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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

EM PAUTA

 

Do olhar à palavra: (des)encontro com o outro1

 

From the look to the word: (not) encountering the “other”

 

De la mirada a la palabra: (des)encuentro con el otro

 

 

Cássia Garcia GomesI; Caetano Rudá dos Santos MoraisII; Iara Mouradian PedóIII; Lucas Hangai SignoriniIV; Mariana Desenzi SilvaV; Nathália NaldoniVI; Paula Freitas Ramalho da SilvaVII

IPsicóloga, assessora técnica da Direção do Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva)
IIPsicólogo, psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos CEP
IIIPsicóloga no Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva) e na Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da Universidade Federal do ABC UFABC
IVPsicólogo no Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva) e mestrando do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IPUSP
VPsicóloga no Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil Vila Maria/Vila Guilherme (CAPS da Vila)
VIEnfermeira no Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva) e psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos CEP
VIIPsiquiatra no Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva) e membro filiado ao Instituto Durval Marcondes

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de cenas que relatam situação vivida pelos autores no exercício de seu trabalho na Rede de Atenção Psicossocial da cidade de São Paulo, discutem-se os movimentos associados ao exílio e às possibilidades de repatriação, considerando desde as produções surgidas do encontro com o outro-estrangeiro até os recursos previstos pela política pública de saúde mental.

Palavras-chave: migração; clínica; saúde pública; repatriação; reabilitação psicossocial.


ABSTRACT

The authors start this paper from scenes which describe a situation they experienced while working as part of the Psychosocial Attention Network of the city of São Paulo, Brazil. The purpose is to discuss movements related to exile and possibilities of repatriation. The study takes into consideration a large range of variables, from productions that emerge from encountering the other-foreigner to resources within public mental health policy.

Keywords: migration; psychoanalytic practice; clinic; public health; repatriation; psychosocial rehabilitation.


RESUMEN

A partir de escenas que relatan una situación vivida por los autores en el ejercicio de su trabajo en la Red de Atención Psicosocial de San Pablo, Brasil, se analizan los movimientos asociados a la migración, al exilio y a las posibilidades de repatriación, teniendo en cuenta las producciones que surgen del encuentro con el otro en un escenario delineado por los recursos proporcionados por la política pública de salud mental.

Palabras clave: migración; clínica; salud pública; repatriación; rehabilitación psicosocial.


 

 

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgem no Brasil na década de 1980, no contexto da reforma psiquiátrica, a partir de críticas ao modelo então utilizado, cujo recurso central (e principal) para o tratamento do sofrimento psíquico era o hospital psiquiátrico. Constituem-se como alternativas públicas substitutivas a instituições fechadas, de lógica asilar e excludente, que afastavam a loucura do meio social.

Desde então, as práticas que se dão nos CAPS caminham no sentido de compreender os processos saúde-doença para além da determinação exclusivamente biológica e orgânica, levando em conta a articulação de elementos materiais e simbólicos de sujeitos e coletividades na sua produção de vida, sua complexidade e singularidade.

Como estratégia de cuidado e característica desse novo modelo, tem-se a composição de equipes multidisciplinares que se propõem a ofertar cuidado integral. Assim, contando com diferentes profissionais e seus saberes, é possível notar no cotidiano dos processos de trabalho a importância da “capacidade de variação permanente que afeta cada um, impedindo-o [o corpo da equipe] de ser homogêneo” (Vicentin, 2006), já que se amplia o olhar sobre algo tão complexo como a singularidade de um sujeito inserido no serviço.

Mais recentemente, os CAPS passam a ser considerados pontos de atenção na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), bem como o são as Unidades Básicas de Saúde (UBSS), as Equipes de Atenção Básica para Populações em Situações Específicas, os Centros de Convivência (CECCOS), as Unidades de Acolhimento (UAS), entre outros. Entre as diretrizes da RAPS, encontram-se: o respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas; a promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde; o combate a estigmas e preconceitos; a atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas; o desenvolvimento de atividades no território que favoreçam a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania.

O trabalho no território exige que as práticas tenham algo de um caráter nômade, ou, nas palavras do recém-falecido psicanalista Antonio Lancetti, que se lance mão da clínica peripatética, do passear, do ir e vir conversando, em que, estando ausente um setting tradicional, “é outra subjetividade que se esboça, talvez mais fluxionária [...], com seus processos de recomposição intensiva sempre em andamento e abertos à exterioridade” (2006, p. 12).

Trata-se de uma clínica caracterizada pela força afetiva produzida no/pelo encontro, no afetar e ser afetado. Embora por vezes a equipe e os usuários do serviço CAPS o chamem de casa, para ter como possibilidade a articulação de diferentes lugares, para que a loucura não se encarcere no CAPS, é necessário estar “fora da casinha” e partir para diferentes espaços de ser-estar, experimentando deslocamentos que promovem uma clínica para além de bordas territoriais.

No presente trabalho, partindo de cenas que fizeram e fazem parte do dia a dia de um CAPS Adulto da cidade de São Paulo, propõe-se descrever e discutir movimentos associados à migração, ao exílio e às possibilidades de repatriação, dados os processos de trabalho, os recursos previstos pela política pública de saúde mental, e considerando as complexas produções no encontro com o outro.

 

(Des)encontro

Às segundas-feiras, as portas do Centro de Atenção Psicossocial são com frequência escancaradas com o acúmulo das tensões e conflitos vivenciados nos fins de semana. Aberto apenas nos dias úteis, o CAPS ainda sofre com a impossibilidade de continência que poderia ser ofertada tanto nos sábados e domingos como também à noite, momentos em que boa parte das crises se expressa e agudiza. É numa dessas segundas-feiras que recebemos o protagonista das cenas seguintes.

Por volta do meio-dia, a equipe de acolhimento responsável pelo turno da tarde recebe da recepcionista a ficha de entrada que anunciava a presença de uma pessoa a ser escutada. Avisa-nos que veio trazido por profissionais da assistência social do município, que solicitavam que pudessem estacionar o carro na parte interna da instituição, pois “assim seria mais fácil”. Sem compreender ao certo o conteúdo do pedido, a equipe autoriza e vai ao encontro do que solicitava, de alguma maneira, ser facilitado.

Sentado no banco da frente, rodeado por duas assistentes sociais, está Vwazen. Não aparenta mais do que 40 anos, mas os sulcos emagrecidos da face e os machucados nos pés e mãos dificultam que tentemos adivinhar a sua idade. Além disso, o olhar arregalado de Vwazen desvia qualquer atenção nossa de outras partes de seu corpo. Parece fazer algum esforço para falar, abrindo e fechando a boca, contraindo o pescoço, mas não sai qualquer som. Todo o corpo, aliás, parece acompanhar essa tentativa: inclina-se a levantar, mas o corpo não se desloca do lugar; as mãos apoiadas nas pernas logo retornam após tentar segurar alguma parte do carro que fizesse de apoio. Tal dificuldade não nos parece fruto de fraqueza, e então somos informados por uma das assistentes sociais que Vwazen não está sob efeito de medicações ou outras substâncias, já que o conhecia desde o fim de semana, momento em que fora abrigado pelo Centro de Acolhida destinado à população imigrante da cidade de São Paulo.

Como poderíamos falar com Vwazen? Se o encontramos com o olhar arregalado, enclausurado e fixo, também nós, num primeiro momento, paralisamo-nos no olhar, capturados por sua figura expressiva.

São as duas assistentes sociais que nos informam um pouco sobre Vwazen. Imigrante, chegou ao Brasil há pouco mais de dois meses. Escapado da guerra que acomete seu país, já havia percorrido alguns estados brasileiros, finalmente conseguindo fugir para São Paulo, com alguns conterrâneos que, como ele, estavam submetidos a um trabalho escravo em uma grande fazenda. Na cidade, em situação de rua, foi encontrado pela equipe da assistência social que faz abordagens pela região. Esses fragmentos de história foram acessados em momentos em que os movimentos de Vwazen pareciam retornar, e conjuntamente a eles a fala. Falando o idioma natal de Vwazen, a assistente social traduzia as informações que nos passava a ele, que acenava lentamente com a cabeça, mantendo os olhos arregalados.

O estado parado, algo desconectado de Vwazen havia sido o motivo da vinda até nosso serviço de saúde mental. Por mais que outros imigrantes do mesmo país de Vwazen, já no Centro de Acolhida, tentassem comunicar-se com ele, as poucas palavras emitidas, o enrijecimento do corpo e a dificuldade em andar preocupavam a todos. Nesse contexto, havia um acréscimo: durante o final de semana, em alguns momentos, Vwazen parecia sair desse estado, mas ia ao oposto, correndo pela instituição; tentou jogar-se da escada que dava acesso ao segundo andar e, depois de ser contido por alguns conviventes, dirigiu-se ao portão, em movimento desenfreado. A decisão das assistentes sociais foi de limitar seu acesso às escadas, além de manter um profissional ao seu lado a maior parte do tempo. Após tais momentos, o estado que estávamos ali presenciando retornava.

Em algum momento, Vwazen consegue sair do carro e acompanhar um de nossos colegas em uma volta pelo CAPS. Solta algumas palavras no idioma conhecido pela profissional, que os escutava com atenção.

Outra parte da equipe permanecia com as assistentes sociais, que solicitavam orientações, além de expressarem sofrimento diante daquela situação. Embora bastante experientes com a assistência prestada a imigrantes em nosso país, havia particularidades com a situação de Vwazen que lhes escapavam, produzindo grande preocupação. Essa primeira cena se encerra ao nos despedirmos de Vwazen, que agora leva para entrar no carro o mesmo tempo que havia necessitado para sair.

 

Na passagem, uma morada

É semana de Natal quando visitamos Vwazen no Centro de Acolhida. Uma série de enfeites decora a entrada, mas é uma placa que nos chama a atenção: “Favor não tocar a campainha! Bata no portão!” Respeitado o pedido, somos recebidos por uma das assistentes sociais que havíamos conhecido uma semana antes. A visita a Vwazen em seu local de acolhida tinha como objetivo conhecê-lo em seu território momentâneo, além de facilitar uma aproximação dificultada por questões como deslocamento e transporte.

Uma série de línguas povoa o Centro de Acolhida, mas é ao português da assistente social que prestamos maior atenção num primeiro momento. Informa-nos de sua investigação sobre a história de Vwazen, procurando novas pistas que pudessem ser recolhidas tanto das conversas que tentava estabelecer com ele como das conversas com outros imigrantes com quem ele parecia estar mais à vontade. Ela havia descoberto o nome de sua cidade natal, de alguns familiares, dos pais, irmãos, esposa e filhos. Ela havia tentado contato telefônico, mas, ao que parece, a cidade estava incomunicável. Além disso, por meio dos registros no SUS (Sistema Único de Saúde), sabia que alguns atendimentos foram prestados a Vwazen em diferentes estados do norte e do sul do país, os quais ele não havia mencionado. A equipe da assistência havia conduzido o caso de forma a abrir o leque de cuidados a serem ofertados, garantindo acesso à Estratégia Saúde da Família da região, a qual havia agendado alguns exames para a próxima semana. Enquanto nos contava sobre a situação atual, a profissional nos conduziu ao encontro de Vwazen.

Ocorre-nos perguntar sobre a decoração de Natal, bem como sobre a placa presa ao portão. Depois dos repetidos momentos em que Vwazen se colocou a correr desenfreadamente pelo prédio, estabeleceu-se uma associação entre eles e o som da campainha. Um dos imigrantes provindos do mesmo país de Vwazen, após perceber o próprio desconforto ao ouvir a campainha, deu-se conta de que o som se assemelhava ao alarme dado pela onu (Organização das Nações Unidas) antes da queda de uma bomba. Um sentido importante se desenha junto àquilo que até então era compreendido e nomeado pela equipe como forte agitação, sentido que só pôde ser restituído a partir dos ouvidos de outros imigrantes, escapados da guerra como Vwazen.

Vwazen nos encontra e não tem os olhos arregalados como quando o conhecemos. Embora lentificado, foi possível reconhecer um esboço de sorriso no canto da boca, que ainda relutava a expressar uma palavra ou outra. Acompanhamos Vwazen no silêncio e no olhar mais calmo, que observava uma mulher brincando com algumas crianças. É o tempo necessário para que ele coloque a mão sobre a garganta e diga em português: “Tenho preocupação em mulher e criança.” Mostra-nos a mão marcando o número dois, e perguntamos se era o número de filhos que tinha; Vwazen confirma com a cabeça. Após outro silêncio, diz com dificuldade: “Quer voltar!” Não vieram mais palavras de Vwazen naquele dia, exceto alguns gestos mais lentos que provocaram risos em um imigrante italiano que lanchava próximo ao ponto em que conversávamos. Vindo a nosso encontro, disse num português carregado de sotaque italiano que precisavamos aprender a gesticular mais, favorecendo-nos a reparar que a mão de Vwazen retornara à região do peito e da garganta, e que apenas saiu desse ponto para encontrar com nossas mãos em um cumprimento forte e demorado. Mais uma vez, é o olhar de um outro refugiado que norteia o nosso olhar, que ajuda no alinhavo da nossa relação com Vwazen e seu sofrimento.

 

De uma saudade

Após algum tempo sem notícias, somos acionados por um hospital psiquiátrico, no qual Vwazen estava internado havia nove meses. A justificativa para sua manutenção no local por tanto tempo, apesar de há vários meses ter indicação de alta, era “não ter para onde ir”. Já em outro bairro, afastado do centro, fomos visitar Vwazen.

A conduta do hospital não acompanhava as reflexões que havíamos feito sobre a condição de sofrimento de Vwazen. Não pareciam oferecer a ele a possibilidade de reconstituir sua história, com as palavras e gestos de que podia lançar mão. A profissional que ali nos recebeu listou as inúmeras medicações utilizadas, acompanhadas da descrição sintomatológica que há nove meses vinha acompanhada das palavras “sem alteração”. Vwazen passara por grupos terapêuticos, algumas oficinas de artesanato, mas a lentidão nos movimentos e a dificuldade na fala eram constantes. Somos informados de que foram tentadas algumas ligações para a cidade natal, sem sucesso. Além disso, uma das profissionais do hospital conseguiu contato com um familiar dele que residia no Brasil. Ficamos surpresos que, diante de tal notícia, Vwazen não tivesse expressado qualquer comportamento ou afeto que chamasse a atenção da equipe, porém logo ficamos sabendo que ele não havia sido informado dessas novas descobertas, pois o receio da equipe era de que ele pudesse ficar muito agitado. Nossa aposta nesse momento foi a de solicitar às profissionais que o incluíssem nesse processo, já que a nós caberia a articulação na cidade para que Vwazen pudesse sair o mais breve possível do hospital. Como notamos algum receio das profissionais, pedimos para falar desses procedimentos com Vwazen.

Do encontro com ele, notamos que está mais gordo, e o sorriso parece mais largo. Cumprimenta-nos com o mesmo aperto de mão demorado com que se despedia, e a conversa flui um pouco menos truncada do que da última vez. Tenta descrever os meses que passara ali, sem muito sucesso. Com as profissionais que o acompanham, nós o informamos sobre as tentativas de ligação e o surgimento do contato com um familiar no Brasil. Vwazen não fica agitado, mas também não demonstra contentamento. Pelo contrário, somos surpreendidos por um silêncio que conhecíamos de alguma data. Perguntamos a ele então que palavras em português aprendera desde sua chegada ao Brasil. “Saudade” é o que diz, quebrando o silêncio da sala. “Aprendi saudade”, diz ele ao retomar a pergunta que uma de nossas colegas havia feito sobre o tempo passado no Brasil. Ao dizer isso, colocava a mão no ombro de um de nós, lançando-nos o sorriso largo. Algo ali no gesto e na palavra enlaçava conosco uma possibilidade de cuidado e de restituição.

* * *

Vwazen é um exilado, e o é de fato, de maneira concreta - estrangeiro, escapado da guerra que acomete seu país, percorreu alguns estados brasileiros, desterrado, expatriado, em situação de rua; não fala nossa língua, não fala quase nada conosco. É também exilado subjetivamente - retirado, só, talvez louco, excluído.

De acordo com Rosa, Berta, Carignato e Alencar (2009), a migração territorial é um movimento que compreende motivações sociais, políticas, econômicas e subjetivas, e as relações estabelecidas a partir dela levam essas marcas. No entanto, se a migração traz consigo a dimensão do desejo, apontada por Freud (1939/1969b) em Moisés e o monoteísmo, e a possibilidade de relativizar certezas e de estabelecer alguma abertura ao outro, ela também pode levar a tal abalo identitário que passam a não ser mais possíveis o reconhecimento de si e o contato com o outro.

As autoras apontam que é especialmente na migração associada à violência e à miséria, como é o caso aqui, que esse abalo da identidade acontece e que as dificuldades de se reconhecer e de se localizar no mundo se fazem mais presentes, podendo ter efeitos de desenraizamento ou de des-territorialização (Rosa et al., 2009).

O primeiro encontro da equipe do CAPS com Vwazen é marcado pelo olhar - a equipe nota o olhar arregalado de Vwazen, olhar que desvia a atenção de outras partes de seu corpo; a equipe possivelmente o encara por detrás de olhos arregalados. Notam-se estranhamento e distância. Talvez esse estranhamento ocorra, em parte, na esteira de certo desenraizamento, talvez porque a figura do migrante represente algo comum a todos, seres caminhantes à procura de algo, estrangeiros uns aos outros e a nós mesmos - constituídos por uma dimensão inconsciente tão presente e íntima quanto desconhecida (Rosa et al., 2009).

Em seu texto “O estranho” (1919/1969a), Freud fala sobre serem inquietantemente estranhos aspectos íntimos do eu e afirma que “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (p. 238). Ao propor o estudo semântico da palavra heimlich (“familiar”), observa que ela se aproxima de seu antônimo, unheimlich, até por fim coincidir com ele, e que o estranho pode justamente ser familiar - “unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich” (p. 244). Em face do estranho, dá-se um conflito entre os movimentos de aproximação e de rechaço, de identificação e de recusa - “necessidade de identificação com o outro (para que não permaneça desconhecido) e medo de consegui-la (e se perder na alteridade)” (Matos, 2008, p. 13).

Nesse sentido, outro aspecto pode estar associado ao estranhamento surgido no contato com Vwazen: a loucura. Estrangeiro entre os estrangeiros do Centro de Acolhida, diferente e apartado dos demais, talvez trouxesse consigo a lembrança ameaçadora do enlouquecimento - desse desenraizamento do mundo, da perda das palavras e dos atos considerados compreensíveis, enfim da perda de si que se espera, em parte, de tal condição.

É possivelmente entre identificação e recusa que a equipe vai ao Centro de Acolhida que abriga Vwazen temporariamente. No contato, há então algo de um reconhecimento - usuário e equipe se reencontram, a equipe o percebe mais tranquilo e pode se tranquilizar, todos podem se tranquilizar. Vwazen olha para uma mulher que brinca com algumas crianças e se lembra de sua família - há diferenças, mas há semelhanças. Vwazen olha, e agora gesticula. Outro imigrante chama a atenção para a importância do gesto. Há uma certa diminuição da distância, há tradução - o som da campainha parece lembrar o som do alarme que acusava um bombardeio, o que torna compreensíveis atos até então desprovidos de sentido para quem acompanhava Vwazen.

A tradução, nesse sentido, seria um processo em duas direções, um encurtamento da distância entre o eu e o outro, dois estrangeiros, estranhos e familiares um para o outro; seria sustentada por movimentos que propiciam o reconhecimento da diferença, em que eu e outro deixam de gerar fobia mutuamente (Viñar, 1998).

Nas palavras de Olgária Matos:

Ao traduzir Homero, Haroldo de Campos heleniza o português ao mesmo tempo que lusifica o grego - com que se ampliam as identidades, bem como a compreensão do presente. [...] O tradutor, como o escritor e o leitor, abandona seu contexto familiar e, igualmente, alcança o estrangeiro e o distante por uma aura de inclusão e proximidade. Por um dépaysement linguístico, evoca-se o estrangeiro, transformando-o em familiar. (2006, p. 167)

No encontro que se dá no hospital, há palavras. A fala de Vwazen - “Saudade. Aprendi saudade” - parece marcar o caminho de uma (difícil) aproximação, enquanto as divergências com a equipe do hospital renovam as dificuldades do encontro com o outro - aqui, uma outra equipe - e trazem a necessidade de novas traduções, desconstruções e construções. Nesses movimentos, reconhecer o estrangeiro ou o exilado em si mesmo parece fundamental para qualquer contato consigo e com o outro, a partir do inquietante estranhamento de ambos.

 

Nota

1 Este trabalho relata situação vivida pelos autores. Nomes e características que possibilitassem identificação de terceiros foram alterados. Dados de prontuário foram acessados mediante autorização da Diretoria do CAPS Itapeva.

 

Referências

Freud, S. (1969a). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 16, pp. 235-273). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). Moisés e o monoteísmo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1939)        [ Links ]

Lancetti, A. (2006). Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Matos, O. (2006). Babel e Pentecostes: heterofilia e hospitalidade. In O. Matos, Discretas esperanças (pp. 159-176). São Paulo: Nova Alexandria.         [ Links ]

Matos, O. (2008). Os muitos e o um: logos mestiço e hospitalidade. Ide, 31(47),8-15.         [ Links ]

Rosa, M. D., Berta, S. L., Carignato, T. T. & Alencar, T. (2009) A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 12(3),497-511.         [ Links ]

Vicentin, M. C. G. (2006). Da formação-verdade à formação-pensamento: o que a clínica do AT nos ensina sobre formação. In G. R. Santos (Org.), Textos, texturas e tessituras no acompanhamento terapêutico (p. 194). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Viñar, M. N. (1998). El reconocimiento del prójimo (notas para pensar el odio al extranjero). In M. N. Viñar (Comp.), ¿Semejante o enemigo? Entre la tolerancia y la exclusión (pp. 93-104). Montevideo: Trilce.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Cássia Garcia Gomes
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Recebido em 24.01.2017
Aceito em 07.02.2017

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