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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

RESENHAS

 

O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IPUSP

Correspondência

 

 

Autor: Roosevelt M. S. Cassorla
Editora: Karnac, Londres, 2015; Blucher, São Paulo, 2016. 216 p.
Resenhado por: Ana Clara Duarte Gavião Ana

 

 

A editora Karnac convidou Roosevelt Cassorla para que reapresentasse, em livro, suas investigações mais recentes publicadas em revistas internacionais. O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment reúne ampliações do pensamento psicanalítico, ao abordar, de forma criativa, situações complexas observadas na clínica, ao mesmo tempo que formula conceitos originais que vêm sendo crescentemente adotados na literatura científica.

Cassorla é um autor compromissado com a natureza investigativa do método da psicanálise. Nos primeiros capítulos, “Campo analítico e sonhos-a-dois” e “Sonhando sonhos não sonhados”, ele discute as vicissitudes das transformações que envolvem relações duais e triangulares em sua ligação com os processos de simbolização, desenvolvendo suas concepções sobre sonhos-a-dois, não-sonhos e não-sonhos-a-dois.

No capítulo “O teatro dos sonhos”, são apresentadas suas reflexões sobre o campo analítico através de modelos representativos, como o cinema, a literatura e o teatro, sendo esse último dissecado para o estudo de áreas com deficit de simbolização, justamente por implicar cenas “ao vivo” que permitem significações no aqui e agora do encontro entre analista e analisando.

O modelo do teatro e sua articulação à literatura psicanalítica convergem para a temática do enactment, termo etimológicamente associado a acting, encenação, dramatização, etc. Entretanto, conotações depreciativas e certa imprecisão semântica que caracterizaram a difusão inicial do conceito justificam o aprofundamento realizado pelo autor.

Nos capítulos “Não-sonho e enactment”, “Simbolizando traumas: o enactment agudo” e “Do baluarte ao enactment: modelos intersubjetivos”, o conceito enactment é articulado a concepções clássicas e atuais acerca dos sonhos, da dificuldade de sonhar e da intersubjetividade. Os desenvolvimentos técnicos propostos são favorecidos pela teoria do pensar de Bion. Experiências clínicas descritas com peculiar vivacidade e a partir de apreensão sensível aproximam o leitor das dinâmicas desconcertantes e transformadoras generosamente compartilhadas pelo autor, cuja disponibilidade para olhar o que se passa na mente do analista explicita a qualidade artística e científica da curiosidade a respeito de si mesmo. A autopercepção do analista é reconhecida como um benéfico recurso técnico: “O trabalho analítico, mais ainda com pacientes graves, estimula o autoconhecimento do analista. Ele é levado a entrar em contato com áreas traumatizadas próprias. Um processo analítico promove desenvolvimento em ambos os membros da dupla” (p. 19).

Inicialmente, o termo enactment aparece entre autores de língua inglesa em sua acepção coloquial, referindo externalizações de aspectos do funcionamento mental do paciente. Cassorla adota um sentido mais específico, assinalando externalizações de ambos os membros da dupla, não apenas em atos, mas também em emoções. A diferença do acting out é ressaltada: neste o analista observa sem enredar-se, enquanto que no enactment o enredamento é mútuo e inconsciente.

Em síntese, o enactment conceitual de Cassorla refere-se ao processo intersubjetivo de não-sonhos-a-dois. Correlações com compulsão à repetição, formação de compromisso e elementos-beta em busca de pensadores elucidam a dimensão interpessoal dessas forças estagnantes, em que a “colocação em cena patológica da dupla” - o enactment crônico - bloqueia a capacidade de sonhar e, simultaneamente, demanda a sua procura. Em função da massividade das identificações projetivas, o enactment crônico ocorre principalmente em análises de pacientes psicóticos e borderline, embora a crescente visibilidade da mente primitiva já permita reconhecê-lo, ainda que sutilmente, em qualquer análise.

A relativização da noção de patologia, característica do pensamento psicanalítico, faz parte das formulações de Cassorla, mais precisamente na distinção que estabelece entre enactments crônicos e agudos.

O enactment concebido como interação simbiótica encenando traumas precoces não simbolizados é considerado crônico devido à repetição inconsciente e prolongada, durante a qual o vínculo analítico pode se fortalecer aos poucos, até a individuação tornar-se tolerável, fazendo parte da “história natural do processo analítico”.

A observação de enactments crônicos rompidos abruptamente leva o autor a descrever e conceituar o enactment agudo como intensificação de identificações projetivas massivas cruzadas, gerando um impasse constrangedor, com a pessoa “real” do analista inevitavelmente exposta. Essa forma abrupta corresponde à concepção de enactment mais frequentemente adotada na literatura. O autor vai além ao constatar, em vasto material clínico, que se trata de um processo em que a agudização do enactment crônico revela, paradoxalmente, que ele foi desfeito. O autor considera o enactment agudo como a transformação da situação traumática em pensamento, ocorrendo ao vivo no campo analítico, sendo constituído por um mix de não-sonhos descarregados ao mesmo tempo que estão sendo sonhados. Assim, a relação simbiótica é desfeita e a função analítica recuperada.

Torna-se evidente o aspecto produtivo dos enactments e certo esvaziamento do viés patológico, com associações à ansiedade-sinal de Freud e à mudança catastrófica de Bion. Vemos que o paradoxo descarga/comunicação, característico das identificações projetivas, é estendido ao campo intersubjetivo do enactment, realçando sua potencialidade transformadora.

Podemos dizer que o “terreno comum” da contratransferência na literatura contemporânea, destacado por Gabbard, tem sido fertilizado pelas ideias de Cassorla, por estarem enraizadas na percepção interna dos derivados contratransferenciais desvelados pelos enactments.

Tais contribuições “colocam em cena” a pessoa do analista, humanizada e articulada teoricamente. Com transparência clínica, o autor insere, metodologicamente, seus próprios impasses e experiências emocionais no estudo do enactment, aprofundando a abordagem sobre a indução mútua, a princípio desprovida de pensabilidade.

O sonhar como pré-requisito do pensar conduz Cassorla à concepção do “teatro analítico” como sonho-a-dois. O trabalho de ressonhar em outras vertentes os sonhos do paciente permite ao analista transformar defesas que circulam pela rede simbólica, entrando em cena suas características pessoais, únicas. Ao comunicar seu sonho eliciado pelo sonho do paciente, o analista oferece-lhe novas possibilidades de conexão para ressonhar esse ressonho e assim por diante.

Quando a capacidade do paciente de sonhar está prejudicada, a dupla é levada à área psicótica, estendida nesse modelo também a áreas traumatizadas arcaicas sem representação, provavelmente superpostas ao inconsciente não reprimido da segunda tópica freudiana. São elementos que não podem ser lembrados nem esquecidos, pois nunca existiram psiquicamente, o que não significa que não causem sofrimento. Pelo contrário, a dor da inexistência está na base dos enactments, encoberta por defesas violentas. O paciente externaliza o trauma não simbolizado projetando afetos, sintomas e vazios, que invadem o analista, estimulando mais seu sentir que seu ouvir, e seu não-sonho a ser transformado em sonho pela função-alfa.

Na dialética dos fenômenos, Cassorla considera sua coexistência num espectro contínuo englobando sonhonão-sonho, refletindo elementos-alfaelementos-beta e símbolos verbaisnão-símbolos. A dupla analítica, por mais estagnada que esteja, pode contar com canais paralelos à área obstruída, nos quais a função-alfa do analista permanece ativa imperceptivelmente, cabendo nomeá-la, portanto, de função-alfa implícita. A fecundidade dessas hipóteses pode ser conferida no capítulo “Enactment e função-alfa implícita na análise de configurações borderline”.

Simbolizar o trauma implica revivê-lo nos enactments. Como adverte o autor, não é que o enactment deva justificar falhas do analista, mas, uma vez que a perda provisória do vértice psicanalítico é inevitável, é necessário ter paciência, certa dose de masoquismo “normal” e capacidade negativa, como na relação mãe-bebê. Quando interpretações de conteúdo nada adiantam ou são desvitalizadas, o efeito comunicativo do enactment pode se sobrepor ao resistencial, favorecendo a formação de símbolos in statu nascendi. Na analogia ao teatro, a ideia de ser na cena em vez de saber sobre ela articula-se ao aprender com a experiência e at-one-ment de Bion.

Acompanhamos, no decorrer dos capítulos, a metapsicologia e a técnica freudianas evoluindo a partir de contribuições de outros grandes autores, chegando aos recentes alcances microscópicos intersubjetivos em áreas lesadas traumaticamente, como no capítulo “Sonhando objetos bizarros e traumas iniciais: o continuum sonho↔não-sonho”. As proposições de Cassorla instrumentalizam o acesso a essas áreas traumáticas mais profundas e doloridas da mente.

Do ponto de vista da técnica, vemos as aproximações entre o enfoque intrapsíquico clássico e a visão contemporânea de intersubjetividade, a transferência como situação total, a valorização progressiva da contratransferência, a identificação projetiva normal e massiva, as transformações da experiência emocional, a ampliação do conceito de rêverie, o vértice moralístico e a liberdade no vértice investigativo. O processo de análise “da dupla” vai implicar as vivências de passagem da indiferenciação self-objeto para a triangularidade e seus respectivos conflitos, dores e embaraços. A intuição psicanaliticamente treinada é indispensável para apreender aspectos que lutam para ser simbolizados e que emergirão nas entrelinhas da manifestação afetiva não sensorial ou intensamente sensorializada.

Nessa instrutiva revisão conceitual, Cassorla reestuda o objeto externo de fantasia de Strachey e o campo analítico dos Baranger, como precursores da moderna abordagem intersubjetiva. A questão do recrutamento da mente do analista de Joseph é ampliada com as ideias de Bion sobre os grupos e o sonho de vigília, quando o autor se encontra com as ideias sobre a vida onírica de Meltzer, o facho de intensa escuridão de Grotstein, o terceiro analítico de Ogden e as holografias afetivas de Ferro.

Ao relatar situações clínicas curiosas, nitidamente difíceis, Cassorla nos mostra como

traumas poderão ser lembrados e ressonha-dos (aquela parte dos traumas que havia sido simbolizada, mas reprimida), reconstruídos e sonhados (aquela parte que havia sido transformada em não-sonhos psicóticos) e construídos e sonhados na relação (aquela parte da mente primordial que nunca seria lembrada). (p. 115)

O valor científico da psicanálise é uma preocupação permanente do autor, com a consciência de que métodos quantitativos tradicionais de validação não se aplicam ao caráter rebelde das variáveis psicanalíticas. Por mais que lidemos com compulsão à repetição, os objetos psicanalíticos nunca se repetem exatamente da mesma forma. A clínica e a pesquisa psicanalíticas obviamente não escapam ao desafio metodológico de algum modo presente em todas as ciências: a influência inexorável da subjetividade do pesquisador.

No capítulo “O que acontece antes e depois do enactment agudo: validando fatos clínicos”, Cassorla vê a microvalidação acontecendo na sessão, nas reações do paciente às intervenções do analista. A macrovalidação vem a posteriori, publicando o trabalho clínico em discussões com colegas e em textos científicos. Entendendo o ensaio e erro como próprio ao método psicanalítico, dilui-se a conotação pejorativa do errar. Cassorla então apresenta uma proposta original para testar hipóteses, comparando material clínico publicado por autores de diferentes culturas psicanalíticas: Yardino (América do Sul), Sapisochin (Europa/Espanha), Ivey (África do Sul) e Bateman (Reino Unido). Tal metodologia agrega objetividade à subjetividade do analista.

Nos vários relatos clínicos, o leitor vai se deparar com a imprevisibilidade do recrutamento da mente do analista, já que o fenômeno decorre da comunicação inconsciente de dor traumática insuportável, irrepresentável, na relação com objetos parciais ou perversos. Idealizações da psicanálise e da função analítica caem por terra quando a dupla se envolve em conluios de “não análise”, de evasões.

No capítulo “Quando o analista se torna estúpido: entre Narciso e Édipo”, Cassorla aproveita as contribuições de Bion para mostrar o recrutamento, no campo analítico, obnubilando a capacidade de pensar, como ocorre nos mitos citados. No capítulo “Édipo, Tirésias e a Esfinge: do não-sonho às transformações em sonho”, o autor retoma os relatos míticos para investigar o que ocorre no campo analítico durante o processo de ssimbolização, valendo-se de especulações imaginativas interessantes ao refinamento da observação clínica.

O livro é encerrado com um capítulo de teor filosófico, “Sonho sem sombras e sombrações não sonhadas: reflexões sobre experiência emocional”, em que o autor nos leva por caminhos surpreendentes a questões como beleza, mentira, perversão e solidariedade.

A psicanálise como “ciência-arte” pressupõe intuição aguçada, além de teorias. O estilo de Cassorla facilita a integração de aspectos cognitivos e afetivos do leitor. Nesse sentido, após ampla discussão de suas ideias pelo Comitê de Investigação Clínica da ipa (International Psychoanalytical Association), apresentada no congresso do México (2011), o relator Donald Moss escreve:

Cassorla nos oferece sua visão. [...] Em minha opinião, sua visão, muito bonita, lembra - penso eu - esse tipo de beleza disponível em algumas pinturas-iconografias da Renascença, que combinadas com maestria clínica produzem um quadro de extraordinária força narrativa e convicção.

Agradeço a Roosevelt Cassorla a instigante leitura de seu novo livro, e também a preciosa oportunidade que tem me oferecido de trabalhos conjuntos no Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e em diversos eventos científicos, com o aprendizado constante de que a experiência emocional na relação viva com os pacientes é a fonte primordial de conhecimento psicanalítico. Finalizo com algumas palavras introdutórias do autor, desejando aos colegas uma proveitosa leitura!

Diferencio a experiência analítica das variadas teorias que, ao mesmo tempo, facilitam e dificultam o contato com a experiência emocional. A aversão por teorias totalizantes é uma característica da psicanálise contemporânea, mais ainda quando elas se tornam rígidas, dificultando que analista e paciente se tornem “si mesmos”. Análise teórica pode tornar-se adaptativa às expectativas conscientes ou inconscientes da teoria do analista. Não se deve esquecer que teorias são construções hipotéticas que buscam organizar fatos clínicos e iluminam sua compreensão, e que devem ser modificadas ou descartadas sempre que necessário. Caso contrário, configuram um suposto saber alucinatório que obstrui o contato com o desconhecido. (p. XV)

 

 

Correspondência:
Ana Clara Duarte Gavião
Rua Capote Valente, 439/122
05409-001 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3085-3906
gaviaoanaclara@gmail.com

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