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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

RESENHAS

 

Domesticando pensamentos selvagens

 

 

Martha Prada e Silva

Psicanalista, membro efetivo e analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas GEPCampinas e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Autor: W. R. Bion
Tradutor: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Editora: Karnac, Londres, 2015, 64 p.

 

 

Domesticando pensamentos selvagens, que a editora Karnac lança em tradução brasileira, reúne dois artigos de Bion cuja publicação inglesa é de 1997: “A Grade” (1963) é o primeiro deles; o segundo, sem título, é o resultado da edição da transcrição de gravações datadas de 28 e 29 de maio de 1977, efetuadas por Bion em descontração doméstica, como uma forma de se preparar para a rodada de palestras e seminários que faria a seguir, em julho, em Roma.

O volume inclui um prefácio de cunho amoroso e reflexivo escrito por Parthenope Bion Talamo. A sua intimidade com a visão de Bion e a originalidade das relações que livremente tece entre esses artigos e os pensamentos de fundo da teoria bioniana desenham um traçado que ras-treia e destaca a recorrência deles em momentos variados do trajeto de Bion. Por si só, o prefácio constitui obra de leitura valiosa, como uma elaborada peça de comentário sobre os temas que vão se desenvolver nos artigos. Além do prefácio, o volume traz uma introdução aos artigos redigida por Francesca Bion. Na introdução de “A Grade”, tomamos conhecimento da carreira aventurosa que esse artigo percorreu antes de chegar ao seu destino, desaparecido que estava dos arquivos e da memória de Francesca. Seu resgate se deve à doutora Rosa Beatriz, do Rio de Janeiro, que lhe enviou uma cópia que, por sua vez, recebera do doutor Hans Thorner, em 1971. A introdução oferece um apanhado de opiniões sobre a Grade expressas em momentos variados por Bion, com a lucidez crítica que lhe era habitual e também com o entusiasmo pelas possibilidades do instrumento que concebera. Traz, além disso, uma enumeração dos usos que, no entender dele, poder-se-ia fazer da Grade. Prefácio e introdução juntos afinam a sensibilidade do leitor para que proceda à sua leitura num clima de proximidade com a pessoa de Bion. De fato, a leitura dos artigos nos abre a possibilidade de um vislumbre dos bastidores da construção de seu pensamento, o que é evidente no segundo artigo pelo tom coloquial com que, em conversa com um público imaginário, ele se entrega ao correr de suas ideias, mas é igualmente verdadeiro para o artigo “A Grade”, que sabemos nunca publicado por ele na forma que agora se apresenta a nós.

Bion apresentou essa primeira versão de “A Grade” numa reunião científica da Sociedade Britânica de Psicanálise em 2 de outubro de 1963, mas o texto permaneceu inédito em inglês até 1997. Em 1971, Bion produziu outra versão de “A Grade”, publicada ainda em seu tempo de vida, em 1977. A iniciativa da publicação do artigo de 1963 abre ao leitor interessado a possibilidade de contar com duas versões da concepção de um instrumento de trabalho extremamente original, criado com o intuito de introduzir um método que ao autor pareceu “útil à reflexão dos problemas surgidos durante o curso da prática psicanalítica” (p. 3). Embora não diferindo quanto aos aspectos formais, cada uma das versões da Grade tem um enfoque próprio e resulta única no desenvolvimento das ideias centrais, seja pela maneira como insere e utiliza trechos vindos da clínica, seja na diversidade do recurso a fontes variadas do conhecimento para construir considerações no vértice psicanalítico. No artigo de 1963, contando com uma teoria do pensamento desenvolvida ao ponto de sua apresentação em Aprendendo com a experiência, ele está interessado em trazer a público um instrumento para a classificação dos enunciados que se apresentam numa sessão analítica, enunciados do analisando ou do analista. Parthenope observa que o artigo traz características de fundo do pensamento de Bion e sugere:

A mais importante delas surge quando ele torna explícito o fato de que aquilo que ele diz sobre o desenvolvimento dos pensamentos dos pacientes, ou do uso que deles fazem, aplica-se também ao analista, o qual, na medida em que é um ser humano, está sujeito aos caprichos e limitações da capacidade humana para pensar e se comunicar. (p. VIII)

Tendo conceituado a experiência emocional como central ao desenvolvimento de pensamentos, a observação dos movimentos emocionais da sessão torna-se o foco da atenção do analista, e um instrumento que ajude a aumentar a acuidade com que observa esses movimentos passa a ser de grande interesse. Nesse intuito, Bion concebe a Grade, em que, em cada ponto de cruzamento de seus dois eixos, o da gênese e o do uso de pensamentos, surgem categorias para a classificação da contribuição de cada um dos componentes do par analítico. Essa primeira versão da Grade traz a marca de um empenho duplo: por um lado, cabe-lhe transmitir a própria essência da Grade como um instrumento novo que amplia o espaço de observação do analista quanto ao que se passou na sessão, na medida em que permite abrigar os vários tipos de enunciado dos parceiros analíticos, o estágio de evolução como pensamento em que se encontram e os múltiplos usos que deles se possa fazer a cada momento da sessão; por outro lado, ele precisa desde logo afastar-se do escolho representado pela pregnância das teorias fortes na mente dos analistas, o que facilmente poderia reduzir, ou mesmo impedir, a percepção da abordagem que ele começa a propor.

A Grade nada acrescenta ou retira às noções estabelecidas: sua novidade está no aumento do escopo da observação. O artigo vai repetir seguidamente o movimento de lançar mão de formulações consagradas no campo da psicanálise, ou que provêm de outros campos do saber, ao mesmo tempo que lhes desmancha a fixidez de seu significado específico para adequá-las à função de instrumentos de observação de objetos psicanalíticos, quais sejam, produções da realidade psíquica imaterial que podem ser apreendidas entre duas pessoas que se ponham em situação de análise. A Grade desmancha a eventual rigidez de que possa estar atacada uma teoria psica-nalítica ao classificá-la e indicar seu uso como uma preconcepção (fileira D). Afirmação de Bion, com ênfase na palavra não: “O objetivo da Grade é ajudar o analista a desenvolver uma preconcepção que não seja diretamente psicanalítica, de modo que as observações feitas não se prestem a reproduzir uma teoria psicanalítica” (p. 12). A visão dos fenômenos mentais como transformações a partir de uma matriz incognoscível em si mesma é o próprio sustentáculo da construção da Grade, e nessa versão do artigo constatamos que Bion já dispõe dos conceitos de transformação e invariância e introduz o exemplo do campo de papoulas, que retomará como ponto de partida em Transformações (1965).

Nessa mesma linha, e agora estendendo o comentário ao conjunto do livro, temos ainda no artigo “A Grade” uma discussão detalhada e exemplificada sobre raciocínio circular e a importância do diâmetro do círculo, que, em minhas leituras de Bion, eu não havia encontrado com igual clareza em outras passagens de sua obra. “A Grade” incorpora um exemplo clínico à discussão, o que muito nos auxilia a acompanhar seu pensamento, e o segundo artigo do livro traz a oportunidade de trilharmos com Bion a longa trajetória percorrida por seus pensamentos ao entregar-se ao que denomina de imaginação especulativa. Comprovamos que, de fato, o que importa não é o veredito de certo ou errado atribuído ao enunciado inicial, mas sim que se lhe permita desenvolvimento livre; importa que o círculo percorrido tenha diâmetro extenso, o que significa convivência tolerante com incertezas e indefinições em trajetórias que se revelam mais longas, ou menos longas, conforme o potencial de capacidade negativa com que a mente suporta o enunciado em um dado momento. Ele introduz um ponto relevante ao destacar a necessidade do uso conjunto de imaginação especulativa e raciocínio especulativo, esse último ligado a uma disciplina necessária para que a mente se mantenha em estado de trabalho: “Portanto, ao mesmo tempo que afirmo a extrema importância de exercitar sua imaginação, de dar-lhe livre curso, de dar-lhe a chance de florescer, é preciso também mantê-la sob algum tipo de disciplina” (p. 40). Indispensável disciplina de afastamento de memórias e desejos, alimentos que são de arroubos imaginativos, que impedem o alcance do voo da imaginação ao impor-lhe um final demasiadamente curto na satisfação de desejos do analista.

A manutenção dos dois fatores conjugados é o sustentáculo da formidável expansão criativa que temos a oportunidade de presenciar. A trajetória em arco amplo se desenrola e cria lugar para o acolhimento de pensamentos selvagens e sua possível domesticação. As conjecturas se expandem e contemplam a possibilidade de estados mentais arcaicos se revelando em padrões primitivos de comportamento numa mente desenvolvida. Vão mais além e permitem que se pense na problemática sobrevivência de alguma centelha de sabedoria soterrada debaixo de camadas de insensi-bilização à vida mental. Continuam seu curso e adiantam a hipótese da existência de estados inacessíveis da mente jamais tornados conscientes. O interesse desse exercício de disciplina imaginativa do pensamento, Bion nos diz, está em que ele permite “assinalar o tipo de área que nos ocupa em psicanálise” (p. 31).

Parthenope considera, com muito acerto a meu ver, que esses registros gravados provavelmente refletem “a maior confiança de Bion na validade da psicanálise como ele a praticava e, consequentemente, sua própria autoconfiança aumentada” (p. XI). Acredito que sua consideração chama nossa atenção para o fator confiança, a se agregar aos outros dois já mencionados, imaginação e disciplina, contribuindo para que Bion sustente um diâmetro tão longo em seus pensamentos. No conjunto, a leitura dessa obra, pequena em número de páginas, nos põe a sonhar admirados com a imensidão abarcada pela mente científica de um analista excepcional.

Para finalizar, preciso acrescentar que a excelência da tradução de Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho é peça fundamental para a compreensão desse texto complexo. Junqueira Filho usou o amplo conhecimento que tem de psicanálise e das línguas envolvidas, e a isso aliou liberdade criativa e disciplina, ele também, nas soluções que foi dando à empreita sabidamente dificílima de traduzir. O resultado se atesta pelo prazer da leitura.

 

 

Correspondência:
Martha Prada e Silva
Rua Eduardo Lane, 36/12
13073-002 Campinas, SP
Tel.: (19) 3212-3684
mpradas2009@hotmail.com

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