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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

RESENHAS

 

Devolução de crianças adotadas um estudo psicanalítico

 

 

Gina Khafif Levinzon

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Autora: Maria Luiza de Assis Moura Ghirardi
Editora: Primavera Editorial, São Paulo, 2015, 141 p.
Resenhado por: Gina Khafif Levinzon

 

 

Esse livro baseia-se na pesquisa de mestrado de Maria Luiza de Assis Moura Ghirardi, realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Trata do processo de adoção que pode ocorrer em certas situações, felizmente não muito frequentes, e que é acompanhado de intenso sofrimento psíquico. São os casos de devolução da criança e do adolescente adotado, que retornam para a instituição-abrigo. Nesses casos, rompem-se novamente, para a criança, os vínculos de filiação, e ela fica livre para um possível novo processo de adoção.

O conceito de devolução não é reconhecido pela justiça. Segundo a lei, a adoção é irrevogável e, portanto, devolver a criança adotiva é considerado abandoná-la, da mesma forma como ocorre com um filho biológico. O retorno da criança é previsto na lei apenas no estágio de convivência, durante o qual os pretendentes à adoção têm a guarda provisória da criança. Nesses casos, fala-se em restituição, que pode ocorrer em razão de dificuldades importantes na relação da criança com os futuros pais adotivos. Nos casos de devolução, assim como nos de restituição, normalmente instaura-se um processo de destituição do poder familiar ou de cancelamento da guarda e procede-se à colocação da criança em um abrigo. Em ambas as situações, pode-se dizer que essa experiência reedita na criança sentimentos ligados a abandono e rejeição. Expressões de violência, decepção e frustração são sentidas por todos aqueles que participam do processo ligado à devolução, sejam os adotantes, seja a criança, sejam os profissionais envolvidos.

Nesse livro, Maria Luiza se pergunta sobre o que leva alguns pais adotivos a desistirem de seus filhos por meio da devolução, incluindo suas motivações inconscientes.

Fantasias de devolução e de roubo são comuns no psiquismo de pais e crianças adotivos, em função da situação de não ligação biológica. As situações de devolução factuais, no entanto, dependem de certas condições específicas para ocorrer. Elas se verificam em dificuldades acentuadas no exercício da maternidade e da paternidade, especialmente em pessoas nas quais a presença da infertilidade intensifica sobremaneira os conflitos vividos, como uma acentuada ferida narcísica. Além disso, o surgimento de características indicadoras da singularidade da criança exacerba fantasias e angústias nos pais, ligadas à origem genética da criança.

No primeiro capítulo do livro, Maria Luiza descreve um panorama geral da adoção na contemporaneidade. Faz um breve relato da legislação a respeito desse tema, sobre os procedimentos técnicos para adotar uma criança e sobre o que tem sido abordado com relação à devolução de crianças na pesquisa científica recente.

A seguir, são discutidos três casos clínicos nos quais se baseou a pesquisa sobre devolução de crianças adotadas.

Foram realizadas sete entrevistas com Elizabeth e Romeu, após terem devolvido uma menina que esteve sob sua guarda durante 21 dias, e quatro entrevistas com Betina, guardiã de dois irmãos durante o período de um ano e meio (o companheiro dela não concordou em participar da pesquisa). O terceiro caso, o casal Iara e Serafim, foi atendido num contexto institucional por seis meses, com frequência semanal. O objetivo desse atendimento foi auxiliá-los a lidar com a intensa angústia diante de situações de conflito aparentemente incontornáveis com o filho que queriam devolver.

A experiência em torno da devolução de uma criança mobiliza importantes sentimentos de angústia e culpabilidade nos adotantes. A autora alerta para o risco de condená-los apressadamente, sem considerar as variáveis complexas que os levaram a tal situação. É com esse espírito que são feitos o relato e a análise dos atendimentos no livro, de forma isenta e com um olhar profundo sobre as motivações conscientes e inconscientes presentes nessas pessoas.

O estágio de convivência, no qual em geral os adotantes possuem a guarda da criança, tem como objetivo permitir a adaptação da criança à nova família e aprofundar os elos afetivos que a unem aos novos pais. É uma fase que pode envolver muitos sentimentos ambivalentes e que tem um caráter de fragilidade para o estabelecimento do vínculo com a criança. Os pais podem desistir dela por meio da restituição, prevista em lei. Em certos casos, ainda não há uma condição legal completamente resolvida que habilite a criança à adoção, o que é sentido pelos pais como uma falta de legitimidade do vínculo. Fantasias de roubo e de perda da criança podem dificultar o elo que está se formando, levando, no seu extremo, à situação de devolução.

Como os adotantes não compartilham das experiências da gravidez, do parto e frequentemente dos primeiros anos da criança, precisam recorrer às suas histórias pessoais como filhos, identificando-se com a fertilidade simbólica de seus próprios pais. Em certas situações, no entanto, a dupla pais/criança não consegue integrar as expectativas de inclusão imaginária da filiação. A presença da infertilidade em um casal pode ser acompanhada por uma série de sentimentos e experiências muito dolorosos, verdadeiras feridas narcísicas difíceis de transpor.

Sentimentos ligados ao altruísmo e à crença na própria bondade podem funcionar como defesa contra a percepção dos sentimentos de autodesvalorização suscitados pela condição de esterilidade.

A idealização da criança e da adoção também abre portas para a vivência de fracasso nos pais adotantes e pode levar à fantasia de devolver a criança. Quando a sua subjetividade surge de forma explícita e não pode ser reconhecida pelos pais como alteridade possível de ser inscrita no imaginário deles, ela é entendida como um sinal de perigo diante de aspectos psíquicos imaginados ameaçadores. Nos três casos pesquisados, a autora encontrou evidências de perdas importantes no âmbito do ideal de ego dos adotantes.

Esse livro constitui uma importante contribuição ao estudo da adoção, especialmente para aqueles que trabalham com o processo de seleção de pais adotantes, assim como com a colocação e acompanhamento da criança em adoção.

 

 

Correspondência:
Gina Khafif Levinzon
Rua Artur de Azevedo, 243
05404-010 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3088-8745
ginalevinzon@gmail.com

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