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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Em busca de uma experiência estética em psicanálise: sonho, trabalho de sonho-alfa e sonhar-a-dois

 

Searching for an aesthetic experience in psychoanalysis: dream, dream-work-alpha, and dreaming as a couple

 

En busca de una experiencia estética en psicoanálisis: sueño, trabajo del sueño-alfa y sueño-de-a-dos

 

 

Edival Antonio Lessnau Perrini

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp e membro fundador e efetivo com função didática do Grupo Psicanalítico de Curitiba

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor propõe delimitar um campo de experiência estética, em psicanálise, discriminando áreas de sonho, de trabalho de sonho-alfa e de sonhar-a-dois. Com Likierman, situa experiências singulares e primitivas da vida mental que conservam a natureza de uma infinidade sublime e que funcionam, quando acionadas, como fonte de vivências estéticas sentidas como genuinamente boas, belas e integradoras. Propõe ser essa área da mente uma preconcepção para o estético que “se realiza”, na medida em que se apreende o sonho diurno (um lampejo, um espanto, um poema, uma imagem, uma música, uma história) e se aciona o trabalho do sonho-alfa, que vai dar forma ao apreendido para ser comunicado e possibilitar o sonhar-a-dois. Enfatiza a existência do fenômeno estético dentro da vivência intersubjetiva, que facilita a presença de experiências emocionais sustentadoras do sonhar-a-dois pela dupla analítica.

Palavras-chave: experiência estética psicanalítica; sonho; trabalho de sonho-alfa; sonhar-a-dois; preconcepção.


ABSTRACT

The author proposes defining a field of an aesthetic experience in psychoanalysis, by distinguishing between areas of dream, dream-work-alpha, and dreaming as a couple. The author uses Likierman to place natural and primitive experiences of mental life. These experiences preserve the essence of a sublime infinity and, when activated, they work as a source of aesthetic experiences, which are felt as being genuinely good, beautiful, and integrative. The author proposes that this area of the mind is a preconception to the aesthetic - the aesthetic that is “performed” as the daydream (i.e. a flash, a shock, a poem, a picture, a song, a story) is understood, and the dream-work-alpha is activated. At this point, he continues, the dream-work-alpha gives a shape to what was understood so that it will be communicated. It will, therefore, enable the pair to dream as a couple. This study emphasizes the existence of the aesthetics phenomenon within the intersubjective experience, which facilitates the presence of emotional experiences. As such, these experiences will allow the psychoanalytic pair to “dream together”.

Keywords: aesthetic experience in psychoanalysis; dream; dream-work-alpha; dreaming as a couple; preconception.


RESUMEN

El autor propone definir un campo de experiencia estética en el psicoanálisis, distinguiendo las zonas de sueño, de trabajo del sueño-alfa y de sueñode- a-dos. Con Likierman, encuentra experiencias singulares y primitivas de la vida mental que preservan la naturaleza de una infinidad sublime, y que sirven, cuando son accionadas, como una fuente de experiencias estéticas sentidas como realmente buenas, bellas e inclusivas. Propone que esta área de la mente es una preconcepción a lo estético que “se realiza”, en tanto que agarra el ensueño (un flash, un espanto, un poema, una imagen, una canción, una historia) y acciona el trabajo del sueño-alfa, que dará forma a lo aprendido para que sea comunicado y permitirá el sueño-de-a-dos. Se enfatiza la existencia del fenómeno estético dentro de la experiencia intersubjetiva, que facilita la presencia de las experiencias emocionales que sostienen el sueñode- a-dos por la dupla analítica.

Palabras clave: experiencia estética psicoanalítica; sueño; trabajo del sueño-alfa; sueño-de-a-dos; preconcepción.


 

 

Só o sonho é inevitável. Quanto ao resto, há sempre a possibilidade aberta de fazer outro gesto, dizer uma palavra que é o contrário de si mesma. De puro há a alucinação, a imagem de alguma coisa rara escorregando por entre os dedos que se fecham em garra, grudentos de vazio.

(Paulo Henriques Britto)

I

Se buscamos os misterios da experiencia estética em psicanálise, mergulhamos nas raízes do sonho, desembocamos na sutileza de um trabalho singular: acolher, e trabalhar analiticamente dentro de nós, os meandros de um movimento plural, multidimensional, que alimenta a necessidade inexorável de sonhar.

Chegar ao intrapsíquico através da via intersubjetiva coloca-nos em contato com o sublime (Likierman, 1994), com a rêverie e o sonhar diurno (Bion, 1962/1980), com o trabalho de sonho-alfa (Bion, 1992/2000; Sapienza, 1997, 2001) e com o quanto a experiencia psicanalítica e o viver a dupla analítica nos permitem desenvolver (e afinar) o que Bion (1965/2004b) chamou de intuição psicanaliticamente treinada.

Há uma presença paradoxal nesse movimento: é preciso acreditar não em certezas, mas no desconhecido, não em fatos concretos, mas em evidencias sentidas que se confirmam se podemos seguir um caminho construído por pequenos passos: “só o sonho é inevitável”.

Delimitado o campo em que vivo atualmente o trabalho psicanalítico junto com meus analisandos e supervisionandos, há sentido e sintonia entre as tres experiencias que me remeteram a escrever este trabalho: releituras dos textos de Freud O eu e o id (1923/2011) e Inibição, sintoma e angústia (1926/2014); o sonho diurno gerado em sessão analítica com Roberta, inesperado mas inevitável pela força do vínculo construído; e a especial qualidade da vivência estética observada em duas áreas distintas: a da experiência intersubjetiva e a da vivência implacável do sonho, do trabalho de sonho-alfa e do sonhar-a-dois, que permitem emergir, e trabalhar analiticamente, mistérios inconscientes através de experiências primitivas.

O poeta Paulo Henriques Britto, na epígrafe, delimita poética e intuitivamente a qualidade do sonho diurno enquanto propiciador de especial tipo de “alucinação”, “imagem de alguma coisa rara” que somente “escorre entre os dedos” se estes, como a mente, estiverem vazios, portanto disponíveis para ser continente de conteúdos novos (Bion, 1962/1980, 1963/2004a): “dedos que se fecham em garra, grudentos de vazio” (Britto, 2013, p. 45). Em condições de sonhar: “imagens são palavras que nos faltaram” (Barros, 1989, p. 51), mas que podem caminhar no sentido de gerar novas palavras e novos significados.

O “sonho inevitável” expõe qualidades da mente do analista que o produz; expressa a condição vincular que o analisando e o analista se permitem viver juntos; e atesta a especial condição da dupla, que propicia a ambos serem tocados pelos lampejos geradores da experiência emocional que se cria entre os dois, e permite a vivência e o trabalho do sonhar-a-dois.

 

II

O complexo de Édipo é pilar estrutural da psicanálise e foi desenvolvido por Freud em diferentes momentos da construção da teoria psicanalítica. A consolidação de suas ideias a respeito está, principalmente, nos trabalhos de 1923, O eu e o id, e de 1926, Inibição, sintoma e angústia. Ambos dão forma singular ao que Freud apreendeu como complexo de Édipo e sua dissolução, desenvolvendo e destacando aí, inclusive, aspectos qualitativos e funcionais que repercutem dentro da estrutura mental da pessoa e de sua possibilidade de se expandir dentro da vida e do trabalho psicanalítico.

Esses aspectos podem produzir uma mente flexível, capaz de conter e buscar expansões, ou uma mente rígida, cruel, incapaz de apresentar mudanças porque, imersa em sentimentos ameaçadores e rigorosos, tolhe o desenvolvimento e patrocina uma conduta mental repetitiva, não criativa e marcada por dor mental paralisante.

O estudo pontual dessa mente rígida e cruel permitiu a ampliação que Melanie Klein (1928/1996) fez na teoria do complexo de Édipo e que desenvolveu como Édipo precoce. Tal ampliação técnica nos permite chegar, analiticamente, a mentes cujas estruturas são predominantemente constituídas por vivências primitivas e, por sua rigidez, incapazes de sonhar.

Muitos autores expandiram as ideias de Klein e as confirmaram clinicamente. Sublinhamos a clareza com que Quinodoz (2001) aponta para a ação superegoica que, dependendo desse desenvolvimento, se mostra e se movimenta com a interferência tácita de um superego cruel e rígido ou companheiro e protetor.

O ponto que pretendo destacar é que a qualidade da mente que pode chegar à dissolução do complexo de Édipo (Freud, 1923/2011, p. 40) mantém a condição de flexibilidade para se expandir, e essa flexibilidade e expansão incluem o recurso de sonhar, de se relacionar com o sonho, de se deixar tocar pelo sonho do outro, com todas as dificuldades e frustrações que a presença do outro traz para nossa vida: viver e ser criativo na alteridade é uma das possibilidades qualitativas da vivência edípica bem-sucedida.

Esse aspecto foi considerado e ampliado por Bion com a ideia de preconcepção edípica (1963/2004a), fator fundamental para ser possível a realização de um par, de uma dupla, de um casal que é capaz de sonhar junto.

A vivência de uma análise intersubjetiva tem, na preconcepção edípica realizada, a condição para acontecer: há espaço na mente para a existência do nos, para a possibilidade de uma vivência analítica a dois. Analista e analisando são como uma semente fertilizada que pode vir a produzir o fruto que ela traz potencialmente em si.

Outro ponto em relação à dissolução edípica de Freud está descrito assim: “Achamo-nos agora no início do período de latência, caracterizado pela dissolução do complexo de Édipo, pela criação ou consolidação do supereu e pelo estabelecimento de barreiras éticas e estéticas no eu” (Freud, 1926/2014, pp. 50-51).

Podemos apreender que a qualidade da dissolução edípica natural necessita de experiências estéticas (e éticas) para permitir um equilíbrio (barreiras) entre as forças pulsionais originárias do id e o papel regulador dessas forças que tem o superego. Essa é a função que tem o superego de regular e ampliar sensações consistentes de autoestima.

Olhando desse viés, a busca de experiências estéticas (e éticas) funciona como um filtro que permite e nos impulsiona para a realização de experiências prazerosas, que harmonizam a vida pulsional com a vida social. A experiência psicanalítica intersubjetiva contém a possibilidade de um encontro criativo, ético e estético. Ele nos chega a partir do sonho-a-dois, que se forma no espaço potencial que Ogden (1994/1996) chamou de terceiro analítico intersubjetivo inconsciente.

A vivência do sonhar, como parte da construção estética, se faz na medida em que experiências de sonhar juntos vão acontecendo de forma natural e que nossa experiência intuitiva treinada analiticamente permite que o que poderia ser simplesmente “barreira” possa vir a ser um filtro criativo que possibilita o aparecimento do fenômeno estético.

O material apresentado a seguir pretende nos aproximar clinicamente desses fenômenos.

 

III

Roberta me foi encaminhada para análise por ser “portadora de anorexia”. Quando me ligou para agendarmos uma entrevista, logo disse que o fazia a pedido de sua irmã, mas que não vislumbrava jeito de ser ajudada, até porque ela estava bem e eram os outros que não a entendiam. Assim mesmo veio, e combinamos nos encontrar três vezes por semana para análise.

Os dois primeiros anos do trabalho com Roberta foram predominantemente exaustivos. O tema de suas sessões, de maneira invariável, girava em torno de preocupações com balança, dieta, fita métrica, necessidade de medir a circunferência abdominal etc., etc. Enfim, o relato de uma agonia interminável com perdas e ganhos de alguns gramas.

Tentativas de conversar com Roberta fracassavam, pois eram vazias de vivências que estimulassem algum sonho em nós. Dessa forma, ela retornava sempre ao seu calvário solitário e esterilizador de queixas.

Eu percebia que ela voltava às sessões para descarregar sobre mim sua desventura e, muitas vezes, notava haver um prazer com aquela imobilidade que sua dieta de sofrimentos gerava em nossa dupla. Mas sentia também que essa era Roberta e que esse era o seu jeito bizarro de permanecer viva.

A alternativa de não interpretar sua agonia raivosa e acolher seu jeito como fosse possível foi trazendo para mim um clima cada vez mais nítido de tristeza, de desesperança e de alguma compaixão.

Foi numa sessão em que ela se mostrava irritada com os persistentes insucessos de suas dietas e de suas observações e ações que não a levavam a lugar nenhum que percebi formar-se em mim, pela primeira vez, algo que senti como luz naquele universo de trevas. Então, disse a ela, com vagar, assim como me veio à mente, os seguintes versos de Chico Buarque (1968):

Tem dias que a gente se sente

como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

ou foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativa

no nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda-viva

e carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração.

A intensidade desse encontro e a possibilidade de dizer esses versos a Roberta, que se sentiu tocada, permitiram um verdadeiro rodamoinho em nossa relação. Roberta foi saindo da “fortaleza” de sua arrogância solitária e infeliz, e pôde chorar pela primeira vez, permitindo que uma qualidade afetiva e amorosa se instalasse entre nós. E eu pude sentir que o que vivi ali com ela era uma experiência vincular com beleza estética que eu jamais alcançaria senão pela força agregadora da paciência, da compaixão e da fé no sonho-a-dois.

Reconhecer que ali estava - real - um instrumento clínico em que eu acreditava, que vivia com muitos analisandos, mas nunca ainda com Roberta, me tirou de uma espécie de anorexia de contato para um mergulhar confiante no encontro pessoal psicanalítico.

Cerca de um mês depois dessa vivência, quando o ambiente analítico das sessões já podia conter alguma vida e sonho, fui surpreendido por uma queixa irada de Roberta por ter “caído em tentação” e tomado uma caipirinha, em viagem de final de semana à praia. Ao falar do seu “pecado”, disse que estava profundamente decepcionada com ela e com o nosso trabalho, pois não tivera condições de evitar a ingestão daquela “bomba calórica”. Sua mágoa era raivosa, seu ar de profundo deboche, e sua forma irônica de dizer me atingiu. Intensamente tocado, respondi de pronto: “Você está transformando uma caipirinha na praia em bomba calórica?!” E completei apontando que eram essas coisas que tornavam sua vida um inferno: o prazer precisava sempre ser amaldiçoado e avacalhado, e sua expressão bomba calórica, para algo prazeroso, era a síntese desse ódio e de todo o seu efeito desagregador.

Ao perceber-me vivo, num momento em que nós dois estávamos mais vitalizados, Roberta pôde outra vez chorar e dizer que, de verdade, estava cansada de seu jeito impertinente. Então, em momento singelo e emocionado, agradeceu-me por eu ser seu analista e “gostar de caipirinha”.

Penso que, nessas duas situações entre outras, Roberta e eu pudemos experimentar o que é estar juntos de verdade e como o trabalho analítico é uma travessia de sonhos sonhados juntos, a partir de possibilidades únicas de se dar expressão a um particular estado de mente.

 

IV

A origem etimológica da palavra estética está claramente vinculada a “sensação” e “percepção”, a partir do grego aisthesía que a origina (Cunha, 1982, p. 330). Estética, portanto, tem a ver com capacidade de estesia, que equivale a não estar anestesiado às sensações e percepções.

A partir do momento em que trabalhamos com o sonho-a-dois, verificamos que há um tipo especial de estesia que se dá na dupla analítica, e que o sonhar, com base nesse fenômeno, depende de uma condição especial e singular que surge na sessão com aquele analisando com quem estamos.

Ficamos, então, diante de três trabalhos mentais. Primeiro: apreender o sonho diurno, que pode ocorrer como um lampejo, um espanto, um poema, uma imagem, uma música, uma história constituída; segundo: elaborar uma forma para dar expressão verbal ao sonho diurno, tarefa individual do analista; e terceiro: trabalharmos juntos o sonho que, a partir da experiência emocional apreendida e despertada pelo sonho diurno e pela comunicação do trabalho do sonho-alfa, vai sendo sonhado a dois, na sessão.

Gerar sonhos exige do analista uma mente sofisticada, que tenha podido desenvolver uma intuição psicanaliticamente treinada para poder expressá-los, a partir de um trabalho de sonho individual e da possibilidade do sonhar-a-dois com o analisando.

A espera pelo aparecimento do sonho e, depois, pela sua expressão em palavras exige paciência e compaixão. O trabalho de sonho-alfa e sua comunicação permitem a emergência de formas estéticas sentidas e percebidas na relação intersubjetiva psica-nalítica. E, como estamos trabalhando com o encontro de duas mentes, ambas são tocadas pelo fenômeno estético quando isso é possível.

Podemos dizer do sonho o que dizemos do poema e da obra de arte: se não houver esse toque, essa “sensação e percepção” nas duas mentes, o fenômeno estético não se completa, e portanto não existe como objeto psicanalítico intersubjetivo.

“O que aqui conceituo como experiência estética é a inscrição mental primeira, que se encontra num suposto início de evolução psíquica. Poderíamos falar dessa inscrição 'rupestre' como estando na fronteira da mente - e da história psíquica” (Rapeli, 2006, p. 49).

O fenômeno estético psicanalítico tem uma fonte e uma particular forma de existir. A fonte - essa inscrição “rupestre” fronteiriça - é o sublime, e a forma se concretiza com a possibilidade de gerar um forte efeito emocional em ambos.

O berçário da palavra sublime expõe tessitura interessante. Do latim sublimis: “que se vai elevando, que se mantém no ar, elevado, alto, ilustre, nobre, e vai até soberbo e presunçoso” (Instituto Antonio Houaiss, 2001, p. 2625); “que atingiu um grau muito elevado na escala dos valores morais, intelectuais e estéticos” (Cunha, 1982, p. 739). Daí vieram as palavras sublime e sublimação, com seus usos específicos em psicologia e química.

Estética e sublime são ideias que habitam a filosofia e que foram abordadas criativamente por filósofos da qualidade de Kant, Wolff, Baumgarten e principalmente Schiller. Não nos ocuparemos delas aqui para não dispersarmos o campo de observação deste trabalho.

Para Freud, sublimação trata da “passagem de qualquer tendência primitiva para expressão civilizada mais 'elevada'” (Likierman, 1994, p. 286). A palavra sublimação contém tanto a raiz do sublime, o potencial primitivo latente de contato com o belo, como o que, no domínio das belas-artes, está relacionado a algo grandioso e elevado. Em sintonia com o momento epistemológico de sua teoria, a palavra, em Freud, ficou restrita a mostrar que certas atividades podem não estar diretamente associadas a um objetivo sexual (Laplanche & Pontalis, 2004, p. 495).

Ao usar a palavra sublimação, posso pensar que Freud conhecia os filósofos que trabalharam com essa ideia e intuiu que as vivências primitivas nos abastecem também a partir do sublime, e que aí fica uma reserva potencial estética. Mais tarde, Bion (1967/1994), na compilação de seus escritos de 1950 a 1962, e trabalhando com outras ferramentas de observação, sugere que a possibilidade de desenvolvimento da mente está exatamente na condição de analisarmos a parte psicótica da personalidade, e não a parte neurótica.

Sublime, para Likierman, descreve um estado mental que vivencia de modo primitivo algo essencialmente bom e que permanece como fonte de experiências que podem ser transformadas em experiências estéticas. Não se trata de experiência ideal ou idealizada, como concebeu Klein em suas posições, nem de um conflito estético, como disse Meltzer (1988/1995), mas de uma experiência originalmente boa internalizada. Essa vivência singular introduz o bebê à bondade que a vida tem para oferecer e o capacita a conhecer e se deixar ser vitalizado pela intensidade da vida.

Entendo, além disso, que o sublime existe como uma preconcepção que se realiza na medida em que experiências emocionais primevas e satisfatórias vão acontecendo.

Essa preconcepção para o estético permite, se realizada, que se entre em contato com o prazer autêntico (Rezze, 2016a, 2016b), com a experiência emocional estética do fazer junto, com o aparecimento do belo na relação analítica; só assim uma “bomba calórica” pode ser vivida como aproximação amorosa.

Da mesma forma, a experiência estética só é possível diante de um poema, de uma música, de um filme, de uma pintura, de uma obra de arte quando nos tocam profundamente: somente assim deixam de ser expressões criativas (individuais) para serem vivências estéticas experimentadas a dois.

A experiência emocional não precisa ser estética, mas a experiência estética pode gerar intensa experiência emocional. Essa possibilidade depende da personalidade do analista e do analisando, do vínculo construído entre eles e da condição de a dupla conter a intimidade fertilizadora da experiência analítica intersubjetiva. E a experiência estética pode fortificar o vínculo pela possibilidade de permitir que surjam, na relação, o bom e o belo.

Ferreira Gullar (2013) chama de espanto o momento primeiro da criação. Espanto é a palavra que define esse estado mental em que, de repente, a realidade se mostra inexplicada: o nascer de um sonho. “O poeta quer apenas dizer que se espantou, que aquilo não tem mesmo explicação; o que ele deseja, depois, é registrar o inexplicável, afirmar o insondável mistério da existência” (p. E10).

Freud (1919/2010), em “O inquietante”, também relaciona a sensação de beleza à experiência de algo que nos inquieta ou é sentido como estranho, que é o título do mesmo trabalho de 1919 na Edição standard das obras completas de Freud.

Paulo Leminski concentra a força dessa vivência nominando um de seus livros de Distraídos venceremos:

Tempo lento,

espaço rápido,

quanto mais penso,

menos capto.

(Leminski, 1987, p. 26)

Faço referência, por meio de outro poema, a essa vivência sonhável e infinita de fenômenos mentais e estéticos, cujo norte nos aproxima do eu e do ser:

Sentimento danado:

cada vez que me encontro

não me dou por achado.

(Perrini, 1993, p. 58)

É o tempo e a intuição psicanaliticamente treinada que apontam o que nos faz sentido, o que está em comunhão conosco. E as experiências nos encorajam a afirmar as verdades que captamos. Se elas puderem ter essa aura de autenticidade e ser vividas a dois, destravam-se as resistências e as experimentamos como fenômenos estéticos. O verdadeiro não amadurece quando a gente quer; ele depende de paciência, esperança e fertilidade:

Quero fazer contigo

o que faz a primavera às cerejeiras.

(Neruda, 1974/1999, p. 49)

Fazer junto: é assim com a vida, é assim com a psicanálise.

 

Nota

1 Trabalho apresentado na mesa-redonda “Trabalho de sonho, trabalho de luto”, no XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise, São Paulo, 2015.

 

Referências

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Correspondência:
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Recebido em 21.04.2016
Aceito em 25.11.2016

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