psiquismo y la defensa self falso, que, a través de escisión, mantiene el self verdadero en exilio. Indaga si la búsqueda del verdadero self, objetivo del psicoanálisis, según Winnicott, podría ser considerada una forma de repatriación. Examina, entonces, los significados de self, exilio y patria. Aborda también las posibles formas de sutura promovidas por la experiencia analítica y sus extensiones.

Palabras clave: continuidad de existencia; ambiente suficientemente bueno; división del self; integración; espacio potencial.


 

 

O tema do exílio marca a ferro e fogo a história do homem, desde a mítica expulsão de Adão e Eva do paraíso, quando foi perdida a condição de bem-aventurança que os unia a Deus. A experiência do desterro repete-se em todas as épocas e civilizações, como fruto de escolhas voluntárias, migrações, perseguições políticas, banimento e expatriação, de Moisés às trágicas diasporas contemporâneas, em que milhões fogem da fome, de guerras civis, religiosas ou do terror, aviltados em seus direitos e em suas vidas. Há que se considerar ainda os exilados sociais, aqueles que, dentro de sua comunidade de origem, são marginalizados e até mesmo eliminados por conta de sua crença, raça ou orientação sexual; são considerados “cidadãos de segunda classe”, vítimas do preconceito, objeto das projeções daquilo que cada um considera abjeto em si. Finalmente, os exilados de si mesmos, aqueles que, diante de experiências traumáticas, criam defesas alienantes que os deixam com recursos reduzidos para fazer face às demandas da vida.

A experiência de perda e ruptura acompanha aqueles que deixaram para trás a pátria, a língua, a família, os amigos, a casa, caras feições e paisagens, ou uma parte de si, e se tornará mais ou menos dolorosa e/ou trágica a depender das condições pessoais e sociais em que o exílio se cumpriu. São vivências inevitáveis, e cada um terá que buscar o modo próprio de elaborar os desenraizamentos, fazer suturas, realizar o processo de reconstrução pessoal. Mas e quando as pessoas parecem ter sido destituídas de quase tudo?

Usarei como mote para introduzir minha contribuição uma frase do escritor franco-americano Julien Green, citada por Queiroz (1998, p. 320) em seu livro sobre a literatura do exílio: “O menino dita, o homem escreve.” As obras literárias, assim como todas as expressões culturais humanas, são produções que dão forma a alguma coisa do infantil que todo homem carrega dentro de si. Para Winnicott, trata-se da capacidade de brincar: “para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento” (1969/1975, p. 147). Os processos criativos formam um continuum desenvolvido a partir de uma área intermediária de experimentação - o espaço potencial - entre a criança e a mãe, de onde emergem produções como os objetos e fenômenos transicionais, espraiando-se depois nas produções da cultura. Esses processos têm a função paradoxal de manter ao mesmo tempo unidos e separados a interioridade e a exterioridade, o eu e o outro, passado e presente. Assim, suturas implicam necessariamente rupturas.

 

Rupturas e self falso: o exílio de si mesmo

Às vezes, pode haver falhas na constituição do espaço potencial, e o ser humano não encontra outro modo de fazer face a experiências de ruptura senão adoecendo. Este artigo tratará da organização do self falso, conforme o conceito de Winnicott (1960/1983, p. 130), uma defesa psíquica que, na saúde, tem a função de proteção do self verdadeiro, mas que pode igualmente tomar variadas expressões sintomatológicas e, nas condições mais graves, adquirir a forma clínica da personalidade falsa, considerada por esse autor uma patologia-limite. Ocorrerá aí um processo de cisão que duplicará o self em um self falso e outro verdadeiro.

As consequências dessa cisão serão mais bem compreendidas se acompanharmos o eixo central do pensamento winnicottiano, que repousa na ideia de que nos momentos primordiais da vida cabe ao ambiente suprir o bebê em suas necessidades, permitindo-lhe viver a experiência de continuidade da existência (going on being). O ser humano toma forma a partir de um conjunto, ambiente-indivíduo, em que ele vive em estado de dependência quase absoluta da mãe. É dessa unidade inicial que emerge o self. Não se pode examinar a construção do psiquismo partindo apenas da perspectiva de sua interioridade; as funções exercidas pelo objeto têm que ser levadas em conta, ideia radicalizada pelo autor quando da afirmação de que o bebê é algo que não existe (Winnicott, 2000, p. 165). Dentro da díade, constrói-se primordialmente a experiência de ser, o início de tudo (Winnicott, 1987/1996, p. 9). Trata-se de um estado de repouso, amorfia e não integração propiciado pela mãe suficientemente boa que, identificada a seu bebê, se adapta ativamente às suas necessidades (necessidades do eu), oferecendo-lhe a continência do holding, filtrando excitações, permitindo-lhe viver a ilusão de completude e totalidade. Em face desse objeto confiável, gestos espontâneos emergem e, quando repetidos e acolhidos pela mãe, são vividos pelo bebê como emanados do centro de si, do seu self - fonte da espontaneidade e criatividade pessoal -, fazendo-o sentir-se real. Só então as experiências pulsionais podem ser assimiladas e vividas como próprias.

O processo de diferenciação sujeito/objeto faz-se de forma gradual, favorecido igualmente pela função materna, que será agora a de desiludir, de romper a vivência de continuidade, plenitude e completude, no momento ótimo todavia, quando os recursos simbólicos já ensaiam seus primeiros passos através das experiências transicionais, elementos de ligação entre o eu e o outro.

Quando há falha das funções ambientais, os estímulos não filtrados adentram o self em formação e, sentidos como intrusos, promovem ruptura e descontinuidade na experiência de ser, obrigando o self a cindir-se para se defender. O self falso protege o verdadeiro, isolando-o através do espessamento de fronteiras; os movimentos ora realizados desenvolvem-se a partir da superfície do self, e não do seu núcleo, e as ações perdem o caráter espontâneo, tornando-se reativas. O sentimento de ser real se desvanece. A falha da maternagem promove também cisão na unidade psiquesoma, o que resulta em doenças somáticas, em transtornos da imagem corporal ou na formação da entidade psiquemente (Winnicott, 2000, p. 337), uma hipertrofia do intelecto cindido do corpo.

A criatividade encontra-se amputada nesses casos, o espaço potencial não pode se construir, fato compensado pela hipertrofia dos processos adaptativos à realidade, que põe o polo perceptivo em estado permanente de alerta. Na ausência desse espaço, os objetos transicionais - os elementos de ligação que suturam o vazio deixado pelas separações - não se produzem. A fonte da criatividade está comprometida, tornando-se o indivíduo, basicamente, um ser responsivo. Forma-se assim uma suposta maleabilidade de respostas ao meio, que é na verdade um modo complacente de defesa, uma identificação imitativa camaleônica, a última tentativa para proteger o núcleo do self. Poderá haver fragmentação ou até mesmo pulverização do self, cujos pedaços permanecem a partir de então sem comunicação entre si. Para Winnicott (1960/1983), a perda da condição de ser nos estágios iniciais, por conta de invasões ambientais, é um equivalente da morte.

A consequência disso é a experiência de futilidade, de não existência, de hipervalorização intelectual. Pude acompanhar na clínica algumas situações desse tipo. Cito o caso de um adolescente especialmente inteligente, cujo discurso era motivo de orgulho familiar, devido ao vocabulário variado, oferecido como cardápio de palavras extremamente sofisticadas, pouco utilizadas pelos jovens de sua faixa etária. Logo pude observar que sua fluência eventualmente era cortada por um titubeio e que o emprego de certas palavras não correspondia ao seu significado usual. Percebi que sua fala era basicamente um texto decorado a partir do discurso dos pais. Foi a defesa que encontrou para reagir a vivências precoces de intrusão, que puderam ser repetidas na cena analítica, onde se mostrava extremamente sensível a quaisquer alterações no setting, barulhos incomuns, mudança de iluminação ou de outras ordens.

Poderíamos resumir dizendo que o falso self é um despossuído de si, que não habita a própria pátria ou não tem pátria. Diante de situações traumáticas de ruptura - por intrusão ou ausência do objeto cuidador -, ele protege o self do aniquilamento e da desintegração. Exila-se de si e do outro, no outro, às custas de solidão e muito sofrimento.

 

Suturas: a experiência psicanalítica e algumas extensões

Os autores pós-freudianos, começando com Ferenczi, depois Winnicott, chegando até os contemporâneos, destacando-se especialmente Roussillon (2015a, 2015b), entenderam a necessidade de introduzir modificações na técnica analítica clássica, pois o tratamento-tipo, próprio à neurose, baseado essencialmente na interpretação verbal, tinha alcance limitado nas patologias-limite, como o falso self, em que os deficit simbólicos são significativos. Se estes são pensados como decorrentes de falha ambiental, é importante que o analista dê atenção a características do setting que, simbolicamente, sejam a contrapartida, no campo transferencial/contratransferencial, dos cuidados dispensados pela mãe. As características de constância, previsibilidade e “monotonia”, tornadas possíveis pelas funções de holding e espelhamento, devem ser especialmente valorizadas. Só então um movimento regressivo poderá ocorrer na transferência, permitindo viver e significar experiências traumáticas precoces, até então não representáveis. A regressão é visão aterrorizante para aqueles que não puderam introjetar o bom objeto cuidador e representa um risco de desintegração e morte. É preciso que o analista seja um objeto continente e, portanto, confiável - confiável até que possa haver integração mínima do self, para que a experiência analítica possa ser vivida como espaço potencial criativo, quando as interpretações ganharão o caráter transicional.

Atendi uma mulher que se queixava de “falta de memória”, não apenas de acontecimentos, mas de fisionomias de pessoas próximas ou dos lugares onde viveu e por onde passou. Tinha uma história de separação precoce e abrupta da mãe, e a cada término de sessão era invadida por angústias que repetiam a vivência antiga. Disse-me um dia: “I'm nothing, I don't have nothing. Eu não tive ninguém para me fazer” (a duplicidade do idioma durante as sessões também servindo como expressão de sua divisão interior, a presença do estrangeiro no exílio, outra pátria, outra língua). Correlacionou nessa sua fala os sentimentos de inexistência e de vazio à falta do objeto continente. Depois de algum tempo de análise, na tentativa de resgate de memórias, decide trazer álbuns com fotografias antigas. Passamos muitas sessões olhando fotos, o que foi uma experiência importantíssima para ela, e o deslizar do meu olhar para as fotos e para ela unia as duas cenas do passado e do presente - assim ela me verbalizou depois. Mas naquele momento a troca de olhares tomou o centro, repetindo, na transferência, a carência do espelhamento dos primórdios, como se verá em outros momentos da análise. Minhas perguntas ou observações sobre as fotos significavam igualmente provas da minha presença interessada. Conseguiu assim relembrar fatos ou quem sabe “inventar memórias” (Barros, 2008), o que foi motivo de algum alívio. Observei-a, de outra feita, olhando-me fixamente e mudando de posição repetidas vezes, tendo respondido, quando indagada, que precisava aprender, com os meus gestos, como segurar o queixo, como cruzar as pernas -“Ninguém me ensinou isso”, acrescentou -, evidenciando outra vez a falência da função especular. Angustiava-se nos intervalos entre sessões porque, eventualmente, não se lembrava do meu aspecto, o que a fez pedir-me que a deixasse fotografar-me em seu celular, para lembrar-se de mim quando me esquecesse, o que consenti. Entendi que a foto funcionaria como um objeto transicional, que ela precisava materializar minha imagem quando o tempo de separação fosse maior do que a sua capacidade de simbolizar a falta. Na medida do possível, os significados de todas essas experiências foram comunicados e interpretados em momentos mais propícios, mas não faziam sentido quando ela se experimentara tão desintegrada.

O recorte clínico foi apresentado como modo de trabalhar vivências regressivas em análise, priorizando-se o que Winnicott chamou de necessidades do ego, necessidades narcísicas para outros. Esse tipo de abordagem não ignora a importância do trabalho interpretativo de conflitos inconscientes. O que se pretende destacar é que a identificação do analista, na transferência, com as funções da mãe suficientemente boa tem se mostrado útil para vencer determinados impasses terapêuticos encontrados em muitas análises.

Situações de ruptura provocadas por acontecimentos da realidade podem ativar traumas infantis, propiciando o desencadeamento de perturbações emocionais. É importante que, nessas circunstâncias, grupos sociais comprometidos com a saúde estendam às populações afetadas a política do cuidar, valorizando igualmente nesse outro setting as noções de continência e de experiência de continuidade (para o desenvolvimento do conceito de cuidar como intervenção terapêutica, ver Estellita-Lins [2007]).

Durante a Segunda Guerra Mundial, Winnicott trabalhou no Comitê de Evacuação, acomodando crianças no interior da Inglaterra. Opôs-se tenazmente à crença da suposta facilidade adaptativa das crianças, alertando as autoridades sobre os graves riscos à saúde mental das crianças - especialmente as pequenas - em face de separações e perdas abruptas quando ainda não são capazes de elaborar seus lutos. Deu então significativa atenção às condições que os alojamentos deveriam apresentar para minimizar os efeitos inevitáveis da guerra e do involuntário, mas necessário, exílio imposto às crianças. Toda a equipe trabalhava para oferecer estabilidade e continência, o que significava constância de cuidadores, que deveriam dar atenção singularizada a cada criança nos cuidados físicos e psíquicos, na alimentação, no vestuário e mesmo na arrumação das instalações, para que os alojamentos se tornassem de fato lares substitutos (Winnicott, 1984, p. 67). Isso tinha por si só caráter terapêutico dentro do universo de alta tensão produzido por todos os tipos de desajuste, que variavam do falso self a comportamentos antissociais. Houve também atenção aos objetos transicionais, estimulados a serem levados aos alojamentos (não pude resgatar a origem dessa informação, possivelmente em Graña [2007]). Fazia também parte das metas da equipe - especialmente no caso dos adolescentes - um trabalho com os moradores locais, para orientá-los no lidar com as crianças demasiadamente perturbadas, obedecendo-se assim à teoria dos círculos winnicottiana, que supõe que a função de holding iniciada com os cuidados maternos deve expandir-se por toda a sociedade.

O mesmo tipo de atenção norteia uma experiência mais atual. Em 2015, o Sigmund-Freud-Institut, de Frankfurt, foi convidado a desenvolver um projeto-piloto, chamado Step-by-Step, para dar suporte a refugiados que chegavam à Alemanha após passarem por situações traumáticas na rota de fuga. A complexidade da situação é evidente e demanda atendimentos multi-institucionais e multidisciplinares, mas Leuzinger-Bohleber, Rickmeyer, Tahiri, Hettich e Fischmann destacam como cuidados urgentes, como primeiros socorros, o oferecimento de segurança e proteção, mediados pela “experiência de continência e de holding, em relações profissionais empáticas e confiáveis” (2016, p. 1080), expressas na escuta e no interesse pela história pessoal de cada um, dão a eles visibilidade. Seriam precondições para o desenvolvimento do sentimento de pertencimento à comunidade, a partir do qual poderão ser feitas ações colaborativas.

 

Busca do self, rupturas, suturas

A meta da experiência psicanalítica, segundo Winnicott, seria a busca do self, a via que pode levar o indivíduo a sentir-se real O que se quer exatamente com busca do self? Pretende-se um resgaste do self em exílio, uma repatriação?

Tais questões exigem desdobramentos. O primeiro refere-se ao entendimento da noção de self e suas imprecisões ou complexidades na obra de Winnicott; o segundo refere-se ao sentido que atribuímos às palavras exílio e pátria.

Em artigo anterior (Bittencourt, 2002), tentei examinar o conceito de self em Winnicott e suas aparentes divergências. Ele é ora descrito como unidade e totalidade (Winnicott, 1971/1982, p. 56), numa abordagem à primeira vista descritiva e inserida em um referencial fenomenológico, ora apresentado como self-criatividade, problematizador e investigador (p. 54). Sugeri que uma conciliação entre esses dois aspectos aparentemente contraditórios seria possível se trabalhássemos com as ideias do cientista Simondon (1964) de que existem dois tipos de totalidade, a fechada e a aberta. A primeira é objetiva e encontra-se fora do tempo; a segunda é uma estrutura não previamente constituída, formando-se processualmente num campo relacional, um movimento inserido no tempo. Poderíamos considerar o self como totalidade aberta, sujeita a modificações constantes a partir de um sistema de trocas com o meio. Nesse caso, a totalidade faz-se e refaz-se, e portanto o self-totalidade é ao mesmo tempo self dinâmico.

Ao falarmos então no resgate do self exilado, assim como da repatriação, não pretendemos que haja volta a um ponto de partida, a uma entidade fixa, congelada no momento da cisão do self. O que se pretende resgatar é a capacidade movente do self, é o trânsito por fronteiras mais flexíveis que o deixa livre para criar, num campo potencial entre-dois. Assim se fazem as suturas, tornando móvel o imóvel que se exilara no outro.

Inevitável não se pensar, nesse momento, no conceito de Unheimliche, o inquietante que habita em nós, projetado para fora como estranho, mas sendo na verdade algo muito familiar que o processo de repressão alheou (Freud, 1919/2010). A descoberta freudiana do inconsciente veio inquietar nossa razão, ameaçada por algo que dela escapa.

Abordar o inconsciente como estrangeiro ou exilado foi questão desenvolvida muito especialmente nos clássicos trabalhos de Kristeva (1988/1994) e Fuks (2000). A primeira, em Estrangeiros para nós mesmos, faz um aprofundado estudo sobre a alteridade e o convívio com o outro, examinando a relação da sociedade com o estrangeiro, ora acolhido, ora rejeitado, de acordo com o momento histórico considerado. A utopia de uma sociedade sem estrangeiros deveria ser substituída por novas formas de aceitar a alteridade. Kristeva crê que o convívio com o estrangeiro/ outro só se torna possível se pudermos conciliar-nos com o estrangeiro que habita em nós, não necessariamente integrando-o, mas respeitando-o em sua diferença. Fuks, em Freud e a judeidade, propõe uma aproximação entre o exílio e o nomadismo do povo judeu (sua “vocação do exílio”) e as consequências disso na formação da judeidade de Freud - a diferença e o excluído estavam no centro de seu ser. A psicanálise, produto da judeidade de seu criador, também ele errante, foi um método para tratar o excluído. É no isolamento e na capacidade de suportá-lo que o exilado pode encontrar-se. Citando Nasio, Fuks afirma: “o exilar-se de si mesmo é uma forma de cura” (2000, p. 85).

Para as autoras mencionadas, a experiência analítica leva à reconciliação com a própria alteridade através de um outro. A psicanálise seria “uma viagem na estraneidade do outro e de si mesma, em direção a uma ética de respeito pelo inconciliável” (Kristeva 1988/1994, p. 191). Quebram-se assim significações articuladas e completas para que o sentido venha a emergir, sempre lacunar (Fuks, 2000, p. 48). A psicanálise deveria criar uma separação radical, e o exílio seria assim uma perda essencial reorganizadora da realidade psíquica do sujeito.

Trago o pensamento dessas autoras para cotejá-lo com o de Winnicott, em seus respectivos modos de entender o exílio. A abordagem do inconsciente reprimido, Édipo, castração, sexualidade, pulsão, conflito, encontraremos em Winnicott mais especialmente em sua obra Natureza humana (1988). Sua contribuição mais original, porém, refere-se aos distúrbios relacionados ao chamado modelo de deficit, e portanto àqueles casos em que falhas no cuidado ambiental levaram a vivências traumáticas precoces. Para as autoras citadas, a construção do sujeito faz-se pela falta, pela ausência; para Winnicott, pela presença - pela indissociabilidade da unidade indivíduo-ambiente, protegendo de rupturas traumáticas até o self tornar-se apto, pela transicionalidade, a trabalhar as faltas.

É interessante observar que, no mesmo artigo sobre o inquietante, Freud vai pela primeira vez tratar do mecanismo da cisão, não entre o eu e o inconsciente recalcado, mas a que ocorre dentro do próprio ego, à qual Freud dedicará posteriormente o texto “A cisão do eu” (1940/1989) - defesa da organização self falso. Para os casos relacionados ao modelo de conflito, Winnicott dirá: “É com relação à repressão que a psicanálise traz alívio através do seu uso clássico, permitindo ao paciente tornar-se consciente do conflito” (1988, p. 137). Considero que o “uso não clássico” da psicanálise não é trabalho à parte (como tentei descrever neste artigo), mas complementar, e falar de self integrado é falar de experiências pulsionais integradas ao self. Depois da experiência primordial de ser, é preciso o fazer, movimento pulsional. Trabalha-se assim, em uma análise, com construções, interpretações ou outros recursos que se façam necessários.

O exilado, para Winnicott, é o self cindido, em que há representações que flutuam sem encontrar palavras para encarná-las - daí as limitações observadas nas comunicações verbais ou interpretações. A presença “encarnada” do analista na função suficientemente boa significa usar sua empatia, seu afeto, sua paciência, seu pensamento para propiciar a experiência de continuidade no setting, a partir do que o self emerge espontâneo, sempre se renovando.

 

Repatriações geográficas e emocionais

O exílio geográfico pode ser vivido de vários modos, e a capacidade de elaborá-lo vai depender de condições pessoais e sociais. A escritora Queiroz (1998) fez uma pesquisa da obra literária de autores exilados, interessada em analisar os modos diversos como eles responderam aos “males da ausência”. “A obra responde pelo exilado” (p. 16), diz ela, e no estilo de cada escritor vemos, no amargor, na nostalgia, no remorso, na esperança, os modos de lidar com a ruptura do exílio, transformados esteticamente pela potencialidade criadora da escrita. Sem demérito da genialidade dos autores, e sem apologia do exílio, Queiroz indaga, por exemplo, se um autor como Dante, permanecendo em terra pátria, teria escrito sua Comédia.

Um contraponto a essa posição trará Said (2001). Ele crê que a ruptura do exílio é incurável e que as realizações do desterro são apenas esforços paliativos para superar a dor de algo para sempre perdido. O exílio é sempre uma violência. Destaca que grande parte da literatura do século XX foi uma literatura de exilados e para exilados, mas que na época atual de imigrações em massa, decorrentes de sistemas políticos perversos, “o exílio não pode ser posto a serviço do humanismo” (p. 47) - nem da estética. Que soluções estéticas poderiam se esperar de refugiados que possuem em mãos somente um cartão de suprimentos, indaga ele. Carentes de tudo. Há questões que transcendem a subjetividade; quando a política de massas violenta a própria condição humana, o espaço para a criatividade se restringe.

Testemunhos pessoais de exilados (Melícias, 2016; Rollemberg, 1999) permitem acompanhar alguns processos de reconstrução pessoal. Observamos ali os momentos de nostalgia da terra natal, estranheza, solidão: “a crise de identidade que se vê nos rostos das pessoas sem pátria e sem classe, sem encadeamento entre passado e presente, se projetando para frente, vivendo numa eternidade estática e vazia de sentido de identidade” (Benjamin, citado por Rollemberg, 1999, p. 132). Pode haver de início a recusa da nova cultura ou, ao contrário, a pressa em adaptar-se, em tornar-se assimilado, lançando mão de um falso self - legítimas formas de sobrevivência. Um ambiente protetor pode ser fundamental para dar contorno a imagens esfaceladas, sendo encontrado em pequenas comunidades - como visto no trabalho mencionado de Frankfurt - ou buscado na colônia de compatriotas, como ocorreu com os brasileiros exilados na ditadura -“nunca se comeu tanta feijoada como no exílio” (Rollemberg, 1999, p. 151).

Depois vem a alternância da nostalgia com novos pertencimentos, os lutos se fazem, a força traumática da ruptura impele as identificações positivas com a nova cultura, e novos projetos pessoais se organizam, há reconstruções em outros níveis - tarefa que nem todos conseguem. Melícias (2016), mergulhando dentro de si e abrindo espaço para o outro, deu à pátria o sentido de uma geografia emocional, uma paisagem afetiva. Uniu emocionalmente territórios fixamente demarcados, numa posição flutuante.

São todos campos de tensão, um espaço potencial que liga passado e presente, memórias e percepções, a tradição e o novo, o eu e o outro, e assim se recria uma história. O sentido de repatriação está nesse equilíbrio entre raízes e radares, escreveu Rollemberg (1999).

Self, pátria, repatriação são pontos não de chegada, mas de partida. Home is where one starts from.

Não cessaremos nunca de explorar

E o fim de toda nossa exploração Será chegar ao ponto de partida.

(Eliot, 1981, p. 234)

 

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Correspondência:
Anna-Maria de Lemos Bittencourt
Rua Miguel Pereira, 34, ap. 302
22261-090 Rio de Janeiro, RJ
annambittencourt@gmail.com

Recebido em 07.02.2017
Aceito em 21.02.2017

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