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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

RESENHAS

 

Subjetivación discontinua y psicoanálisis incertidumbre y certezas

 

 

Susana Muszkat

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Autora: Janine Puget
Editora: Lugar Editorial, Buenos Aires, 2015, 175 p.
Resenhado por: Susana Muszkat

 

 

“Es imprescindible despertar las ganas de vivir, la curiosidad y la posibilidad de comprometerse con el mundo, evitando el conformismo y las adaptaciones forzadas” (p. 7). Dizendo de outra forma, novas formas de viver nos obrigam a novos questionamentos. Não podemos comprometer a teoria “ajustando-a” às vivências, nem comprometer o novo e o inédito das experiências vividas encaixando-as em teorias conhecidas pelo simples fato de que nos sejam conhecidas.

Logo no prefácio desse que é o mais recente livro de Janine Puget lemos essa frase, que expressa o modo permanentemente não conformista de pensar e de estar no mundo, marca registrada dessa psicanalista e pensadora franco-argentina.

Nessa obra, movida por um mundo em constante transformação, Janine descreve suas inquietações quanto a pensar a psicanálise como um corpo teórico vivo. Segundo ela, “as certezas permanentes se transformam em impedimento para ir conhecendo os outros e ir habitando os diversos espaços que a vida oferece” (p. 9).

Janine é uma mulher de contrastes: quem a olha pela primeira vez vê uma senhora. Mas é só começar a conversar com ela, ouvi-la proferir alguma conferência, ler algum de seus textos ou discutir casos clínicos, para logo perceber que se trata de uma mente ágil, inovadora, inquieta, sempre questionadora. Essa é uma senhora que nada tem de convencional ou tradicional, nem na trajetória pessoal e muito menos na profissional.

Desenvolveu seu trabalho em duas frentes: como psicanalista na Associação Psicanalítica Argentina (APA) e, posteriormente, na Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA), onde chegou a analista didata, e no trabalho com grupos, participando da criação da Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupo, em 1954, com colegas como: Pichón-Rivière, Marie Langer, Emilio Rodrigué e tantos outros. Além disso, participou da fundação da Associação de Epistemologia e Psicologia, bem como do Departamento de Casal na Associação de Grupo; foi codiretora do Departamento de Família e Casal na APdeBA e codiretora e fundadora do Mestrado de Família e Casal do Instituto Universitário de Saúde Mental (IUSAM) - situações essas que a levaram para além dos muros da psicanálise tradicional.

Rompendo paradigmas psicanalíticos, trabalhou em diferentes formatos, ocupando-se e incluindo aqueles que não tinham acesso aos tradicionais enquadres psicanalíticos vigentes institucionalmente, o que fez dela uma verdadeira analista extramuros.

Janine tem contribuições inovadoras tanto na esfera social, com suas formulações sobre o campo da violência social -a esse respeito, escreveu junto com René Kaës o importante livro Violencia de Estado y psicoanálisis -, quanto em suas teorizações no campo da psicanálise.

Por todo seu relevante trabalho, foi-lhe outorgado o destacado Prêmio Sigourney em 2011.

Nesse último livro, a autora retoma os primórdios de sua profícua trajetória na elaboração da teoria vincular, desenvolvida ao longo de mais de trinta anos com seu grande parceiro intelectual, Isidoro Berenstein. Refere alguns psicanalistas argentinos, como Pichón-Rivière, Bleger e os Baranger, pela coragem de questionar as teorias clássicas e “incluir o social em um esquema conceitual, referencial e operativo no campo da psicologia social” (p. 11). Contudo, é categórica ao sublinhar a diferença entre a teorização desenvolvida pelos autores citados e a teoria vincular elaborada por ela e Berenstein. Enquanto aqueles trabalham com a noção de representação de objeto, Puget e Berenstein vão desenvolver sua compreensão e sua técnica incluindo na relação vincular a noção de presentação e os efeitos da presença na cena terapêutica. Nas palavras da autora:

Confundia-se representação e presentação [itálicos meus], ou seja, o que implica falar do representante de um ausente e o que implica falar entre dois ou mais presentes. Não se reconheciam como diferentes a relação de objeto e o vínculo, e o mesmo acontecia com outros termos que constituem a metapsicologia freudiana. (p. 11)

Essa maneira de pensar não teve o intuito de substituir uma teoria por outra, mas sim complexizá-la, uma vez que Berenstein e Puget identificavam na clínica a necessidade de ampliar referenciais e criar conceitos que dessem conta dos fenômenos próprios da clínica de casal e família em suas especificidades, diferentes daquelas do trabalho individual. A psicanálise tradicional trazia limitações para pensar análises em outros contextos, ou dispositivos como prefere a autora, adotando terminologia foucaultiana.

Parece-me apropriado afirmar que ambos os autores realizam um corte epistemológico, desenvolvendo uma nova metapsicologia para entender a lógica de lo vincular, conceito sem tradução ou correspondente justo em outros idiomas, como Janine gosta de frisar. Justificam que a lógica psíquica do singular (uno) não é a mesma que se produz no entre-dois da relação vincular, o que denominam lo dos.

O pensar entre dois exige, como diz a autora, que seja possível alojar um outro, a partir de sua alteridade, dentro de si. Ou seja, é condição da relação entre dois sujeitos que algo do outro, de desconhecido, seja tolerado. Insere-se, assim, no campo do familiar, a vivência do in-familiar (p. 47). Esclarece:

Pensar entre dois ou mais nasce do des-encontro, da não coincidência e da impossibilidade de internalizar o outro. A identificação perde seu lugar privilegiado, e atua a imposição, capacidade de destituir o instituído e de desconstruir convicções [itálicos meus], de aceitar jogar com a alteridade [ajenidad] do outro. (p. 48)

Vale ressaltar a pluralidade e a consequente riqueza das referências de Janine em seu trabalho. Nele, além de psicanalistas clássicos consagrados (como Freud, Klein, Winnicott, Meltzer, Bion, Lacan) e de outros mais atuais (como Kaës, Julio Moreno, Marie Langer, Greenberg, Amati, Bleger, Pichón-Rivière, Bianchedi e Bianchedi), encontramos ainda uma extensa gama de filósofos contemporâneos com quem a autora dialoga. Só para listar alguns: Agamben, Arendt, Badiou, Bauman, Benjamin, Habermas, Lévinas, Blanchot. Suas ideias contribuem para as expansões teóricas da autora, a fim de pensar o sujeito em suas relações no mundo, a partir de uma leitura da descontinuidade e de uma lógica não binária.

Propõe uma conversa interdisciplinar em que “a descontinuidade e os problemas que esta suscita põem em relevo a convivência entre lógicas heterólogas” e em que “as pontes permitem o trânsito sem anular as diferenças” (p. 25).

O conceito de descontinuidade, que a autora encontra em Foucault, Deleuze, Guattari, Badiou e Agamben, dá conta das permanentes rupturas imprevisíveis no mundo contemporâneo e na vida de maneira geral. Assim também, no mundo subjetivo e dos relacionamentos, a autora encontra nesse conceito uma maneira de falar da lógica vincular e do espaço entre dois. A descontinuidade como aquilo que é da ordem do imprevisível, inesperado ou inexplicável, não incluído dentro de um tipo de raciocínio lógico e linear. A descontinuidade não é um tema de fato novo para a autora, e fazendo um certo trocadilho pode-se dizer que há um nexo de continuidade em sua trajetória como pensadora e psicanalista, já que vemos presentes, desde seus primeiros trabalhos, inquietações relativas ao “estado de incerteza [incertidumbre], subjetividade social, violência social e política e responsabilidade e suas aplicações na prática” (p. 17). São esses, entre outros, os temas desenvolvidos em seu percurso solo nessa obra.

O interessantíssimo capítulo 6 é inteiramente dedicado ao tema das múltiplas formas de violência no mundo contemporâneo, especialmente as políticas e sociais. Discute a maneira como isso nos atravessa como sujeitos, como determina subjetividades e de que maneira se insere nas conversas científicas e em nossos consultórios psicanalíticos.

Percorre as distintas manifestações de violência com as quais nos deparamos - a social, a política, da globalização, das ditaduras, da corrupção, das condições de trabalho, dos genocídios, da crueldade -, posicionando-se em sua função de psicanalista vincular ao esclarecer que sua intenção é diferenciar nelas aquilo que corresponde de maneira mais específica à dinâmica vincular e, “dessa maneira, incorporar a ideia de que um ato cruel afeta a todos os membros de um vínculo” (p. 119).

Desenvolve, ainda, ao longo do capítulo 9, o conceito-chave, muito caro à autora, de testemunho (testigo) (p. 17), asseverando ser este um dos componentes da função analítica (p. 159). Aborda a importância dessa função em suas múltiplas possibilidades, como ser o olho que confirma e compartilha experiências do paciente impedidas de entrar na circulação ativa dos pensamentos, ou ajudar a transformar testemunhas impotentes ou vitimizadas em sujeitos capazes de criar novas histórias a partir de seus testemunhos, eventualmente passando de testemunhas instaladas na dor para uma posição mais ativa, que possibilite a transformação da dor em um tecer de novas histórias (p. 159).

No entanto, há que se diferenciar, como ela bem alerta, o “dar testemunho” de algo que é um sintoma próprio da consulta vincular, que ela chama de denúncia. A denúncia é uma variante da queixa, da reclamação, e instala uma espécie de clima jurídico na situação analítica vincular. É preciso modificar esse tipo de lógica acusatória e binária de certos e errados para que se instale a possibilidade de reflexão transformadora. Quando o analista consegue esse tipo de transformação, interrompe também a “circulação da violência enlouquecedora e asfixiante” numa relação vincular (p. 167).

Há em sua obra inúmeros conceitos que estamos habituados a manejar. No entanto, desdobra-os de modo a ampliar a gama de sentidos específicos, ou então para descrever detalhes de experiências de sofrimento psíquico intenso, auxiliando-nos em nosso repertório simbólico. Apresenta, por exemplo, um pensar utilitário, necessário ou ativo, particularmente importante em situações de desvalimento ou perplexidade. São pensamentos práticos e muito usados por crianças em situação de rua, ou ainda, como descrito por Silvia Amati, para relatar situações de prisioneiros de campos de concentração, em que um pensamento secreto, utilitário, tornava-se condição de sobrevivência, ao inventar uma relação com “um objeto a ser salvo” por meio da interiorização desse outro que seria salvo (p. 50).

Distingue também três categorias da impossibilidade do conhecer: (1) aquilo que é inconsciente, (2) o que é proibido, e (3) o que é do âmbito da diferença radical do outro, em que só o que temos são os efeitos de zonas acessadas, mas que em si mesmas são inacessíveis.

Outros exemplos desse novo vocabulário vincular, com correspondentes no vocabulário psicanalítico que conhecemos, são as noções de campo interferencial como distinto do campo transferenciai, próprio e a-próprio, presença e impresença, representação e presentação.

Alguns desses termos são oriundos de outras disciplinas, “reciclados” para o contexto da análise vincular, enriquecendo nosso universo linguístico e nossa capacidade de encontrarmos sentidos mais precisos para falarmos das experiências humanas nas relações interpessoais.

O livro de Janine é uma viagem que requer que o leiamos com vagar, indo e voltando, relendo partes, para que possamos “ir conhecendo” seu modo de pensar. Esse ir conhecendo é, segundo frisa a autora, próprio do processo de conhecimento quando este não se confunde com certezas estabelecidas (p. 52).

Mas essa não é uma leitura impune, uma vez que desperta no leitor movimentos de deslocamento a um só tempo perturbadores e instigantes. Tampouco é simples a tarefa de resenhar um livro em que temos a sensação de que, em cada página, a cada novo parágrafo, é preciso parar a fim de refletir à luz das ideias originais e criativas de Janine, que nos desafiam a questionar nossas certezas.

Janine Puget é uma psicanalista, uma pensadora, criadora de novas teorias, com uma mente sempre aberta ao inédito de nosso mundo e uma humanista acima de tudo.

 

 

Correspondência:
Susana Muszkat
Rua Jericó, 255/68
05435-040 São Paulo, SP
sumuszkat@gmail.com

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