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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

EM PAUTA

 

Exílios e sublimações

 

Exiles and sublimation

 

Exilios y sublimaciones

 

 

Ana Maria Loffredo

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e professora livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Correspondência

 

 


RESUMO

A tese relativa a dois tempos na operação da sublimação abre uma vertente promissora de investigação, desvinculada de uma perspectiva homogeneizante e restrita, inspirada pela noção de valor e de endereçamento ao sublime, que empobrece seu potencial heurístico. Algo fundamental do trabalho sublimatório é enfatizado, no âmbito da temporalidade e do timing, já que é imperativo que seja possível conter, suspender e adiar a energia pulsional, para que esse segundo tempo se viabilize - na mesma linha da hipótese freudiana da necessidade de uma reserva da energia móvel e indiferente subjacente a esse destino pulsional, suporte para a circulação das sublimações, com ênfase em seu aspecto eminentemente plural e multifacetado. Na rede conceitual em que se insere a sublimação, pode-se destacar, na esfera deste estudo, sua vizinhança com o recalque, o trabalho de luto e a formação dos ideais, pano de fundo que evidencia seu alcance para a tematização das vivências subjetivas implicadas na experiência do exílio.

Palavras-chave: exílio; metapsicologia freudiana; sublimação; recalque; luto.


ABSTRACT

This paper is about the process of sublimation happening in two times. This idea opens up a promising new line of research to psychoanalysts. This new line does not relate to a homogenizing and restricted perspective, inspired by both the notion of value and the orientation to the sublime, which minimizes its heuristic potential. An essential part of the sublimatory work is emphasized in the context of temporality and timing. This emphasis occurs because the instinctual energy must be contained, suspended, and deferred in order to enable this second time to happen. It follows the Freudian hypothesis, that is the “need” for reserving the mobile and indifferent (apathetic) energy, which underlies this instinctual destiny. It supports the movement of sublimation. At this point, the author emphasizes its especially pluralistic and multifaceted characteristic. This conceptual network, within which sublimation is placed, allows the author to highlight that sublimation is close to repression, work of mourning, and formation of the ideals. This background shows a scope of sublimation that includes the theme of subjective experiences related to exile.

Keywords: exile; Freudian metapsychology; sublimation; repression; mourning.


RESUMEN

La tesis referente a dos tiempos en la operación de sublimación abre un aspecto prometedor de investigación, sin relación con una perspectiva homogeneizante y restringida, inspirada en la noción de valor y dirigida a lo sublime, que empobrece su potencial heurístico. Algo fundamental del trabajo sublimatorio se destaca, en el contexto de la temporalidad y el timing, ya que es imprescindible que sea posible contener, suspender y aplazar la energía pulsional, para que este segundo tiempo se viabilice - en el mismo sentido de la hipótesis freudiana, de la necesidad de una reserva de energía móvil e indiferente subyacente a ese destino pulsional, soporte para la circulación de las sublimaciones, con énfasis en su aspecto eminentemente plural y multifacético. En la red conceptual en que se inserta la sublimación, se destacan en el contexto de este estudio sus aproximaciones con la represión, el trabajo de duelo y la formación de los ideales, paño de fondo que muestra su alcance para tematizar las experiencias subjetivas involucradas en la experiencia del exilio.

Palabras clave: exilio; metapsicología freudiana; sublimación; represión; luto.


 

 

Preliminares

A palavra trabalho tem um estatuto peculiar na ficção metapsicológica, em seu enredamento no repertório conceituai freudiano, de modo que os funcionamentos psíquicos subjacentes às intensas vivências subjetivas relativas aos exílios e repatriações necessariamente implicarão modalidades de trabalho psíquico que nos interessa investigar.

Na linha das reflexões de Payan (2012), que é uma referência valiosa nessa temática, em função de sua experiência direta com imigrantes, como psicanalista e como pesquisadora, deve ser destacado como poucos autores1 têm se dedicado à investigação do trabalho psíquico que é requerido do exilado para investir em um novo tempo e lugar, assim se desviando da via melancólica que se abre como possibilidade em meio às angústias que o assolam nessa situação.

Nesse contexto, a sublimação pode ser convocada, na medida em que, mesmo que a perspectiva do retorno esteja sempre presente para o exilado, é fundamental como será tratado pelo sujeito o interdito que se explicita nessa situação de sofrimento, já que esse retorno é impossível de ser realizado imediatamente. Então se inserem as peculiaridades da operação desse destino pulsional, cabendo uma breve referência às suas vicissitudes, no sentido de angariar subsídios para dar encaminhamento a esta reflexão.

Justamente a questão do interdito é um fio fundamental e promissor que nos puxa para um campo de relações conceituais no qual se insere a sublimação. Nesse sentido, não é trivial o alcance da afirmação de Green (2010), a partir dos quatro destinos pulsionais definidos por Freud (1915/2010c), cuja ordem não é destituída de sentido: os dois primeiros podem ser enquadrados na ideia da dupla inversão, ocorrendo antes do recalque; os dois últimos, recalque e sublimação, são atravessados por uma relação de natureza dialética.

Mas não é demais destacar que o inacabamento da conceituação de sublimação é reconhecido pelo próprio Freud, num momento tardio de sua produção, em O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010f), quando aborda uma das estratégias para afastar o sofrimento, através de deslocamentos da libido:

A sublimação dos instintos empresta aqui sua ajuda. O melhor resultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual. Então o destino não pode fazer muito contra o indivíduo. A satisfação desse gênero, como a alegria do artista no criar, ao dar corpo a suas fantasias, a alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade, tem uma qualidade especial, que um dia [itálico nosso] poderemos caracterizar metapsicologicamente. (p. 35)

Nessas alturas, é surpreendente que Freud não tenha se servido dos avanços conceituais propiciados pela formulação do segundo dualismo pulsional e da segunda tópica, que permitem uma reconfiguração muito mais promissora para tratar do alcance da sublimação. De certa forma, sua aparição nos textos freudianos finais é frustrante, já que reforça uma visão homogeneizante e restritiva desse destino pulsional, oriunda de suas pesquisas iniciais e retomada, em geral, por seus seguidores. Essa perspectiva, que limita os desdobramentos do potencial heurístico subjacente a essa construção metapsicológica, enlaça a propriedade maior da sublimação à valorização social e às construções que se destacam no contexto sociocultural. Dessa forma, empobrece seu alcance para tematizar questões que atravessam o cenário contemporâneo do sofrimento psíquico, justamente pela sua vocação de dialogar estreitamente com os fenômenos culturais.

Assim, devemos lembrar que, no trajeto construído desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/2016), quando a sublimação aparece em texto impresso pela primeira vez, até as referências presentes nas Novas conferências introdutórias à psicanálise (Freud, 1933/2010g), o cenário conceitual da sublimação se delineia principalmente em função da relação entre sublimação e erotização (Birman, 2010).2

Desde as pesquisas iniciais, um conjunto de hipóteses articuladas entre si dá sustentação à operação da sublimação: a existência de uma fonte de desprazer inerente à pulsão sexual (Masson, 1986), de que se originam “restos de libido pré-genital” que alimentam a aptidão constitucional para sublimar, vinculada à força originária da pulsão; a ideia de que a excitação sexual é gerada como efeito colateral, numa grande variedade de processos internos; a abordagem das relações entre o sexual e o não sexual no âmbito de vias de influência recíproca; e a diversidade inata da constituição sexual, conjunto que desemboca, em função de um processamento ulterior, em três destinos diferentes: perversão, recalque e sublimação.

O entrelaçamento desses elementos atravessa as reflexões freudianas sobre a sublimação e se mantém inclusive no bojo das interessantes formulações advindas a partir de 1920, tendo evidente ressonância na análise metapsicológica de contextos os mais diversos em que a sublimação seja convocada.

Inicialmente, perspectiva que costuma ser privilegiada nos estudos sobre a sublimação, sua operação se definia pela capacidade de trocar a meta sexual originária por outra, não mais sexual, embora psiquicamente aparentada a ela, como bem sintetiza o fragmento a seguir, de “A moral sexual 'civilizada' e a doença nervosa moderna” (Freud, 1908/1989). No processo de desenvolvimento,

uma parte da excitação sexual proveniente do próprio corpo é inibida, desde que é inutilizável para a função reprodutora e, nos casos favoráveis, é conduzida à sublimação. Desse modo, as forças utilizáveis para o trabalho cultural se conseguem em boa medida pela sufocação dos elementos chamados perversos [itálicos nossos] da excitação sexual. (p. 169)

Nesse quadro, deve ser enfatizada a importância do fator quantitativo e da noção de estase libidinal, como observamos em “Tipos de adoecimento neurótico” (Freud, 1912/20101): “Todos os outros fatores - frustração, fixação, inibição do desenvolvimento - ficam sem efeito, enquanto não tocam a uma certa medida de libido e provocam um represamento libidinal de determinada altura” (p. 237).

Como o mecanismo do recalque regula a sexualidade perverso-polimorfa e, assim, os “diques” pertinentes ao asco, à vergonha e à compaixão, tão evidenciados em Três ensaios, colocam efetivamente uma barreira à sexualidade infantil,

a sublimação relançaria, em contrapartida, a sexualidade perverso-polimorfa e estes afetos primordiais em direção aos domínios do belo e do sublime. Nesta perspectiva, a leitura freudiana do campo da moral se imbricaria intimamente com a leitura do campo da estética, face e verso que seriam de uma mesma problemática. (Birman, 2010, p. 535)

O que se destaca já nesse período inicial é a cooperação entre recalque, sublimação, fixação e regressão, explicitando-se a relação peculiar entre os dois primeiros, cujos laços estreitos se evidenciam em sua implicação como barragem à moção pulsional; também a ideia da relação entre abstinência e potencial sublimatório, e a apreensão do ato criativo como saída para o desejo sexual. Essa vizinhança complexa e prenhe de consequências é tematizada e esmiuçada em Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci (Freud, 1910/2013), texto clássico nos estudos sobre a sublimação. Aqui deve ser enfatizada a formulação freudiana, alvo de muita atenção na literatura, que menciona as três alternativas passíveis de serem seguidas pela pulsão de saber, tão fundamental para a investigação da sublimação nessa obra:

[no] terceiro tipo, o mais raro e mais perfeito [...], a libido se furta ao destino da repressão, ao sublimar-se em ânsia de saber desde o início [itálico nosso] e juntar-se ao vigoroso instinto de pesquisa, reforçando-o. [...] Ao evitar ocupar-se de temas sexuais, ele ainda leva em conta a repressão sexual. (p. 140)

Essa expressão - de certa forma, enigmática - tem consequências de peso para o exame da operação da sublimação; ela nos remete a uma dessexualização imediata, como se a sublimação se impusesse, de modo imperativo, sem escolha, pelo menos nesse momento do desenvolvimento libidinal.

Mas a investigação minuciosa da sublimação, no âmbito das produções desse artista genial, leva Freud a uma conclusão radical: o ato criador é um mistério, de modo que “a natureza da realização artística nos é inacessível mediante a psicanálise” (p. 217). Disso se deriva que o ato criador não serviu como suporte fundamental das reflexões freudianas voltadas à sublimação, de tal forma que se deve sublinhar que a sublimação não é para Freud “um equivalente da noção de criatividade” (Mijolla-Mellor, 2012a, p. 40), leitura equivocada que pode ocorrer numa apreensão apressada de sua operação. De modo que a questão da importância da criação poética como suporte para o estudo da operação sublimatória deverá esperar até O eu e o id, em que será anunciada a relação estreita entre sublimação e identificação.

Com a diferenciação mais apurada entre seu mecanismo e a idealização, a articulação da sublimação à dimensão da beleza e do enobrecimento, passível de observação na arte e na literatura, como se via no início da investigação freudiana, começa a ser gradualmente desvinculada. A questão de sua estreita relação com a formação dos ideais ocupa lugar de destaque em “Introdução ao narcisismo” (Freud, 1914/2010d), quando se adensa a teorização sobre a tensão entre as demandas pulsionais e as exigências culturais, quadro em que se evidencia uma vez mais sua proximidade com o recalque.

Em sua articulação com o novo dualismo pulsional, O eu e o id (Freud, 1923/2011a) apresenta uma verdadeira modificação na problemática da sublimação no âmbito do objeto: no bojo do processo de identificação, evidencia-se a relação da sublimação com o trabalho de luto e com a pulsão de morte, desde que, com a transformação da libido objetal em libido narcísica, ocorre

uma dessexualização, ou seja, uma espécie de sublimação. [...] talvez a sublimação ocorra por intermediação do eu [...]. Mais adiante consideraremos se tal transformação não pode ocasionar outros destinos para os instintos, como, por exemplo, uma disjunção [itálicos nossos] dos diversos instintos amalgamados. (p. 37)

De fato, Freud se reporta a duas operações paralelas, que não costumam ser destacadas na literatura: esse primeiro estágio seria uma “espécie” de sublimação, que se remete a uma simples dessexualização e favorece a constituição de um estoque energético, na linha da afirmação de Freud segundo a qual “parece plausível que essa energia operante no eu e no id, deslocável e indiferente, provenha da reserva [itálico nosso] de libido narcísica, seja Eros dessexualizado” (p. 56).

Não há dúvida de que essa obra apresenta um salto metapsicológico significativo para o entendimento da sublimação, no bojo de sua articulação ao narcisismo, à identificação e à dessexualização, rede conceitual que, em seu conjunto, significa uma função de antagonismo a Eros: “a conotação narcísica passou aqui de um narcisismo de vida a um narcisismo de morte” (Green, 2010, p. 243).

Nesse panorama insere-se o aspecto “perigoso” da sublimação: o eu se apodera da libido objetal, impõe-se como único objeto de amor, dessexualiza ou sublima a libido do id, e assim “trabalha de encontro [itálico nosso] às intenções de Eros, coloca-se a serviço dos impulsos instin-tuais contrários” (Freud, 1923/2011a, p. 57). É desse quadro que emerge o sentimento inconsciente de culpa, vinculado à situação edípica:

O supereu nasceu de uma identificação com o modelo do pai. Toda identificação assim tem o caráter de uma dessexualização ou mesmo sublimação. Parece que também ocorre, numa tal transformação, uma disjunção [itálico nosso] instintual. O componente erótico não mais tem a força, após a sublimação, de vincular toda a destrutividade a ele combinada, e esta é liberada como pendor à agressão e à destruição. (pp. 68-69)

Enfim, como a perspectiva anunciada pela psicanálise, desde seus primórdios, recorta como objeto de seu interesse o espaço habitado pela tensão entre narcisismo e alteridade, apresenta-se uma pergunta crucial para nossos propósitos: “Seria a sublimação o que permitiria a constituição de uma dialética da alteridade [itálico nosso], pela inscrição da pulsão no campo da cultura?” (Birman, 1997, p. 91).

Em Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921/2011b) e em produções vizinhas, o processo de sublimação está mais alinhado ao sentido de uma aliança com a erotização do que na contramão da sexualidade, e os processos de identificação passam a ocupar um lugar de destaque, bem como a questão do convívio entre as pulsões sexuais não inibidas e inibidas em sua meta. Justamente as peculiaridades dessas últimas nos importam no âmbito da sublimação, já que envolvem uma “disposição libidinal na qual a própria ausência de descarga sustenta a moção pulsional em direção ao objeto num movimento ininterrupto, mobilizado pelo prazer implicado na excitação vinculada à esperança [itálicos nossos] de alguma conquista”

(Mijolla-Mellor, 2012a, p. 33). Desse modo, o processo não fortalece uma posição de onipotência no sujeito, implicando, ao contrário, uma abertura infinita na direção de metas jamais totalmente alcançadas, assim se recortando “uma peculiaridade verdadeiramente fundamental desse destino pulsional” (Loffredo, 2015, p. 55).

O contexto do segundo dualismo pulsio-nal e da segunda tópica forneceu novos instrumentos teóricos para subsidiar a metapsicologia da sublimação, embora a interpretação dos desdobramentos dessas novidades não seja uníssona entre os psicanalistas. Uma leitura possível seria destacar que se trata de colocar, de um lado, a erotização e a sublimação e, de outro lado, a destrutividade e a crueldade (Birman, 2007, 2010).

Dessa forma, a sublimação implicaria a criação de novos objetos para investimento pulsional, alinhada às operações de ligação da pulsão de vida, em seu embate com a pulsão de morte. Nessa perspectiva, recortam-se duas leituras opostas do mal-estar na civilização: em “A moral sexual 'civilizada'”, é fruto do desvio da pulsão de suas metas originalmente sexuais, estando a sublimação ao lado dos processos facilitadores do sofrimento psíquico; em O mal-estar na civilização, seria resultante da destrutividade e da crueldade, contexto no qual a sublimação e a erotização seriam verdadeiramente cruciais, no sentido dos impedimentos à operação da pulsão de morte promovidos pela pulsão de vida (Loffredo, 2011).

Essa chave de leitura permite apreender o alcance das novidades teóricas enunciadas nessa última obra e em O futuro de uma ilusão (Freud, 1927/2014a): a presença de modalidades narcísicas de sociabilidade, representadas pela religião e pela filosofia, que não se vincularão necessariamente ao regime da alteridade; e a sublimação implicada em alteridade, no seio da qual se inscreve a diferença entre os sujeitos e em que o desejo de saber é regulado e mobilizado pelo desamparo, que remete necessariamente ao reconhecimento de uma falta. Nessa nova abordagem da sublimação, é crucial a mudança de objeto da pulsão, destacando-se, ao mesmo tempo, sua função de “objeto compartilhado por outros sujeitos” (Birman, 1997, p. 95).

De modo que, em termos da atração para objetivos sociais, é insuficiente que a explicação da sublimação centre-se apenas no encontro do sujeito com a cultura na qual está inserido:

A sublimação está, na verdade, ligada ao investimento de um tempo futuro e ao trabalho para conseguir isso [...]. Essa é a razão pela qual se pode legitimamente aproximar a sublimação desses momentos de reelaboração identificatória que constituem o trabalho de luto, o do humor, o tempo do período de latência, bem como o da cura psicanalítica. (Mijolla-Mellor, 2010, p. 503)

Nesse cenário, também é imprescindível que essa criação de novos objetos que são introduzidos nos circuitos pulsionais implique a realização de rupturas, por parte do sujeito, no campo de objetos e de símbolos no qual se constituiu sua visão de mundo (Birman, 1997).

O exposto até o momento nos permite apresentar uma formulação fundamental que coloca em questão o critério mais comum subjacente à definição de sublimação, em que a dimensão de valor ocupa posição central:

As atividades sublimadas podem ser intensamente valorizadas pelo grupo social de pertinência, ignoradas por ele ou rejeitadas e condenadas. O critério que fará delas sublimações se remete a essa negociação interna do sujeito com seu narcisismo e suas instâncias ideais. (Mijolla-Mellor, 2005, p. 110)

Não é difícil exercitarmos aqui um diálogo no plano conceitual com os intensos rearranjos identificatórios que atravessam necessariamente a experiência do exilado. Mas caminhemos mais um pouco neste breve alinhavado teórico.

De qualquer forma, podemos observar a dupla face e a função paradoxal da sublimação, alinhada, por princípio, tanto ao patrimônio constituído como ao sofrimento psíquico, no cenário da renúncia pulsional pertinente às exigências civilizatórias. Assim, podemos observar esse quadro contraditório, que apresenta a tensão subjacente ao espaço teórico ocupado pela sublimação, já observável desde o início do trajeto freudiano, que não cessa de se complexificar durante seu percurso, deixando uma herança de inacabamento para seus seguidores.

 

A sublimação em dois tempos

Para nosso próximo passo, é necessário retomar a afirmação freudiana, presente em Leonardo, quanto a uma operação da sublimação “desde o início”, na perspectiva das reflexões de Janin (1998). Nesse caso, “é sugerida a intervenção precoce de uma organização superegoica que permitiría salvar o investimento renunciando ao objeto” (p. 1071), questão nuclear para a operação da sublimação, na segunda tópica, alinhada a um eixo da reflexão freudiana já presente em Totem e tabu (1913/2012).

Em Psicologia das massas, essas ideias são revisitadas, e proposições semelhantes são retomadas em O eu e o id, no contexto da ontogênese. Aqui, “o menino leva em conta a ameaça, evita a perenização do desejo pela mãe, o que tem como efeito a identificação ao poder paterno, que se manifesta ao mesmo tempo em seus aspectos proibitivos e ideais” (Janin, 1998, pp. 1071-1072).

Desse modo, uma parte diferenciada no eu se erige como ideal do eu e supereu, justamente em termos da operação do trabalho do negativo, que implica dar suporte às energias do contrainvestimento, emprestando “do proibido vindo do pai sua força e, assim, se apropriando dele. [...] É inclusive legítimo pensar [...] que Freud oferece pela primeira vez um fundamento metapsicológico à sublimação como resultado da ação do ideal do eu e do supereu” (Green, 2010, p. 241).

As reformulações advindas a partir de 1920 convergem para uma reversão dialética crucial, já que o aprimoramento individual em função do processo civiliza-tório se colore de evidente periculosidade, em termos da dinâmica das instâncias, como afirma Freud de modo contundente: “Com seu trabalho de identificação e sublimação presta ajuda aos instintos de morte na subjugação da libido, mas arrisca tornar-se objeto desses instintos e mesmo perecer” (1923/2011a, p. 71).

Essas hipóteses não serão mais deixadas de lado, de tal forma que o teor de sua presença em O mal-estar, como radicaliza Janin (1998), supõe que somos “condenados” (p. 1072), de algum modo, à sublimação, afirmação que se relaciona diretamente à ideia de que a pulsão deve “sofrer [itálico nosso] um destino” (Green, 2010, p. 234).

Esse contexto permite formular a hipótese de dois tempos na operação da sublimação, ideia também enunciada por Janin (1998), embora nossas propostas não coincidam inteiramente. Para esse autor, uma sublimação primária, vinculada à sublimação “desde o início”, teria como suporte o modelo da identificação primária ao pai da pré-história pessoal, sendo concebida como “direta e imediata” em O eu e o id (Freud, 1923/2011a, p. 38). Suponho que seria uma súbita e inexorável sublimação, de tal forma que a questão do timing seria crucial: uma rápida dessexualização para viabilizar uma mudança de meta deve ser seguida por uma também rápida erotização no processo de ligação a outro objeto. A sublimação secundária foi concebida no âmbito do declínio do complexo de Édipo, quando o eu adota os traços do objeto: “Veja, você pode amar a mim também, eu sou tão semelhante ao objeto” (p. 37).

Minha hipótese é que seria mais promissor, para a investigação do espectro complexo relacionado à operação da sublimação, entender o conjunto proposto por esse autor como pertinente a um primeiro tempo da sublimação, composto pelas duas etapas a que ele se refere e que, justamente por ser mobilizado por uma condição imperativa, seria definido como sublimação primária. Essa operação poderia ter vizinhanças com o recalque primário, no campo do jogo de forças em que atuam as fixações, em suas relações com essa operação originária e as regressões correspondentes.

A partir dessa primeira sublimação, de caráter constitutivo e exemplar, a diversidade dos meandros de sua operação se engaja numa pluralidade de vias alternativas, num segundo tempo, embora atue no regime de sublimação secundária, que confere uma ordenação, segundo certos parâmetros, a esse espectro de possibilidades. Nesse contexto, suas relações com o “recalque propriamente dito” devem se estabelecer de modo muito variado, abrindo-se diversas alternativas para seu convívio com as múltiplas expressões do “retorno do reprimido” (Freud, 1915/2010h p. 94), já que

é justamente em relação ao recalque que a sublimação deve ser situada. A saber, como destino de um certo contingente pulsional que teria escapado parcialmente à sua ação. Não se subtrai ao recalque como a uma ação única, mas também quando dos retornos do recalcado suscetíveis de “deixar passar” o recalcável. (Green, 2010, pp. 235-236)

Esses movimentos sublimatórios pertinentes a um segundo tempo, que podem se conduzir de formas absolutamente singulares, delineando radicalmente a possibilidade de estilos de sublimar, conferem à sublimação o espectro multifacetado em que se expressa sua função contraditória, “simultaneamente disruptiva, organizadora, perigosa, criadora e subversiva, no sentido de que deve subverter versões já consagradas da circulação pulsional”, como pude desenvolver mais amplamente em outra oportunidade (Loffredo, 2014, p. 365). De modo que tal objeto de investigação não só requer uma teorização que faça jus a suas inerentes contradições e a seu aspecto plurivalente e multifacetado como só poderia ser nomeado em caráter plural, autenticando definitivamente a interrogação provocativa de Laplanche (1989), em seu texto clássico sobre esse tema:

Esse problema da sublimação, no fim de contas, será tão unitário quanto o sugere a utilização de um termo único? Explorando-se diferentes campos onde é possível tentar aplicá-lo, percebe-se que as diferenças são, pelo menos, tão importantes quanto os pontos comuns. (p. 56)

 

Excessos

Vemos que a questão do timing e também da temporalidade é essencial em sua operação. No espaço dessa temporalidade, o sinal de angústia, em contraponto à operação da angústia automática (Freud, 1926/2014b), deve desenvolver uma interlocução cooperativa com a sublimação, pois ambos evitam uma condição potencialmente traumatizante, considerando-se o intercâmbio sutil da sublimação com o recalque, já que este é inseparavável da angústia (Loffredo, 2013). Assim, introduzimos uma vertente fundamental relativa à interlocução da sublimação com o traumatismo.

O estudo clássico de Eissler (1980) sobre Leonardo ilustra esse conjunto de questões e, em função da excessiva vulnerabilidade do artista ao trauma, apresenta subsídios para tematizar as eventuais relações dessa disposição com sua criação, na perspectiva da sublimação. É interessante destacar sua atenção à característica de somação presente nos efeitos do traumatismo, que converge para a ideia de vários tempos, ao contrário da leitura de Freud relativa a um único e grande traumatismo decorrente da separação da mãe. O que nos importa são as estratégias psíquicas engendradas no sentido de enfrentar sua baixa capacidade de tolerância à estimulação, que o colocava à mercê de ser capturado pelo terror (Schreck), súbito afluxo de energia incontrolável, no âmbito da angústia econômica. As célebres encenações de Leonardo, quando prendia as pessoas em um quarto fechado, enchia com uma bomba tripas de animais e esperava que os espectadores fugissem assustados, são exemplares como ilustração de um retorno da passividade à atividade, nos moldes de Além do princípio do prazer (Freud, 1920/2010a), ou seja, uma estratégia de “identificação com o agressor, com a finalidade de dominar o traumatismo” (Laplanche, 1989, p. 183). Mas não custa sublinhar que o exame do processo de produção de grandes talentos nos serve como lentes de aumento para o acesso às pequenas grandes produções sublimatórias do cotidiano de todos nós.

O que importa nesse momento é demonstrar a articulação da sublimação com o traumatismo e com as alternativas de seu enfrentamento no âmbito da angústia. No caso de Leonardo, ela se apresenta em função do excesso que se anuncia, quando então a ameaça da situação traumática converge para a obra criativa, na fronteira do susto/terror; também se evidencia como dispositivo defensivo, estando subjacente às suas formações sintomáticas derivadas do recalque.

Nesse ponto, é interessante lembrar a referência freudiana, em Inibição, sintoma e angústia (1926/2014b), ao efeito de polo de atração dos recalques originários em relação aos recalques com que nos deparamos na clínica, destacando o pouco conhecimento sobre essas fases preliminares do recalque e sublinhando que não devemos superestimar o papel do supereu nesse contexto, visto que

as primeiras irrupções de angústia - bastante intensas - ocorrem, de toda maneira, antes [itálico nosso] da diferenciação do supereu. É perfeitamente plausível que fatores quantitativos, como a intensidade muito grande da excitação e a ruptura da proteção contra estímulos, sejam as causas imediatas das repressões primordiais. (p. 24)

Nessa perspectiva econômica para o tratamento da moralidade, “o que aparece como mais externo, a moral, seria de fato, na origem, o mais interno [itálicos nossos], isto é, o efeito traumático induzido pela própria excitação pulsional” (Mijolla-Mellor, 2012b, p. 62).

Nessa linha de reflexão, o traumatismo poderia funcionar como uma espécie de ímã, como ocorre com os recalques primário e secundário, e poderia disponibilizar ao artista um excedente de energia libidinal que daria suporte a seu processo criativo via operação sublimatória, que, no caso de Leonardo, na perspectiva de uma neogênese da excitabilidade, era veiculada de modo recorrente e privilegiado pelo olho.

Nesse cenário, a emergência do Unheimliche, pertinente ao campo do traumático, era evitada por Leonardo por meio de uma espécie de vigilância compulsiva contra imagens insuportáveis, relacionadas à incompletude da forma. Justamente a inquietante estranheza é acionada por esse vislumbre - como se viesse do exterior - do perigo interno pulsional do retorno do recalcado, que ameaça o eu de um transbordamento que paralisa seu funcionamento. Nesse caso, o olho é, simultaneamente, porta de entrada para o traumatismo e guardião contra sua irrupção.

Mas devemos estar atentos quanto a esse destino pulsional, pois essa força proveniente do traumatismo e que se descarrega via sublimação não se esgota nem termina nesse processo, que deve ser mobilizado de modo recorrente, encaminhando-se na direção de uma nova descarga. Nessa situação, estão presentes “dois modelos, um relativo a uma força interna que age de modo constante como uma atração vinda de fora, e outro que almeja, em vão, por meio do processo sublimatório e da criação, esgotar essa hidra sempre renascente” (Mijolla-Mellor, 2012b, p. 63).

Trata-se, portanto, de enfatizar a importância de um excedente libidinal para que o processo sublimatório possa ocorrer; e é irrelevante, em termos do resultado, que a teorização sobre esse resto se ampare seja num fator constitucional, seja numa neogênese libidinal, em função dos abalos sofridos pelo psiquismo, desde que toda experiência significativa tem repercussão na excitação sexual. O que está em questão é uma renovação incessante do fluxo libidinal, de modo que as vias de influência recíproca e as fontes indiretas da sexualidade, tão importantes desde os Três ensaios, operam como suporte teórico das vicissitudes da sublimação.

É justamente em “A conquista do fogo” (1932/2010b), que tão bem se presta às relações entre sublimação e traumatismo, que encontramos esta interessante afirmação:

Mas Héracles é também o libertador de Prometeu, pois mata o pássaro que lhe devora o fígado. Não deveríamos imaginar um laço mais profundo entre os dois mitos? É como se o ato de um herói fosse compensado pelo outro. (p. 406)

Essa passagem converge para uma interrogação crucial de Laplanche (1989): ambos, um herói antilibidinal e um herói libidinal, encenam um drama em que estaria “de um lado uma sublimação ligada ao recalque, do outro uma sublimação mais próxima das fontes libidinais diretas?” (p. 149).

Esse fragmento nos remete para a dúvida, em Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921/20110), em relação à fronteira que delimita a operação da sublimação, ao afirmar que as pulsões inibidas em sua meta ainda conservam algumas das metas sexuais originárias, de modo que, “se quisermos, poderemos reconhecer nesse desvio da meta um início de sublimação dos instintos sexuais, ou então situar mais adiante a fronteira desta” (p. 106) - reflexões que dialogam diretamente com Laplanche (1989), para quem “a inibição quanto à meta talvez seja uma via para a sublimação, mas não é a sublimação [itálicos nossos]; talvez seja apenas, no máximo, uma certa etapa nesse caminho” (p. 101). Na mesma trilha investigativa, inserem-se os comentários de Green (2010), segundo os quais “não está claro que na mente de Freud a sublimação realizada (e não o 'início' desta) consista em uma des-sexualização” (p. 241).

Finalmente, de especial interesse para o estudo da temática do exílio, devem ser sublinhados os conceitos de processo de trabalho, de luto e de escolha (Mijolla-Mellor, 2005, 2009 e 2010), implicados na ideia de temporalidade:

O termo “trabalho” introduzido aqui ao lado de “processo” sublinha que toda sublimação se efetua e sobretudo se prolonga graças a uma tensão que não tem nada de natural nem de automática [itálico nosso] e cuja meta é permitir ao eu reunir ao menos parcialmente as exigências específicas que lhe coloca seu ideal. (Mijolla-Mellor, 2005, p. 93)

Esse conjunto de ideias dá suporte à compreensão de algo essencial do trabalho sublimatório, que também se vincula à temporalidade, que é a necessidade de que seja possível conter, suspender e adiar a energia pulsional para que a sublimação possa ser viabilizada, em seu segundo tempo, hipótese que tem relação direta com a reserva libidinal a que Freud fez referência em O eu e o id, reportando-se à energia deslocável e indiferente que dá suporte ao mecanismo da sublimação. Essa poupança é condição necessária para a ocorrência das ligações empreendidas pela sublimação nessa etapa, quando ela não é imediata - hipótese subjacente a minha proposta de dois tempos na operação da sublimação, que, justamente, permite esclarecer certos embaraços relativos ao entendimento desse destino pulsional.

 

Exílios e sublimações

Algumas figuras pertinentes à experiência do exílio podem ser destacadas para dialogar brevemente com o pano de fundo delineado antes.

A primeira questão que se coloca é o imperativo do desejo de retorno, em igual medida da impossibilidade de sua realização imediata. Aqui se recorta uma questão crucial de exigência de um trabalho psíquico peculiar, num contexto em que pode vir à tona uma explosão de processos de identificação, num espaço de liberdade que, sem a assistência dos referenciais habituais, não apresenta o aninhamento necessário para a metabolização de experiências tão intensas e desestabilizantes, de modo que a ameaça dos excessos, ou seja, dos traumatismos, está à espreita. Mas não necessariamente. Como escreve Freud (1933/2010g), na 32ª das Novas conferências introdutórias à psicanálise, em sua discussão sobre a angústia: “a questão é de quantidades relativas [itálico nosso]. Somente a grandeza da soma de excitação faz de uma impressão um momento traumático, paralisa a função do princípio do prazer, dá à situação de perigo sua importância” (p. 240). Nessa mesma linha, considera em O mal-estar que “a felicidade constitui um problema da economia libidinal [itálicos nossos] do indivíduo. Não há, aqui, um conselho válido para todos; cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz” (Freud, 1930/2010f p. 40).

De qualquer forma, “conseguir viver com esse interdito supõe reconhecê-lo, integrá-lo ou contorná-lo” (Payan, 2012, p. 418), matéria em que a missão da sublimação é claramente convocada em função de seus meandros de funcionamento aos quais nos dedicamos anteriormente.

Amparando-se nas reflexões de Vásquez (1982), Payan (2012) nos remete para três etapas do exílio: o traumatismo e o luto, a crise (em função principalmente do desengajamento político) e a transculturação, e finalmente o abalo dos mitos e o início da integração.

Aqui devemos lembrar que o processo de transculturação, embora atinja todos aqueles que se afastam do contexto no qual foram socializados, tem uma conotação específica no caso do exílio (Vásquez-Bronfman, 1991) e é, obviamente, atravessado por conflitos em muitos planos - na comparação com a cultura de origem, na diferença de integração à nova cultura entre os membros de uma mesma família ou entre um casal, convergindo para uma reconfiguração dos mitos constitutivos desses grupos familiares. No cenário antes descrito, o “trabalho do exílio”, a partir dos pacientes exilados, poderia ser desmembrado ainda em cinco fases (Payan, 2012): a fase eufórica, o desencantamento frente à prova da realidade (relativo à etapa do luto e da culpabilidade), a incerteza (próxima da transculturação), a construção do mito do retorno (que lembrará o abalo dos mitos constitutivos do grupo) e, em seguida, a ação de permanecer no país de acolhida ou de voltar. Nesta etapa, o recurso à sublimação ocupa papel proeminente e se evidencia o alcance da questão da “escolha” da sublimação e do “trabalho” da sublimação. Retomando as palavras de Mijolla-Mellor (2005):

O termo “trabalho” introduzido aqui ao lado de “processo” sublinha que toda sublimação se efetua e sobretudo se prolonga graças a uma tensão que não tem nada de natural nem de automática [itálico nosso] e cuja meta é permitir ao eu reunir ao menos parcialmente as exigências específicas que lhe coloca seu ideal. (p. 93)

O exilado terá tomado as providências cabíveis para essa mudança e, na chegada ao novo país, se sentirá liberado das obrigações conhecidas, de modo que a euforia do primeiro momento parece se reportar à liberação pulsional, após um período de contenção exigido pela difícil “decisão” ou aceitação da partida. Assim, na linha da formulação de Freud (1917/2010e) em “Luto e melancolia”, na chegada ao novo país, após um período de intensa pressão emocional, é possível se liberar de “um grande dispêndio de energia psíquica por muito tempo mantido ou feito por hábito, de modo que ela fica disponível para outros usos e possibilidades de descarga” (p. 187). Assim, num primeiro momento, continua Payan (2012), instala-se uma certa impressão de irrealidade, numa dimensão quase onírica, em que podem ocorrer atitudes defensivas implicadas em mecanismos de negação da realidade e de clivagem entre os dois países, de forma que o país natal é remetido à “tortura” e o novo país é idealizado. É um momento de expansão e da sensação de nenhum limite, apoiado pela “ilusão de que tudo é possível” (p. 420). Não custa destacar que essas descrições, de certa forma um tanto esquemáticas, obviamente não se aplicam a todos os exilados. De qualquer forma, nesse contexto, vemos que não há espaço para a operação da sublimação.

Na etapa do luto, a terra natal está inacessível, mas não desapareceu, e é apenas “temporariamente” impossível: trata-se assim de um objeto perdido, mas que “parece ligado a um corporal arcaico” (Payan, 2012, p. 421). O exílio, porém, exige um duplo trabalho de luto, pois o sujeito é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da perda; ele deve fazer o luto da terra natal e os que ficam devem fazer o luto daquele que parte, de tal forma que o exilado é considerado “perdido” pelos seus próximos, com repercussões evidentes em suas bases identitárias.

Durante a fase eufórica, as questões angustiantes relativas a sua inserção no lugar são ignoradas do ponto de vista identitário, mas se fazem presentes no decorrer da segunda etapa, e podem se expressar em experiências de desrealização que convergem para questões do tipo “quem sou eu?” - atravessadas pela inquietante estranheza, pertinentes ao campo angustiante do Unheimlich - e “onde eu estou?”, que remetem às experiências infantis das crianças no escuro. É quando começam a aparecer as nuances de nostalgia, a incerteza se instala e o movimento psíquico pode oscilar entre “o imaginário da 'terra prometida' e aquele do 'paraíso perdido'” (p. 422), processo em que a percepção e a concepção de ambos os países oscilam entre a idealização e a rejeição.

Na impossibilidade concreta de retorno, o sujeito elabora a volta a sua terra natal a partir do “mito do retorno”, eixo fundamental subjacente às experiências de exílio; num certo momento, pode concretizar seu desejo de retornar, correndo o risco de uma decepção, ou resolver permanecer nesse novo lugar de vida. Mas essa territorialização envolve um trabalho psíquico preliminar, desde que “habitar um lugar não é possível sem uma certa gestação de um tal projeto [...]. Habitar constitui uma postura existencial que se traduz através de um ato social” (p. 423). Além disso, se trouxermos para esse contexto uma afirmação que fizemos antes, amparados numa reflexão de Birman (1997), devemos supor que essa territorialização envolve necessariamente a criação de novos objetos para os circuitos pulsionais, implicando a realização de rupturas por parte do sujeito no campo de objetos e de símbolos no qual se constituiu sua visão de mundo.

Vemos aqui se aproximando, muito gradualmente, a disponibilização para as condições mínimas de abertura à utilização das vias sublimatórias, seja pelo amplo espectro dos estilos de sublimar a que fiz referência anteriormente, seja pelo início de uma certa contenção libidinal, necessária para que essa modalidade de circulação pulsional possa ser acionada, no âmbito do que denominei sublimação secundária, aberta a uma pluralidade de vias de circulação.

Desde o início do processo de exílio a identidade do sujeito foi modificada, e desde o trajeto de mudança as novas “emergências” identitárias não cessam de abalar a imagem que aprendeu a construir sobre si. Assim, trata-se de examinar que modalidades de funcionamento psíquico estão atuantes nesse novo modo de vida, no cenário dessas “explosões identitárias”, de forma que a questão crucial que se coloca se dirige “às vias de criação sublimatória do exilado que lhe permitem fazer face ao trauma que poderia ser engendrado por sua vivência de exílio e entrar em diálogo com os autóctones” (Payan, 2012, p. 424).

É assim que a “escolha da sublimação” pode operar na contramão do movimento melancólico que o ameaça, de modo que atividades sublimatórias no campo da

estética, relativas ao prazer de pensar e aos aprimoramentos propiciados pela cultura, entre outras, podem ser vias de acesso àqueles que deixou em seu país de origem (Mijolla-Mellor, 2009). Assim se explicita como é fundamental a operação desses “agentes mediadores”, reconhecidos por todos, no processo de “conciliar seu mundo interno e seu mundo externo, seu mundo originário e esse 'novo mundo' que ele descobriu” (Payan, 2012, pp. 429-430).

É nesse sentido que um atributo verdadeiramente nuclear da sublimação se alinha na direção dos processos de reela-boração identificatória - aspecto que atravessa de forma exuberante a experiência de exílio, que de certa forma radicaliza a negociação interna do sujeito com seu narcisismo e com suas instâncias ideais:

A sublimação está, na verdade, ligada ao investimento de um tempo futuro e ao trabalho para conseguir isso [...]. Essa é a razão pela qual se pode legitimamente aproximar a sublimação desses momentos de reelaboração identificatória que constituem o trabalho de luto, o do humor, o tempo do período de latência, bem como o da cura psicanalítica. (Mijolla-Mellor, 2010, p. 503)

O recorte de algumas “figuras do exílio” autentica o alcance da rede conceitual pertinente à sublimação para a análise metapsicológica das experiências do exílio, assim como os desdobramentos dessa experiência radical de desenraizamento expressam a vocação desse destino pulsional como veículo privilegiado para o exercício da dialética da alteridade.

 

Notas

1 Entre eles, Payan (2009), Vásquez (1982) e Vásquez-Bronfman (1991).

2  Ver o acompanhamento desse percurso em Loffredo (2014).

 

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Recebido em 06.03.2017
Aceito em 20.03.2017

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