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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

DIÁLOGO

 

O sujeito em exílio: entre o ser da intimidade e o ser da violência política extrema1

 

Subject in exile: between being in intimacy and being in extreme political violence

 

El sujeto en exilio: entre el ser de la intimidad y el de la violencia política extrema

 

 

Marcelo ViñarI; Tradução Julia Tomasini

IMembro titular da Associação Psicanalítica do Uruguai APU

Correspondência

 

 


RESUMO

“Eu sei quem eu sou e sei quem eu posso ser” foi a pretensiosa e quixotesca afirmação do racionalismo ocidental ao longo do Século das Luzes. O sujeito descentrado, que o inconsciente freudiano descobre ou inventa, derruba tal certeza. Isso, como coloca o próprio Freud, constitui o terceiro golpe à megalomania narcísica da humanidade, depois dos de Copérnico e Darwin. Parcialmente estrangeiros para nós mesmos, somos estruturalmente sujeitos em exílio. Sobre essa base estrutural opera a barbárie da violência política, o genocídio quente da guerra e o genocídio frio da xenofobia e da exclusão. O texto propõe combater a medicalização das vítimas e promover a clivagem entre ilesos e afetados a fim de chamar a atenção para o reconhecimento dos fatores que, em psicologia individual e coletiva, propiciam ou promovem (ou, pelo contrário, impedem) a expressão de destrutividade humana.

Palavras-chave: exílio interior estrutural; exílio ligado à violência política.


ABSTRACT

“I know who I am and I know who I can be” was the pretentious and quixotic assertion which characterized the Western rationalism throughout the Age of Enlightenment. This certainty, however, is destroyed by the “off-centered” (or eccentrical) subject, whom the Freudian unconscious discovers or invents. Freud himself considers it as the third strongest hit against humankind's narcissistic megalomania. Copernicus's and Darwin's discoveries, he continues, would be the first two. We partially are foreigners to ourselves; therefore, we are subjects in exile. The barbarism of political violence works on this structural basis. The “hot” genocide of war and the “cold” genocide of xenophobia and exclusion are affected. This paper's purpose is to fight against the medicalization of victims. The author attempts to distinguish the psychologically damaged individuals from the undamaged ones in order to emphasize the factors that provide or promote (or, on the other hand, prevent) expressions of human destructiveness.

Keywords: structural and interior exile; exile related to political violence.


RESUMEN

“Yo sé quién soy y sé quién puedo ser”, fue la pretenciosa y quijotesca afirmación del racionalismo occidental durante el Siglo de las Luces. El sujeto descentrado, que descubre o inventa el inconsciente freudiano, derrumba esa certeza y, como señala el propio Freud, esto constituye el tercer golpe a la megalomanía narcisista de la humanidad, después de Copérnico y Darwin. Parcialmente extranjeros a nosotros mismos, somos estructuralmente sujetos en exilio. Es sobre este basamento estructural que opera la barbarie de la violencia política, el genocidio caliente de la guerra y el genocidio frio de la xenofobia y la exclusión. El texto apunta a combatir la medicalización de las víctimas y fomentar el clivaje entre indemnes y afectados para dirigir la atención a reconocer los factores que, en psicología individual y colectiva, propician o fomentan (o, al contrario, impiden) esta expresión de destructividad humana.

Palabras clave: exilio interior estructural; exilio ligado a la violencia política.


 

 

Cem vezes por dia, eu me lembro de que minha vida interior e minha vida exterior dependem do trabalho de outros homens.

(Albert Einstein)

Exílio: a etimologia indica alguma coisa “fora do lugar”. A organizadora (Marie-Claire Caloz-Tschopp) sugere a peripécia do desterro e do refúgio, em um planeta desigual, violento e belicoso ao ponto da ameaça de sua autodestruição. O psicanalista (Marcelo Viñar) escuta uma dimensão estrutural, constitutiva da humanidade do ser humano. Como amarrar esses campos discursivos tão díspares em um texto congruente?

A transferência entre campos discursivos e a controvérsia interdisciplinar têm sido uma constante e um eixo diretriz nos eventos promovidos por Marie-Claire, perspectiva contagiante e enriquecedora.

A linguagem, o reflexo das palavras, é um recurso necessário porém precário - como a marcha de um inválido - para expressar a riqueza e a complexidade da experiência de estar vivo, de sentir prazer e dor. Apenas os grandes poetas conseguem.

Este texto surge da convergência da filósofa com o psicanalista, ambos envolvidos há muitos anos no tema da violação dos direitos humanos fundamentais, expressão da aresta destruidora que habita a condição humana desde tempos imemoriais.

 

Sobre os começos da vida psíquica

O sujeito da consciência, sujeito unitário, consciente de si, de seus atos, determinações e conflitos (e contínuo no tempo), é uma aquisição tardia do desenvolvimento humano e leva grande parte da infância. Porém, quando se instala a consciência de si mesmo e de um mundo autorreferido, a realidade resulta importante e decisiva - uma realidade transparente e compreensível que Humberto Maturana chama de realidade sem parênteses: o que percebo é o que é, sem dúvidas nem hesitações. Concordância do ser e do mundo, como queria Platão.

Do fracasso e da queda de tal utópica harmonia surge, mais cedo ou mais tarde, um sujeito crítico questionador das falsas evidências - a realidade com parênteses, diz Maturana - e que Jean Laplanche nomeou de sujeito interrogador e autoteorizante. Apesar disso, as relíquias daquele passado edênico (que certamente não existiu como tal) ficam impressas e se constituem como os alicerces dos nossos códigos e crenças, marcando a singularidade dos nossos estilos pessoais. Aquele passado inventado, que com Freud denominamos His Majesty the Baby, constitui o alicerce, a sustentação da nossa arquitetura psíquica e fonte de diversidade.

Nós, humanos, nascemos tão frágeis, prematuros e desamparados que necessitamos, para sobreviver, de um entorno protetor e acolhedor durante um longo tempo - um período muito maior do que para outros mamíferos. Esse é um tempo fundador, em que a função do psiquismo incipiente é combater e lidar com a angústia de aniquilação, cujas pegadas são às vezes detectáveis na experiência psicanalítica com psicóticos, e que Winnicott denominou de agonias primitivas ou angústias sem nome.

Só mais tarde - entre os 6 e os 18 meses, segundo Lacan - o bebê se reconhece como unidade vivente e singular, o que se expressa no júbilo de se reconhecer no espelho de outros rostos humanos, como unidade existente e pensante.

Nas ficções teóricas que a psicanálise construiu para compreender as origens da vida psíquica, naquele tempo infans, precisa-se de três anos para adquirir as qualidades que especificam nossa espécie: a posição ereta, a marcha bípede, a preensão do polegar e, sobretudo, o uso da linguagem articulada. Dessa forma, a criança passará a ser designada como nosso semelhante. No curso da evolução das espécies, coloca J.-P. Vernant, é a linguagem articulada o que melhor especifica a condição humana.

Se no tempo infans fomos uma massa de carne sensível ao prazer e à dor, o surgimento do fonema nos permite nomear, (re)presentar os objetos que nos rodeiam. Pulo gigantesco do infans (sem linguagem) para dentro do pensamento simbólico. Para Noam Chomsky, esse é o degrau diferencial entre a inteligência animal e a humana: enquanto aquela é adaptativa e situacional (atual), esta substitui a imagem pelo signo e é capaz de pensar objetos em ausência da sua percepção atual e de criar objetos de pensamento e operar com eles.

A troca da imagem pelo signo é decisiva. Assim, o Homo faber, que é capaz de gerar meios de subsistência como qualquer animal, é acompanhado pelo Homo sacer, ser vivente apto a criar cosmogonias e religiões, e mais tarde as artes e as ciências, tudo aquilo que constitui o processo civilizatório.

Prematuridade ao nascer e desamparo originário como pedra fundacional, e portanto dependência extrema do entorno, são nosso ponto de partida. Transformamos o defeito em virtude. A indefesa dos começos dá origem à importância do objeto auxiliador: a mãe primitiva e seus anexos. Em consequência, a subjetividade inicial não é interior, mas relacional, o mais importante do ser dos começos não está em si-mesmo, mas nos seus vínculos.

Outras espécies se agrupam em sociedade, porém na nossa a linguagem cria o social para viver, e a noção do semelhante não é a mesma para a manada do que para o humano. Nós entramos no mundo pelo corpo e pelo grupo; só mais tarde conseguimos dizer “eu mesmo”. O nós antecede o eu.

Um preconceito biologizante pode estabelecer a fecundação dos gametas como a origem da vida. Na espécie humana, essa definição é parcial ou insuficiente. A vida não começa com a inseminação do óvulo pelo esperma, pois ela está - ou deve estar - antecedida pelo desejo parental de filiação, que antecede e anuncia a concretização biológica.

Quando, na vida adulta, nós nos interrogamos quem somos, de onde viemos ou por que estamos aqui, as respostas são sempre sociais e insuficientes.

Na introspeção do adulto, podemos chamar exílio interior ou estrutural à amnesia desses processos fundacionais do ser. Habitualmente, tais processos são substituídos pela soberba ao se afirmar: “Eu sei quem eu sou e quem eu posso ser”, algo caraterístico do racionalismo ocidental. Mais infrequente é a modéstia do biólogo François Jacob, que, de velho, ironizava dizendo que, quando gritava seu nome, vinham a sua mente personagens e situações múltiplas e contraditórias.

Assumir esse exílio interior como constitutivo de nosso ser é o que Derrida denominou acertadamente como desassossego identitário. Só o fundamentalista consegue fugir dessa precariedade, por meio de sua alienação xenofóbica. Assim, a mesmidade autorreferida é excelsa, enquanto os outros são sub-homens.

Levando em conta a importância da prematuridade na hora do nascimento e a extrema e prolongada dependência do entorno humano e cultural, a psicanálise concebe a humanidade do recém-nascido como um processo em permanente construção e reformulação, e sublinha o papel da primeira infância para o desenvolvimento gradual e paulatino que organiza a arquitetura básica da personalidade.

A concepção biológica está - ou deve estar - antecedida pelos anseios paren-tais ao longo das gerações e pelos códigos culturais sobre parentalidade e filiação que são interiorizados por meio de cada cultura. Na tensão entre o que antecede e os dispositivos pulsionais de cada um, germina a singularidade de cada sujeito desejante.

* * *

Há outro exílio que não requer desloamento geográfico, territorial, e em que cada ser humano pulsa em diferentes magnitudes, que consiste na capacidade de dizer “não”, de se constituir não somente mime-ticamente, mas em oposição à cultura hegemônica ou aos mandatos familiares.

A especularidade com os rostos, lendas que nos modelam não é realizada só por assimilação, mas também por dissidência e rejeição dos costumes, crenças e valores que tramitam na vida coletiva e constituem o perfil próprio de cada cultura. É na tensão entre tradição e ruptura, entre assimilação e combate, que é processada a história da sensibilidade na sucessão de gerações. Não estamos confinados no mandato dos ancestrais ou da tradição, mas os que nos precederam são o referente para definir continuidades e rupturas.

Delimitar os contornos dos hábitos e condutas que conformam a cultura pre-valecente ou os imaginários coletivos que caracterizam uma comunidade é, por um lado, evidenciar o óbvio e, por outro, uma ímproba tarefa que leva apenas a conjecturas, com probabilidades de acerto e erro. É surpreendente como, nessa construção de imaginários coletivos - além de valores partilháveis -, o sagrado e o sacrílego são imperativos para quem pertence ao grupo e estranhos para o estrangeiro.

Do ponto de vista de uma subjetividade singular, entre um sujeito panglossiano que aceita e assimila de bom grado as sugestões da moda e um sujeito crítico que as questiona, há um leque de uma diversidade infinita.

Por um lado, há uma avidez pela unidade, pela homogeneidade do uno, com o desejo de poder identificar-se (o sentimento de ubuntu,2 de pertencimento e afiliação) contido no aforismo de Hegel de que, só depois de ser reconhecido pelo outro, por todos os outros, é que o ser humano se humaniza. Por outro lado, há o que disse Hannah Arendt sobre a diversidade ser o traço mais característico do humano. Sobretudo nas conjunturas históricas de crispação política, em que o reconhecimento e a legitimação do diferente são trocados pelo impulso ou pela ação de destruí-lo. Essa dupla e contraditória exigência de ser como os outros, de ser um espelho dos meus próximos ou semelhantes e de ser singular e único, habita sempre os meandros da alma humana, em seus conflitos e contradições.

Em uma bela metáfora, Amos Oz diz que o ser humano é como uma península: uma parte de si-mesmo está amarrada ao continente, ao coletivo de pertencimento - a mesma língua, a mesma história, os mesmos heróis, as mesmas tradições e ilusões, a mesma experiência sensorial da natureza (ar, luz, aromas), os mesmos hábitos gastronômicos; por outro lado, uma península é uma ampla superfície aberta para o oceano, cujo desassossego interminável avalia o vaivém das nossas paixões.

Eu não sei como teria sido nascer no Oriente, com séculos ou milênios de tradição étnico-religiosa, o que institui formas específicas de relato em cada língua e cultura. Eu nasci em terra de povos novos, onde a limpeza étnica realizada pelos conquistadores europeus levou quase ao extermínio da população indígena e desertificou o território, que foi repovoado com pessoas que saíam de uma Europa superpovoada entre o final do século XIX e o começo do século XX.

O que chamamos de identidade humana não é uma essência fixa como a que define o mundo mineral ou vegetal; é um oceano em perpétua agitação, com algumas correntes definíveis e outras inesperadas ou imprevisíveis. A identidade humana é construída e modelada a partir: (a) do nascimento, através dos nossos impulsos internos, que pouco conhecemos e muito ignoramos; e (b) de insumos exógenos procedentes do mundo humano e da natureza, que nos rodeiam e nos marcam por meio do sensorial e, sobretudo, da língua.

* * *

Em resumo, a constituição de si-mesmo é um longo trajeto, sempre inconcluso e que não é possível levar para frente sem a outridade do diferente. Trata-se de um território de combate entre o Narciso absoluto que só quer reconhecer o idêntico, embora isso o leve à destruição (a do outro e a própria), e o sujeito que aceita a precariedade de seu ser e se arrisca à alteração que a outridade do diferente provoca nele. Um trabalho e tanto!

Ter um lugar na genealogia, ter um lugar no mundo, como os animais têm seu ninho ou sua toca, é um trabalho árduo. Que esse lugar seja fixo ou errante é menos importante do que o intervalo entre o roteiro familiar e conhecido e o trajeto inóspito e ameaçador por ser inédito e desconhecido.

Se a etimologia de exílio é literalmente “fora do lugar”, a tarefa é a de problematizar a definição do lugar mítico onde queremos ou podemos viver e morrer. Citando Camus, Kertész indica que o reino é viver livre e descalço. O exílio é o único caminho para negociar o domínio, a dependência ou a escravidão.

Com a amnésia do tempo infans e a irrupção da linguagem são formuladas as ficções e lendas que configuram a origem de um sujeito, o que no jargão do nosso ofício adquire o nome de romance familiar do neurótico. Sua matéria-prima é a língua, o nome (o primeiro nome e o da família), o território (ou a querência - Heimat3) e o lugar da genealogia (contrato narcísico de Piera Aulagnier). Esses são os eixos que perfilam os itinerários e destinos de um sujeito nas continuidades e rupturas com sua herança e tradição.

* * *

No começo, fomos carne dolente e alme-jante, protegida e manipulada por um entorno que protegeu e/ou faliu em diverso grau. Esse começo - que Freud chamou de desamparo originário - é o mais próprio e mais estrangeiro que nos acompanha ao longo da vida. E a alheidade das nossas origens - o exílio interior e/ou estrutural - é constitutiva da condição humana e está conosco nos momentos felizes e desafortunados do nosso destino.

Viemos, então, ao mundo pelo corpo e pelo grupo (Kaës) e nascemos duas vezes: um nascimento é biológico, com dia e hora, e o outro é simbólico, gradativo e progressivo, e leva um longo período de tempo. Só podemos definir um terminus provisório quando chegamos a nos nomear na primeira pessoa do singular, quando dizemos “eu” no meio de muitos outros, cujos traços, atitudes ou crenças coincidem ou diferem dos nossos. Como diz Bárbara Freitag, nós não nascemos com um pensamento lógico, ele é adquirido, conquistado ou construído gradualmente no desenvolvimento, e isso acontece em uma relação complexa e dialética entre a psicogênese (o que o sujeito aporta) e o apoio familiar e sociocultural, em que têm lugar o amadurecimento e o desenvolvimento. O que chamamos de racionalidade e pensamento crítico é uma aquisição tardia, antecedida pelo sincretismo e o pensamento animista. Um longo e tortuoso caminho sem ponto definitivo de chegada. A aposta do Século das Luzes na plenitude da razão não nos libertou da destrutividade e do ódio à diferença. Pelo contrário, a rejeição da alteri-dade parece estar no auge neste planeta globalizado e desigual, o que fomenta a destrutividade (Chamayou, 2014).

Sem desconhecer a face saudável do progresso civilizatório e suas consequências na história coletiva e individual, é impossível não assinalar a destrutividade que acompanha esse itinerário de progresso tal como a sombra acompanha o corpo.

A criatividade e o ódio dançam juntos na história da humanidade desde tempos imemoriais, tanto no nível dos indivíduos quanto no das multidões. Em seu breve texto “Por que a guerra?” (1933/1986), Freud tratou da eterna oposição entre Eros e Tânatos. Essa eternidade releva um essen-cialismo irritante que diminui a importância da nossa condição de seres históricos, quer dizer, transitórios e concretos, responsáveis pelo que fazemos em nossa efêmera passagem na sucessão de gerações.

* * *

Hoje transitamos a terceira idade. Ao longo da nossa vida, passamos pela ilusão milenarista de maior equidade e justiça sociais e distributivas. Gritando: “Peçamos o impossível!”, o sessentismo sonhou com a criação do Homem Novo, e o que colhemos daquilo foi apenas o ensino do poder ofuscante dos ideais e utopias, para chegar a este presente lúgubre de guerras insensatas e intermináveis, cujos “danos colaterais” promovem um número mas-sivo de refugiados, junto com a ameaça da mudança climática e do esgotamento de combustíveis fósseis e água limpa. Além do retorno para o arcaísmo da intolerância étnica e religiosa, é preciso incluir a brutal desigualdade e, mais ainda, a voracidade consumista que, ao genocídio quente da guerra, soma o genocídio frio e silencioso da exclusão. Apesar dos discursos e ações em prol de uma maior justiça distributiva, a equação de Piketty no âmbito econômico e a fragmentação no âmbito social mostram o retrocesso da bancarrota de uma esquerda humanista e da direitização do mundo que promete apenas xenofobia e exclusão.

Para subtrair intelectualismo de nossa explicação, adiciono dois depoimentos da vida corriqueira.

Um antropólogo faz uma pergunta para um camponês guatemalteco, que responde: “Para vocês, a violência começa com o assobio de balas, mas para nós começa quando nossa renda não é suficiente para alimentar nossos filhos no final do mês.”

Um jornalista dá carona a um camponês mexicano na estrada e, para quebrar o silêncio e puxar conversa, pergunta: “Quais são os seus sonhos?” A resposta chega: “Nós não podemos nos dar ao luxo de sonhar.”

As megalópoles que se expandem durante o século XX - o crescimento descontrolado da urbe - incentivam a anomia e a desolação de vastos setores da população, pessoas que Eliane Brum designa com o adequado nome de as vidas que ninguém vê.

A velocidade das mudanças cresce exponencialmente, e o tempo social acelerado é interiorizado como o tempo vivencial. Eles vão com pressa, embora não saibam para onde, diz o Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry. O tempo interior, em que o presente costumava ser o articulador de um passado de anseios e um futuro de projetos, transforma-se em um presente sobreexcitado, ávido de novidades para sossegar a incerteza de um amanhã desconhecido. Os vínculos multiplicam-se, mas tornam-se fugidios, efêmeros e superficiais.

Desse modo, a profecia de Walter Benjamin sobre o desaparecimento da comunidade de ouvintes, que inaugura e constitui o mal da modernidade, adquire total validez. A necessidade de narrar e compartilhar experiências e vivências é um nutriente para a alma, assim como a água e o alimento o são para o corpo material.

O psiquismo não está confinado à mente; só se expressa e se expande em um tecido de afinidades, pertencimentos e lealdades, como eixo significativo da experiência e destino humanos. Não somos feitos apenas de carne, mas - como diz o poeta - somos feitos de contos e lendas. Continuando com Benjamin: contar a própria história é um gesto que humaniza e um direito inalienável. O narrador que formula sua experiência, diz Revault d'Allonnes, configura seu ser. Mas não há narrador sem ouvinte, sem testemunha. Sua falta (sua falência) é um atroz exílio na desolação.

É nos espelhos daquele entre dois (ou entre muitos) íntimo que brota a espessura do espaço subjetivo que nos faz humanos, sem intervalo entre o afetivo e o cognitivo, entre o afeto e a representação.

A guerra, os campos de concentração, a tortura, o desterro, a exclusão, a violência política extrema têm um efeito devastador no cenário da humanidade que tentei descrever. Muitas vezes, o dano é irreversível e definitivo. Daquilo tudo, fica o resto humano que chamamos sobrevivente.

A tecnocracia moderna criou um vocabulário reparatório através da medicalização (neurose traumática - post-traumatic stress disorder - resiliência). Obviamente, não é comparável o exílio estrutural próprio da condição humana com a devastação traumática produzida pela violência política extrema, mas há uma ponte que os conecta: a singularidade dos processos de reparação.

O desterro imposto pela violência política ou pela miséria econômica constitui uma experiência inaudita. Por um lado, o sentimento exaltado de ter fugido do pior, a morte ou o cárcere, e a difusa esperança em alguma coisa possível e melhor. Por outro lado, o dilaceramento da perda, a construção idealizada do objeto nostálgico: “Aqui, tudo é estranho; lá, tudo era magnífico”, a língua, os vínculos, as melodias e as lendas que nos embalavam sem sabermos... e agora estamos nus e na intempérie. Os modos de construir e figurar esse objeto nostálgico são um locus privilegiado para ler ou observar a diversidade humana.

Um passado perdido e um futuro a construir são a zona de passagem de uma experiência inédita, irrepetível. A situação extrema (o refugiado), diferente de um sujeito para outro, não conforma uma categoria, mas exalta a diversidade. O posicionamento solidário ou altruísta de quem acolhe deve reconhecer e lidar com essa infinita diversidade do diferente, tarefa nada fácil.

Como nos ensinam as teses de Muriel Montagut em O ser após a tortura (2014), não se trata de cicatrizar, como na medicina, que procura apagar as marcas do dano, mas exatamente o contrário: trata-se de reinscrevê-las em um contexto de vida. O desexílio não consiste em apagar as marcas, mas no esforço insensato de não ficar preso na condição de vítima, encarcerado em uma memória melancólica e escatoló-gica; passo a passo, promover, reinventar e construir um projeto alternativo de vida, que não repita a história, mas que a reformule sem esquecê-la.

Encerro com uma citação de Alain Badiou:

Se o carrasco é uma abjeção, a condição de vítima não é muito mais preciosa. O propriamente humano em alguém destinado ao matadouro é sua resistência, quase insensata e quase impensável, de que, por meio de um esforço inaudito, teime em continuar sendo si mesmo e não se acomode ao lugar assignado à vítima. O trabalho de subjetivação é a luta entre o lugar assignado e o lugar assumido. (2004, p. 35)

Revisão Marta Úrsula Lambrecht

 

Notas

1 Exílio/Desexílio, Collège de Philosophie, 1.° rascunho.

2 Nota da edição: filosofia africana que destaca a importância das alianças e do relacionamento entre as pessoas.

3 Nota da edição: termo alemão para “pátria”

 

Referências

Badiou, A. (2004). La ética: ensayo sobre la conciencia del mal (R. J. Cerdeiras, Trad.). México: Herder.         [ Links ]

Chamayou, G. (2014). Las cacerías del hombre: historia y filosofía del poder cinegético (G. Casanueva & H. Soto, Trads.). Santiago: Lom; Trilce.         [ Links ]

Freud, S. (1986). ¿Por qué la guerra? (Einstein y Freud). In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 22, pp. 179-198). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1933)        [ Links ]

Montagut, M. (2014). L'être et la torture. Paris: PUF.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marcelo Viñar
Joaquín Núñez 2946
11300 Montevideo
marvin@belvil.net

Recebido em 23.02.2017
Aceito em 06.03.2017

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