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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

 

RESENHAS

 

A paciente, a analista e o Dr. Green uma aventura psicanalítica

 

 

Mirian Malzyner

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Autoras: Silvia Lobo e Cris Bassi
Editora: Zagodoni, São Paulo, 2016, 172 p.
Resenhado por: Mirian Malzyner

 

 

Cris:

acabei pedindo-lhe que escrevéssemos a história da minha análise. E assim foi que, aos 51 anos, vivi um raro privilégio. Nove anos após o término de 18 anos de análise; 27 anos depois do seu início (são muitos anos!), iniciei o registro de meu tratamento, na companhia de minha, agora, ex-analista. (p. 42)

É bastante comum e faz parte da nossa formação de psicanalistas trocarmos ideias com nossos colegas em seminários, supervisões e encontros clínicos diversos, sobre nossas vivências em consultório. Essas trocas acontecem em situações resguardadas por uma ética, que protege e preserva a identidade dos pacientes.

Os relatos de pacientes sobre suas experiências em análise são pouco frequentes. Lembro-me de dois psicanalistas que relataram suas análises em escritos que são fonte de informação valiosa: Margaret Little (1992) contou sua análise com Winnicott (e fez também um breve relato de duas experiências anteriores, consideradas malsucedidas, com dois analistas: um junguiano, Mr. X, e Ella Sharpe) no livro Ansiedades psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott; Guntrip (1966), por sua vez, apresentou sua experiência de análise com Fairbairn e Winnicott.

São relatos que enriquecem a história da psicanálise e nos ajudam a integrar os escritos clínicos ou teóricos desses importantes analistas com a possibilidade de imaginá-los atuando na clínica. A intimidade da sala de análise gera uma natural curiosidade.

O livro A paciente, a analista e o Dr. Green: uma aventura psicanalítica é bastante original e ousado em sua proposta. Paciente e analista encontram-se tempos depois do término (interrupção?) de uma longa análise e, em meio a diálogos afetivos e intensos, decidem escrever a aventura que viveram juntas. Uma rara oportunidade de um resgate reflexivo com repercussões terapêuticas para ambas. Para o leitor, uma janela aberta para conhecer e explorar as sutilezas de uma história psicanalítica.

Silvia - a analista - relata o desafio que essa paciente representava e como, intuitivamente, colocava-se disponível para atender as necessidades mais básicas da paciente, com questões importantes de falhas na estruturação do si mesmo: “O trabalho com ela exigia um manejo distinto do preconizado pela técnica psicanalítica clássica, por mim muito utilizada em outros atendimentos” (p. 11).

Silvia comenta que muitas vezes vivia sua conduta no manejo dessa análise como transgressora e era invadida por um sentimento de “clandestinidade”. Curioso, pois, em outro momento, afirma:

Há anos aprendera, no exercício da psicanálise, a importância para certos pacientes de poder viver a indiscriminação, a indiferenciação em relação ao outro de quem dependem e confiam. Essa ilusão sendo vista como o primeiro passo da diferenciação da autonomia. (p. 95)

Percebe-se aqui a analista bem embasada conceitualmente e afinada com a importância da área de ilusão na constituição do self.

Mas sabemos que o contínuo processo do vir a ser psicanalista é permeado de dúvidas e incertezas. E ainda, nas palavras de Silvia, “trajeto necessário e profundamente doloroso da autorização analítica para ser particular, pessoal, própria e, por conseguinte, limitada, à deriva, solitária, em situação de permanente risco” (p. 111).

Cris faz parte de um grupo de pacientes que, por necessidade vital, vão em busca daquilo a que sentem ter direito e que faltou em suas vidas. São pacientes que não se contentam com nada que não seja profundamente verdadeiro e autêntico. Estão sempre prontos a denunciar, de forma implacável, qualquer fala estereotipada ou desvinculada de afeto genuíno. Em sua tenacidade para encontrar o que precisam e em sua disponibilidade em entregar-se ao processo, são nossos melhores professores de psicanálise. E Silvia corresponde à demanda, deixando-se criar pela paciente.

A supervisão realizada em seminário clínico na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, no ano de 1994, cria o terceiro personagem do livro - o Dr. Green. A colocação feita durante a supervisão: “Silvia a raison!”status de validade ao trabalho da analista e reforça as bases de confiança de um vínculo intenso que já caminhava e evoluía. A analista guarda essa supervisão na memória afetiva, como uma boa experiência, em que se sente acolhida e compreendida. Essa memória afetiva permanece como baliza e referência por muitos anos e autoriza a ousadia desse novo capítulo da dupla - escrever a história da análise. Afinal, o Dr. Green já havia previsto que essa história iria ser contada.

Cris: “É ingenuidade acreditar na memória como forma de recuperar o passado enquanto expressão de verdade. [...] Foi preciso conformar-me com estilhaços de um todo inacessível” (pp. 15-16).

Silvia: “qualquer escrita dessa história a dois só poderia ser ziguezagueada, construída na dessincronia, 'sem plano de voo'” (p. 7o).

Psicanálise e literatura sempre foram essencialmente intrincadas. Não por acaso, Freud recebeu o Prêmio Goethe de Literatura. A aventura aqui contada guarda essa tradição e, em meu entender, a literatura aparece como o quarto personagem. Para a paciente, formada em letras, a leitura sempre foi recurso importante e fonte de nutrição para seguir sua trajetória em busca de crescimento, de autoconhecimento e, acima de tudo, de sentir-se viva.

Os personagens da história pessoal se apresentam: a mãe, o pai, o namorado, a literatura, os gatos, assim como os personagens da história analítica, o universo do consultório, o setting, a ilusão compartilhada, o divã, a frequência e duração das sessões. Os personagens do fantasioso e rico mundo psíquico: as baratas, o lobisomem, os textos, os filmes. Memórias resgatadas das pérolas que compõem o colar, a história de uma análise, e o fio de sentidos que as unem.

Cris: “Parece-me que a análise, incluindo esse livro, foi o trabalho incessante de minha analista para ajudar-me a construir uma base que me permita ir ao encontro da realidade, para o qual eu, de fato, era desaparelhada” (p. 47).

Como um álbum de histórias de família, além da história contada pelos relatos individuais das duas protagonistas, o livro traz relíquias, tesouros guardados com carinho e registrados em fotos: desenhos da paciente, presentes, bordados, originais das cartas enviadas para a analista, cartas ao Dr. Green, registros das transcrições em francês do material clínico apresentado em supervisão com anotações feitas à mão pelo próprio Dr. Green. E ainda uma reprodução das páginas de um livro de contos de Clarice Lispector, trazida pela paciente para sua analista com o conto ilustrado “O mistério do coelho pensante”.

Esse conto faz parte da sessão que Silvia levou para a supervisão com o Dr. Green, e é muito bonita a forma como ele utiliza o conto para mostrar o significado de encontrar alguém que conte a nossa história.

No prefácio, Henrique Honigsztejn coloca muito apropriadamente: “Este livro é um desbravador de territórios, algo a se acrescentar aos empenhos de Ferenczi, Ballint, Winnicott, Kohut, Bion, Klein para que a psicanálise possa ser terapêutica, possa curar” (p. 9). Com a leitura, podemos adentrar na intimidade da história da dupla, que quando é verdadeira favorece que uma psicanálise realmente aconteça. De certa forma, é a história de todas as análises: a dupla analítica, com dedicação, paciência e verdade, escrevendo a história de uma vida a quatro mãos, resguardados pela atmosfera sigilosa de nossos consultórios.

Nos dois relatos, paciente e analista tocam na questão da ética. Existe um acordo em expor aquilo que costuma ficar no anonimato, em nome de algo maior, assim como confiança no que em algum momento é definido como um compromisso solene com a psicanálise.

Publicar essa experiência é uma generosidade e um convite. Acredito que será de muita utilidade aos leitores curiosos em conhecer um pouco do que nós psicanalistas fazemos, aos profissionais que iniciam seu percurso nessa árdua e rica atividade e também para aqueles que já têm tempo de percurso e uma identidade psicanalítica, mas que certamente vão usufruir dessa escrita agradável, comovente, sincera e profundamente humana.

 

Referências

Guntrip, H. (1966). My experience of analysis with Fairbairn and Winnicott. The International Journal of Psychoanalysis, 77,739-754.         [ Links ]

Little, M. (1992). Ansiedades psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott (M. C. de B. Fernandes, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Mirian Malzyner
Rua Purpurina, 155/67
05435-030 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3815-8115 / 99103-2022 / 3831-2812
mimalzyner@gmail.com

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