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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

DIÁLOGO

 

Gravidez, nascimento, primeira infância, violência contra as crianças: por uma prevenção precoce para todos

 

Pregnancy, birth, first childhood, violence against children: for an early prevention for all

 

Embarazo, nacimiento, primera infancia, violencia contra los niños: por una prevención precoz para todos

 

 

Marie Rose MoroI; Tradução Claudia Berliner

IProfessora de psiquiatria da criança e do adolescente na Universidade Paris Descartes. Responsável pela equipe de psiquiatria infantil perinatal da Maternidade de Port Royal BB-Mat. Chefe de serviço da Maison de Solenn, Maison des Adolescents do Hospital Cochin. Diretora da revista transcultural L'Autre

Correspondência

 

 


RESUMO

Estar grávida, cuidar dos bebês, tornar-se pai e mãe é sempre, e em todo lugar, uma atividade que mobiliza os seres em sua intimidade, mas também em seus vínculos, o casal, a família, a sociedade. Os estudos mostram a importância desses primeiríssimos momentos para que se estabeleça uma relação de boa qualidade com as crianças e se evitem as disfunções pais-filhos e a violência contra as crianças. Para isso, porém, é preciso respeitar e apoiar os pais, seja qual for sua maneira de serem pais, e portanto respeitar a diversidade cultural e social. Cabe-nos apoiar todas as competências parentais tal como se expressem nos pais, sem julgá-los ou fragilizá-los, sem querer normalizá-los e obrigá-los a serem pais da maneira como nós o somos e como pensamos que deve ser. A clínica transcultural que associa psicanálise e antropologia pode nos ajudar a encontrar modos de lidar com todos esses pais que pertencem a minorias sociais ou culturais.

Palavras-chave: gravidez; estabelecimento das interações precoces mães-filhos; apoio à parentalidade; violência; diversidade social e cultural; clínica transcultural.


ABSTRACT

Being pregnant, taking care of babies, becoming father or mother is always and everywhere an activity that touches people and affects their intimacy and bounds, such as couple, family, society. Studies show the importance of these very first moments in order to establish a good quality relationship with their children. As such, parent/child dysfunctions and violence against children may be avoided. To that end, parents must be respected and supported whatever way they choose to parent. Cultural and social diversity, therefore, needs to be respected. It is up to us to support all the parental competencies as shown by parents. It is not our job to judge nor weaken them. We should never want to normalize these parents nor force them to be the kind of parents we are and we think we are supposed to be. Transcultural clinic combines psychoanalysis and anthropology, and may provide us better tools to deal with all these parents who belong to social and cultural minorities.

Keywords: pregnancy; establishing precocious interactions between mother and children; motherchild interaction; support to parenting; violence; social and cultural diversity; transcultural clinic.


RESUMEN

Estar embarazada, cuidar a los bebés, convertirse en padre y madre es siempre, y en todo lugar, una actividad que mueve a los seres en su intimidad, pero también en sus vínculos, la pareja, la familia, la sociedad. Los estudios muestran la importancia de estos primeros momentos para que se establezca una relación de buena calidad con los niños y se eviten las disfunciones padres-hijos y la violencia contra los niños. Sin embargo, para esto es necesario respetar y apoyar a los padres, independiente de su forma de ser padres, y por tanto respetar la diversidad cultural y social. Nos corresponde apoyar todas las habilidades paternas tal y como se expresen en los padres, sin juzgarlos o debilitarlos, sin querer normalizarlos y obligarlos a ser padres de la forma en la que nosotros lo somos y como pensamos que debe ser. La clínica transcultural que vincula el psicoanálisis y la antropología puede ayudarnos a encontrar formas para lidiar con esos padres que pertenecen a minorías sociales o culturales.

Palabras clave: embarazo; establecimiento de las interacciones precoces madres-hijos; apoyo a la paternidad; violencia; diversidad social y cultural; clínica transcultural.


 

 

Estar grávida, cuidar dos bebês, tornar-se pai e mãe é sempre, e em todo lugar, uma atividade que mobiliza os seres em sua intimidade, mas também em seus vínculos e relações, o casal, a família, a sociedade. Logo, cuidar dos bebês varia muito de um país para outro, de uma cultura para outra. Em certos lugares, gostam de olhar os bebês e falar com eles, mas eles são pouco tocados e massageados, como acontece entre nós; em outros, preferem carregá-los, massageá-los, mas, em contrapartida, são menos olhados e fala-se menos com eles, quando pequenos. Não há uma maneira certa e uma maneira errada de fazer; os bebês estão bem quando seus pais estão bem e se sentem bons pais no seu meio, na sua cultura e aos próprios olhos. Portanto, quando trabalhamos com pais e bebês que vêm do mundo inteiro, como ocorre em nossas sociedades cosmopolitas, é importante não “patologizar” o que não conhecemos e, ao contrário, familiarizar-se com esses diferentes estilos de interação para apoiar os pais, de onde quer que venham, em seu modo de agir e, portanto, de serem bons pais à sua maneira.

Como entender de que maneira alguém se torna pai em situação migratória? Certo número de pesquisas nos ajuda a pensar os efeitos da diversidade cultural, mas também da imigração sobre os pais ou os futuros pais. Vejamos alguns dados de pesquisa e suas consequências para a clínica e o acompanhamento desses pais e seus bebês em nossos consultórios e em nossos locais de acolhida.

 

Alguns dados de pesquisa

Depois dos importantes trabalhos antropológicos sobre as maneiras de cuidar bem dos bebês nas várias partes do mundo (Lallemand, 1981; Lallemand et al., 1991; Rabain-Jamin, 1989) e com as imigrações e suas consequências quanto à transmissão das técnicas de maternagem, foram progressivamente surgindo trabalhos específicos sobre os bebês de famílias imigrantes nos países de acolhida. Vamos distinguir três séries de trabalhos significativos a respeito do bebê.

Bebês que fazem as mães ficarem em dúvida e mães carentes de comães

Numa primeira série de trabalhos, encontramos a preciosa investigação de Rabain-Jamin e Wornham (1990), que analisou as transformações das práticas de cuidados dos bebês de mães imigrantes provenientes da África Oriental. Entre as 26 mães imigrantes entrevistadas, aproximadamente 10% eram soninke, 8% bambara, 3% diolof [wolof], 3% tukuloor [toucouleur], 3% mandenka [mandingo] e 1% joola [diola]. A técnica de investigação consistiu em observações e entrevistas em domicílio. As autoras, antropóloga e pediatra, constatam logo de início que a mãe imigrante está submetida a exigências contraditórias, que podem explicar algumas das incertezas e inquietações: “a mãe é colocada na situação complexa de ter de internalizar os valores da sociedade de acolhida ao mesmo tempo que transmite os valores tradicionais” (p. 291). Das mulheres interrogadas, oito não fazem nenhuma massagem tradicional. No entanto, entre aquelas que a praticam, as autoras notam que a massagem vai pouco a pouco perdendo seu caráter ritualizado, sendo progressivamente feita na intimidade e apenas pela mãe - tradicionalmente, ela é garantida pela avó, pela sogra ou por uma mulher mais velha da família. A hipótese delas é que essas jovens mulheres têm dificuldade de se apropriar de uma técnica cuja aplicação não cabe a elas segundo a tradição.

Todas as mulheres do estudo carregam o bebê nas costas em casa, inclusive aquelas que, fora, utilizam o material de carregamento ocidental (carrinho, “mochila canguru”...). Quinze entre elas utilizam essas técnicas ocidentais de carregamento de maneira ocasional ou sistemática na rua. Carregar o bebê nas costas num local público pode ser considerado perigoso, pois atrai o olhar dos estrangeiros para a criança e teme-se o olhar invejoso (“mau-olhado”).

A quantidade de estimulações corporais continua alta, e o tempo de exploração dos objetos baixo. Por exemplo, em três crianças observadas de forma mais precisa, o tempo de contato físico com carregamento da criança corresponde a 90% das trocas aos 6 meses. Encontramos, portanto, a riqueza das estimulações motoras descritas na literatura antropológica e observada, em parte, em situação migratória no caso daquelas que conservam as técnicas tradicionais. No caso das outras, o adiantado da marcha que se observa na África - não é raro ver uma criança andar com 8 meses de idade - não existe mais ou é menos frequente na França. Esse estudo vai ao encontro de nossas observações, que mostram que certas crianças nascidas nessas famílias africanas dispõem de poucos brinquedos, portanto têm poucos “paninhos”, elas sonham e brincam. Trata-se de modalidades diferentes do brincar, que é importante não interpretar erroneamente.

No estudo, 69% das mulheres amamentam por seis meses, mas a mamadeira é muitas vezes dada como complemento, e isso precocemente. O modo de aleitamento das mães africanas é diferente do das mães ocidentais, com mamadas sob demanda e ante qualquer manifestação do bebê. As mamadas são mais curtas e mais frequentes. A mamadeira, contudo, é utilizada para responder às inquietações da mãe em relação à sua capacidade de cuidar do bebê sem a ajuda de seu grupo. Já não há delegação possível dos cuidados da maternagem, e a mãe se vê numa relação dual com seu bebê, o que modifica o equilíbrio geral das trocas, sendo comum que isso a deixe inquieta. Ela preferiria estar rodeada de outras mulheres para cuidar de seu bebê.

Como se dá a divisão entre a medicina ocidental e a medicina tradicional (por meio das informações transmitidas, os cuidados prodigalizados às crianças pelos pais, vizinhos, amigos, curandeiros)? Quanto aos modos de puericultura, as autoras constatam - o que, aliás, coincide com nossa própria experiência - “que só os conhecimentos relativos ao emprego da mamadeira são reconhecidos como tendo sido adquiridos graças ao que aprenderam na maternidade ou na PMI [Proteção Materna e Infantil1]” (1990, p. 310). Todo o resto é transmitido pelos pais, pelas outras mulheres da mesma língua... quando estão presentes em torno da família; se não, o que há, muitas vezes, é a falta e a incerteza.

Quanto aos cuidados, a eficácia dos hospitais e da Proteção Materna e Infantil geralmente é reconhecida. Encontram-se várias atitudes em relação às práticas terapêuticas tradicionais: uma associação possível das duas modalidades - por exemplo, as crianças tomam os remédios e, paralelamente, preparam-se para elas infusões de folhas (como canicen entre os soninke) utilizadas por absorção ou em lavagens. Outras vezes, há uma seleção das indicações - para um resfriado, febre, diarreia, consulta-se um médico; para choros repetidos ou uma agitação noturna, remetem-se à tradição, pois inferem a visão de djinne (espíritos muçulmanos) ou de dömm (feiticeiros antropófagos entre os diolof)... Outras vezes, assiste-se a uma associação dos esquemas de interpretação - a bruxaria, por exemplo, esquema interpretativo tradicional frequentemente evocado, pode se somar a outra causa: “dizem que a criança pode pegar uma doença banal como a rubéola, mas, se a isso se somar a ação de pessoas que querem o mal, a doença será mais forte” (1990, p. 313). O recurso da viagem à África para “tratar-se” não está excluído quando a terapêutica ocidental não traz soluções satisfatórias ou quando subsistem dúvidas quanto à origem da doença. As autoras citam, por fim, um trabalho de Payne que mostra a importância das hospitalizações, aparentemente injustificadas em termos médicos, entre os imigrantes na França. Além dos aspectos sociais, as autoras propõem outra hipótese para explicar a importância dessas hospitalizações: o hospital é visto pelas famílias como um equivalente de comunidade terapêutica. O grupo é muito importante para tratar. Por isso, a adoção do sistema de cuidados ocidental não parece modificar o sistema de interpretação tradicional da doença subjacente, “que faz dela a expressão de uma desordem que afeta o grupo familiar inteiro” (1990, p. 316).

Outras pesquisadoras como Bril e Zack (1989) tentam destacar as transformações das práticas de maternagem em mulheres bambara que imigraram para a França a partir de uma série de entrevistas com mães e de um estudo etológico comparativo (bebês de famílias francesas e de famílias malinesas que moram na França e em Mali). Essas pesquisadoras utilizam o conceito de nicho desenvolvimental de Super e Harkness (1986). Esse conceito designa os sucessivos ambientes (humanos e materiais) que possibilitam os cuidados e as aprendizagens adaptados a cada criança numa dada cultura. Para Super e Harkness, cada cultura cria métodos que darão à criança a possibilidade de adquirir as competências intelectuais e sociais, o saber, e as aptidões práticas que ela valoriza. O nicho desenvolvimental seria a resultante de três subsistemas que interagem entre si: o ambiente físico e social em que a criança vive, os métodos de puericultura e as representações do desenvolvimento que os adultos maternantes têm. A partir do registro de vídeos, elas realizaram uma primeira série de cinco observações de famílias de imigrantes bambara da região parisiense. Em comparação com as observações feitas em Mali, elas destacam diferenças: uma estruturação diferente do espaço - um espaço reduzido e uma ausência de vida comunitária tornam a vida familiar e social das mulheres imigrantes difícil. A estrutura familiar nuclear traz consigo uma solidão pronunciada da mãe, que por outro lado tem de renunciar a suas atividades econômicas tradicionais em meio rural. O desfralde da criança se dá muito mais tarde. No Mali, a criança tem de estar desfraldada ao começar a andar; aqui, somente ao entrar na escola. O desmame se dá por volta dos 11 meses, portanto de maneira bem mais precoce do que no Mali, mas tardio para o modelo francês. Por outro lado, todas as crianças passam pela experiência da mamadeira.

O que as autoras mostram sobretudo é que as representações tradicionais da criança e de seu desenvolvimento ficam seriamente ameaçadas pelo confronto com profissionais da área médico-social, muitas vezes seus únicos interlocutores, que ignoram ou, pior, negam essas representações e em geral não reconhecem a especificidade dos modos de maternagem das mulheres imigrantes. Tanto é que “essas jovens mulheres têm dificuldade de reconstituir sozinhas representações da criança que lhes permitam efetuar uma síntese entre os dois sistemas de pensamento” (1989, p. 37).

Antes de analisar os trabalhos específicos de Stork (1986) sobre a comparação da maternagem na França, Índia e Mali, é preciso expor, muito sucintamente, seu grande estudo de psicologia transcultural sobre as práticas de cuidados infantis e as interações entre a mãe e seu bebê no âmbito da família ampliada hindu na Índia do Sul. Sua iniciativa foi ditada por uma preocupação de prevenção psicológica precoce. Com efeito, ao trabalhar na periferia parisiense, ficou impressionada com a grande morbidade na primeira infância e pela extensão dos distúrbios da adolescência, que ela relacionou com um mal-estar das sociedades industrializadas e às vicissitudes da criação das crianças nessas sociedades modernas. Concebeu então a ideia de comparar as práticas de maternagem em diferentes culturas. Foi, assim, ao encontro das preocupações de Mead (1930/1973, 1963), que tinha “atacado” a sociedade americana e suas práticas de criação a partir da comparação com os dados de seu estudo entre os manus. Mead acusava o sistema americano de falta de disponibilidade paterna para a criança. Queria mostrar que certos modos de criação estavam em contradição não só com os objetivos sociais buscados, mas também, e sobretudo, com as necessidades das crianças. Foi principalmente essa última consideração que guiou Stork (1986, 1999). Suas observações se apoiam num postulado básico - a trama de suas observações:

as concepções que os adultos de uma dada sociedade têm do desenvolvimento e da saúde da criança pequena influenciam seu comportamento e o tipo de cuidados que dedicam a ela. Os estilos de interação entre os adultos e as crianças pequenas assim determinados influenciam seu desenvolvimento e sua socialização. (1986, p. 14)

Na Índia do Sul, ela adotou uma metodologia “global”, estudando o vínculo mãe-criança no seu contexto: estudo dos textos antigos, observação direta das interações entre uma mãe e seu bebê, registro fílmico dos cuidados da primeira infância.

Com o mesmo método de microanálise, comparou cenas de higiene do bebê numa família tradicional francesa, numa família soninke morando em Paris e numa família hindu na Índia. Obteve duas diferenças principais: na França, as interações mãe-criança costumam ser distais, ou seja, por intermédio da voz e do olhar, sem contato corporal direto; na Índia, costumam ser proximais, pelo toque e trocas corporais. Além disso, a mãe imigrante soninke estimula seu bebê privilegiando maciçamente a manipulação da criança, o que proporciona ao bebê uma impregnação rítmica precoce. Stork nota também a riqueza dos contatos táteis e corporais no caso das mães soninke e seus bebês. As mães soninke carregam, massageiam, manipulam, estimulam seu bebê no plano psicomotor, o que é de grande importância para a estruturação psíquica da criança.

Quanto a nós, realizamos estudos clínicos com mães e bebês em situação transcultural que mostraram a importância da vulnerabilidade nesse período perinatal. Essa fragilidade se expressa tanto na mãe quanto na criança: depressões e psicoses pós-parto, desarmonia das interações mãe-filho, distúrbios funcionais do bebê, tais como distúrbios do sono ou da alimentação (Moro, 2007, 2010). Mostramos a eficácia das terapias que integram o nível comportamental, afetivo, fantasístico e cultural das interações mãe-bebê e a necessidade de trabalhar com o sentido cultural e individual da desordem (Moro, Neuman & Réal, 2008).

Assim, todos os estudos, sejam eles pediátricos, antropológicos ou clínicos, mostram a importância de levar em consideração as representações culturais dos pais, as formas de pensar as necessidades dos bebês e dos pais e seus modos de agir. Mostram também a importância de reconhecer e apoiar as competências individuais e culturais desses pais e os vínculos que mantêm com suas relações e comunidades para melhor ajudá-los a serem pais e a fazerem seus bebês crescerem, venham eles de onde vierem.

 

O que acontece, então, em situação de exílio, de viagem ou de mestiçagem?

Em suma, a partir desses trabalhos antropológicos, clínicos e linguísticos, fomos levados, nos últimos anos, a propor a consideração de três dimensões para entender os pais e a criança em situação transcultural (Moro, 2007). São esses três níveis de leitura que vamos estudar agora.

 

O ser, o sentido e o fazer

Por meio do desvio pelo estrangeiro, experimentamos o fato de que o modo como concebemos o bebê, sua mãe, seu pai, os laços que mantém com o mundo e seu próprio ser é múltiplo e está profundamente ligado às representações culturais que nos sustentam. Essas representações ontológicas são berços que preexistem à própria realidade da criança ou da mãe, e são justamente elas que possibilitam a emergência dos seres e das funções que eles assumem num determinado lugar. Como toda representação coletiva, essas imagens que estão nas nossas cabeças e nas nossas expectativas antes mesmo da chegada do bebê real ou da construção da mãe costumam ser estruturantes. No que concerne ao bebê, essas representações ontológicas são um verdadeiro berço que prepara sua chegada e permite pensá-lo e acolhê-lo mesmo sem o conhecer. Ele é acolhido como um ser da categoria “bebê”. A maneira como se pensa um bebê está constituída, no plano individual, como mostraram por exemplo Lebovici e Stoléru (1983), pelo bebê real, imaginário e fantasístico - o bebê tal como o observamos, mas, antes, como o percebemos, o investimos (Lebovici, 1961), o imaginamos, e tal como ele aparece em nossas fantasias construídas na infância com base em materiais transgeracionais. Mas esses ingredientes individuais e familiares engrenam com representações coletivas, as representações ontológicas do bebê e daqueles que o carregam e o cercam.

Em situação de imigração, vão coexistir em torno da mãe várias representações ontológicas do bebê e do que é uma mãe ou um pai: aquela trazida pelos pais, representação transmitida pelas gerações anteriores em que a mãe se inscreve, e a do país de acolhida, que os pais conhecem mais ou menos, mas que impregna o conjunto dos atos realizados para e em torno dos bebês, tanto na maternidade quanto nos locais de cuidados, nos ambulatórios de Proteção Materna e Infantil, nos locais de acolhida e de lazer, nas mídias e, mais tarde, na escola.

Um segundo nível é o do sentido que dou ao que acontece com o bebê no dia a dia, mas sobretudo aos imprevistos ou a suas disfunções. O sentido que dou ao insensato que a doença é (Zempléni, 1983). Entenda-se bem: refiro-me a sentido e não a causa. A causa é da alçada dos técnicos e dos especialistas, mas não esgota o sentido que lhe dá aquele que vive esse acontecimento (Nathan, 1986). Uma criança adoece repetidamente, o médico diz que ela pegou infecções virais, essa é a causa que entendo perfeitamente, mas se estou preocupada com a criança ou se a criança passa mal com essas doenças repetidas, se fica esgotada, deixa de comer ou se mostra triste, então vou procurar outro sentido. Por que não consigo proteger essa criança? Por que essa criança não consegue se defender? Por que é ela que está sempre doente, e não seu irmão ou amiguinho? E essa busca de sentido ganha importância quanto mais o que acontece com a criança é difícil de nomear ou de compreender. Se eu, sua mãe, sinto dificuldades ou até me sinto responsável ou culpada, busco mais ainda um sentido. É o caso do bebê de 8 meses que chora todos os dias ao cair da tarde e que, nesses momentos, é muito difícil de consolar. A mamãe soninke do Mali, que vem de um pequeno vilarejo da região de Khayes, mas mora na França há mais de dez anos, adota primeiro as teorias daqui. Dizem-lhe que não tem nada físico, que se trata de angústias vespertinas clássicas nos bebês e que basta tranquilizá-lo com a presença da mãe. Elas lhe são apresentadas como passageiras e sem causa. Mas o bebê continua a chorar cada dia mais, diz ela. Vai então buscar em sua memória e entre as teorias culturais escutadas quando ela estava no país de origem e encontrará várias teorias etiológicas - as teorias que dão sentido (Zempléni, 1983) -, uma das quais vai lhe permitir dar um verdadeiro sentido ao que acontece àquele bebê, ela que nunca se vira confrontada com aquilo no caso dos outros filhos e filhas também nascidos na França. Ela lembra que, no vilarejo, não se deixava os bebês saírem, mesmo nas costas da mãe, no momento do cair da tarde; dizia-se que os bebês, por serem seres frágeis, podiam ser atacados pelos espíritos que habitam em torno dos humanos, os djinne.2

Essa teoria etiológica cultural permitiu que a mãe desse um sentido, pertinente para ela, para o que acontecia com a criança e, por conseguinte, a partir dali ela encontrou uma maneira de tranquilizar e de proteger o bebê dos djinne que o ameaçavam. Todas as culturas põem à disposição de seus membros teorias etiológicas mutáveis, geralmente colchas de retalhos, teorias que são retrabalhadas por todos os acontecimentos e elementos múltiplos de um determinado contexto. Essas teorias etiológicas são específicas de um momento e de um lugar, são transmitidas e transformadas de uma geração a outra e são universais no sentido de que cada cultura favorece sua emergência. Todas as sociedades constroem essas teorias etiológicas, mas algumas, como a nossa, consideram que estão fazendo ciência e que as outras sociedades, em particular as do sul, se satisfazem com crenças. Claro que a ciência também contribui para construir teorias etiológicas provisórias, da mesma maneira que as tradições, os ritos, os mitos ou as religiões. Em nossas sociedades, também os meios de comunicação contribuem para construir teorias que dão sentido para o que acontece com nossas crianças. Essas teorias etiológicas voltam, em seguida, a passar pela subjetividade dos seres, que lhes agregam seu próprio imaginário e suas fantasias. Esse sentido é, portanto, uma alquimia tanto mais importante de respeitar pelo fato de pertencer à pessoa, de lhe ser própria na medida em que sai de um fundo comum. Esse sentido ajuda a compreender e a tratar.

Ao ser e ao sentido soma-se o fazer. Como se faz quando uma criança chora, sabendo que uma criança vem do além, do mundo dos ancestrais, e que, se chora, talvez seja porque os ancestrais estão descontentes com o modo como é tratada? Eis uma situação em que o ser e o sentido estão explícitos, mas resta o fazer. Qual o estatuto da palavra? Melhor falar ou se calar? Do que é feita a eficácia simbólica ou real de uma palavra ou de um ato? Os bebês compreendem o sentido do que lhes dizemos ou apenas a intenção, o ritmo, a prosódia da fala a eles endereçada? E, consequentemente, é melhor falar com eles ou, ao contrário, pegá-los no colo e estimulá-los? O que é melhor fazer quando um bebê está doente, quando para de comer, quando seu desenvolvimento se detém? As questões do fazer serão muito importantes para a vida cotidiana e também para os cuidados, na medida em que nada é evidente em matéria do fazer. Há mil e uma maneiras de fazer, e essas maneiras são coerentes com a maneira de pensar e de dar sentido ao que acontece com os bebês, por exemplo. É por esse motivo, aliás, que isso é tão importante e que conselhos que queiram impor outra maneira de fazer às mães imigrantes não funcionam, pois estão em contradição com suas maneiras de pensar os bebês. Às vezes, provocam dúvida ou até culpa, sem conseguir modificar o fazer. Primeiro, esse fazer tem de ser reconhecido e valorizado; só em seguida pode haver negociações entre diferentes maneiras de fazer nos dispositivos de acolhida e de cuidados que são propostos a essas famílias de imigrantes (Baubet & Moro, 2009/2013).

 

A dúvida e a falta

Estamos, portanto, diante de uma situação em que as representações de o que são uma mãe e um bebê, um pai, avós ou irmãos e irmãs são múltiplas, assim como as maneiras de dar sentido ao que acontece. A mãe e os pais têm, portanto, à sua disposição pelo menos duas fontes, a daqui e a de lá, que deveriam ter o mesmo estatuto, na medida em que emanam da universalidade psíquica e da história dessa família. Na prática, contudo, o que vem do país de origem costuma ser desvalorizado pelo olhar que a sociedade de acolhida lança sobre aquele país: eles não sabem, são menos desenvolvidos do que nós, ainda não tiveram acesso a tal saber... Isso, de passagem, destrói completamente a ideia de que o que é precioso e estruturante para uma pessoa é o que ela escolheu e faz sentido para ela. Se procuro destruir o que lhe pertence em nome do pretenso “conhecimento”, ponho o outro numa posição de inferioridade e destruo seus próprios recursos e competências, ainda mais considerando que o exílio fragiliza a transmissão e a coerência das teorias e modos de fazer da família, que já não pode se apoiar em ninguém ou em quase ninguém para continuar a manter vivos os mitos, ritos, imagens, pensamentos culturais. A viagem e a distância fragilizam essa transmissão viva e mutável das maneiras de pensar e de fazer em torno do bebê. E os motivos da viagem também. Às vezes, imigrei justamente para criar distância entre minha mãe e mim e tudo o que ela preconiza. Ainda assim, diante da falta de sentido que é uma criança que não se desenvolve como as outras e que não se comunica, pode-se ter a necessidade de se apoiar em outras teorias além daquelas dadas pelo país de origem, sobretudo se elas não funcionam. A dúvida se instala devido à aflição e também se insinua devido à imigração e à distância tomada em relação a suas lógicas culturais iniciais, que são confrontadas com as que percebo neste mundo aqui.

Caso se aceite a ideia de que as crianças devem ser sustentadas, fabricadas, pensadas num vínculo estruturante com os pais, a família e a sociedade, aparece imediatamente a ideia de uma fabricação dos pais, de uma sustentação necessária e de uma representação da parentalidade como assunto não só de sentimentos e desejos, mas também de estrutura. Examinemos a necessidade da prevenção precoce para os bebês e crianças pequenas no tocante à violência e ao trauma, seja qual for a origem dessas crianças e os locais onde nascem.

 

Os bebês não esquecem nada, menos ainda a violência que sofrem

Poderíamos enumerar algumas alegações avulsas veiculadas pelo senso comum, mas também pela literatura científica: as crianças pequenas não se dão conta do que vivem, esquecem facilmente ao crescer, transformam tudo em brincadeira, são pouco sensíveis à dor... E tantos outros argumentos que, em certos períodos, uns e outros se empenham em demonstrar: as crianças pequenas não armazenam os traços mnêmicos, esquecem na medida em que não têm metacognição suficiente, ou então não têm representação suficiente da morte e, portanto, não têm medo da morte - pensariam a morte como algo transitório e não fariam a ligação entre o acontecimento violento e a morte real e brutal. Os trabalhos apoiam-se por vezes em dados parcialmente verdadeiros, como aqueles que concernem à linguagem, à memória ou às representações, processos desenvolvimentais esses que se estruturam com a idade, mas a consequência inferida, por sua vez, não é correta. Os bebês percebem direta e indiretamente os traumas, como mostram vários estudos atuais (Mouchenik, Baubet & Moro, 2012), e sofrem suas consequências na infância. Essas marcas são, aliás, tão fortes que se inscrevem, como todo processo que ocorre numa linha de desenvolvimento, no presente e no futuro desse ser sensível, perceptivo e ativo, mas também no futuro dessa criança, o adolescente e depois o adulto que ela será. Pode-se até levantar a hipótese, mas isso é mais aleatório, de que esse trauma, às vezes essa série de traumas, vai modificar a percepção que a criança tem de seu passado, de sua história, por mais breve que seja. “O bebê é uma pessoa” continua, portanto, sendo uma divisa revolucionária.

A essas consequências diretas do acontecimento traumático vão se somar as consequências indiretas, ou seja, as consequências sobre as crianças dos traumas parentais ou coletivos. Com efeito, as crianças, e em particular as menores, precisam, para viver, sobreviver e crescer, da ajuda dos pais ou substitutos. Além da ajuda do grupo que as sustenta ou deveria fazê-lo, são dependentes dos pais e de todos esses tutores de desenvolvimento (Baubet, Leroch, Bitar & Moro, 2003). Ora, pais traumatizados e um grupo desestruturado por acontecimentos coletivos se esquecem dos filhos ou, pelo menos, estão preocupados demais com suas próprias dores, lutos, perdas ou medos para se preocuparem de forma adequada e eficaz com seus filhos, suas necessidades, suas vulnerabilidades. Os pais têm de sobreviver física e psiquicamente para poderem se ocupar dos filhos e, em particular, dos filhos pequenos, que ainda não sabem pedir ajuda ou, às vezes, não a pedem com a linguagem dos adultos - dizem-no a seu modo, com um balbucio traumático que não é reconhecido como tal. Por exemplo, param de brincar ou de sonhar, mas quem vai perceber isso em tais circunstâncias? Ou, então, repetem de forma traumática a mesma brincadeira, que imita o acontecimento traumático ao qual a criança fica fixada, e essa “falsa brincadeira” tranquiliza os adultos, pais ou cuidadores: “A criança está bem, ela está brincando!” Na verdade, repete o trauma e suas vivências afetivas num círculo vicioso que se automantém. Aos traumas somam-se, então, a falta, o abandono ou a desolação branca, não espetacular, mas nem por isso menos devastadora. É preciso identificar esse nada, esse vazio defensivo que gela os processos de desenvolvimento e hipoteca seu futuro.

Quer seja para os pequeninos ou, em seguida, para os maiores, a violência contra as crianças deixa marcas indeléveis no sistema de crenças delas. Provoca uma dúvida e por vezes uma perda da crença fundamental na vida.

É um trabalho que compete à clínica psiquiátrica infantil precoce, mas há também o trabalho do conjunto da sociedade. A prevenção da violência e do trauma das crianças e das marcas que eles deixam dentro delas compete a todos, pais, professores, educadores, como já propunha Winnicott depois da Segunda Guerra Mundial. Consiste em proteger as crianças e em ajudá-las a reconstituir seu sistema de pensamento, mesmo depois dos mais terríveis acontecimentos. Temos, por exemplo, o projeto de Devereux, que pretendia constituir uma “psicologia da criança, livre de todo estereótipo, isto é, uma verdadeira ciência que nos permita criar crianças capazes de edificar um mundo melhor do que aquele que receberam de nós” (Devereux, 1970, p. 142). Belo projeto coletivo...

Todas essas maneiras de agir com as crianças e adolescentes estão ligadas ao nosso modo de concebê-las, de perceber suas necessidades e de pensar o lugar da violência no seu cotidiano, na sua educação ou cuidados. Nem todo mundo exerce a violência da mesma maneira e no mesmo domínio, mas esse exercício da violência contra o corpo e o ser das crianças deve ser reconhecido para ser combatido. É uma violência inútil e supérflua, embora universal.

Por toda parte as pessoas dizem amar as crianças... Então, não as agridamos! Por que não ter como objetivo primeiro, individual e coletivo, que cada criança seja feliz onde estiver? Carecemos sem dúvida da capacidade de utopia e de sonho. Pena, pois esse seria um sonho realizável.

Assim, para construir um mundo melhor, é importante prevenir essa violência fundamental contra as crianças, venham de onde vierem.

 

Notas

1 NT: serviço público domiciliar e ambulatorial de prevenção e atendimento pré e pós-natal, transdisciplinar.

2 Djinne é o plural de djinna, termo que designa os espíritos no mundo muçulmano.

 

Referências

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Correspondência:
Marie Rose Moro
www.clinique-transculturelle.org
www.maisondesolenn.fr
www.revuelautre.com
www.marierosemoro.fr

Recebido em 05.12.2016
Aceito em 19.12.2016

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