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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo Apr./June 2017

 

FAMÍLIAS

 

Reflexões sobre a interpretação na clínica contemporânea de psicanálise dos vínculos de família e casal1

 

Reflections on the interpretation in the contemporary practice of psychoanalysis of family and couple bonds

 

Reflexiones sobre la interpretación en la clínica contemporánea del psicoanálisis de los vínculos de familia y pareja

 

Réflexions sur l'interprétation de la psychanalyse des liens de famille et de couple dans la clinique contemporaine

 

 

Lia Rachel Colussi Cypel

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Didata e docente do Instituto da SBPSP. Membro titular do Comitê de Psicanálise de Família e Casal da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Ex-chair do Comitê de Psicanálise de Família e Casal da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal)

Correspondência

 

 


RESUMO

Em linhas gerais, discute-se a abordagem do trabalho psicanalítico com os vínculos de família e casal como incluída no campo teórico-clínico da psicanálise, mas também como tendo sua especificidade (de formação inclusive), advinda da teoria dos vínculos. São feitas reflexões a respeito do uso da interpretação nas psicodinâmicas vinculares disfuncionais, e mesmo desobjetalizantes, vistas como expressões - e, com frequência, depositárias - do mal-estar social atual.

Palavras-chave: teoria dos vínculos, realidade psíquica vincular, relação dialética intrassubjetiva/intersubjetiva, escuta vincular


ABSTRACT

The author discusses, in general terms, the psychoanalytic work with family and couple bonds. In other words, the psychoanalytic work with bonds is not only studied under the perspective of the theoretical/clinical field of psychoanalysis, in which is included, but it is also studied with its specificity, which includes its training, as it has arisen from the theory of bonds. The author analyzes the use of interpretation in dysfunctional psychodynamics of bonds - this psychodynamics express or often represent the current social malaise.

Keywords: theory of bonds, reality of psychic bond, relation between intrasubjective and intersubjective dialectics, psychoanalytic listening to bonds


RESUMEN

En términos generales se discute el enfoque del trabajo psicoanalítico con los vínculos de familia y pareja como se incluyen en el campo teórico/clínico del psicoanálisis, pero también con su especificidad (incluso de formación) proveniente de la teoría de los vínculos. Se presentan reflexiones sobre el uso de la interpretación en las psicodinámicas vinculantes disfuncionales e incluso desobjetalizantes, vistas como expresiones, y frecuentemente como depositarias, del malestar social actual.

Palabras clave: teoría de los vínculos, realidad psíquica vinculante, relación dialéctica intrasubjetivo/intersubjetivo, escucha vinculante


RÉSUMÉ

On discute dans des lignes générales l'approche du travail psychanalytique à l'égard des liens de famille et de couple, compris dans le domaine théorique/ clinique de la psychanalyse, mais également en prenant en compte son spécificité (y compris la formation) advenue de la théorie des liens. On fait des réflexions concernant l'utilisation de l'interprétation dans les psychodynamiques des liens dysfonctionnels, voire desobjectalisants, vues comme des expressions et le plus souvent dépositaires du mal-être social actuel.

Mots-clés: théorie des liens, réalité psychique des liens, relation dialectique intrasubjective/ intersubjective, écoute des liens


 

 

Se tivesse de mencionar duas peculiaridades principais de nossa complexa clínica atualmente, citaria sua diversidade de abordagens, com seus respectivos desafios à aproximação psicanalítica, e sua crescente manifestação de interesse pela perspectiva vincular, demandando dos colegas psicanalistas um pertinente exercício para tolerar e lidar com as diferenças e com o desconhecido.

Os analistas têm se reunido procurando intercambiar ideias com colegas de distintos marcos referenciais, reconhecendo a importância da pluri-interperspectiva, buscando não negar a incompatibilidade ou as diferenças, mas sim conviver verdadeiramente com elas, tentando nutrir-se até mesmo de visões muito divergentes.

São movimentos dentro do universo psicanalítico que expressam sua vitalidade e, mais do que nunca, pertinência ao momento atual; momentos de criatividade da psicanálise e de significativas transformações socioculturais.

A passagem da perspectiva da psicanálise individual para a perspectiva vincular e a relação dialética entre elas estão em significativo processo de investigação e desenvolvimento. Isso demanda contínua elaboração dos recursos psicanalíticos que possam ser adequados e úteis para abordar os vínculos familiares e de casal e como utilizá-los, uma vez que de sua prática vão resultando novas indagações e descobertas que ampliam setores do referencial analítico em questão, revelando áreas inexploradas, apontando, conforme alguns autores, para a possibilidade de novas metapsicologias.

Desse modo, do meu ponto de vista, os desenvolvimentos teóricos e clínicos advindos da psicanálise das configurações vinculares também podem contribuir para ampliar o campo conceitual sobre o psiquismo humano pela perspectiva da psicanálise individual, em trocas mútuas, considerando-se fundamental que a intersubjetividade esteja incluída no campo clínico de observação e de elaboração analítica, em ambas as perspectivas.

Entendo que a reflexão que expressa a disponibilidade possível para viver o novo ou as transformações pertinentes à psicanálise contemporânea pertence ao que chamaríamos de setting interno do analista. Mas também, e principalmente, quero referir-me à disposição genuína e ética do analista para tolerar o verdadeiro acontecer psicanalítico clínico-vincular atual, que ocorre frequentemente muito próximo aos limites de sua prática com outras práticas, em interconexão com uma sociedade em franco processo transformativo, por um lado, e com diferentes territórios do saber que aportam diversidade de vértices, por outro. Isso demanda sensibilidade e cuidado para distinguir o que seria expansão de paradigmas psicanalíticos do que seria transformação em paradigmas não psicanalíticos, perdendo o psicanalista sua identidade e seu setting.

A abordagem psicanalítica vincular de família e casal não é um campo à parte do referencial teórico-clínico da psicanálise, embora possua sua especificidade (de formação inclusive), tal como a psicanálise de criança ou de adolescente.

Desse modo, parece-me que as contribuições que têm sido aportadas ao nosso campo de trabalho vincular, respeitando o método psicanalítico mas também aprofundando a sua especificidade, têm-no tornado um instrumental especialmente compatível para interpretar as angústias da sociedade atual, podendo contribuir com suas elaborações tão necessárias.

Essas colocações demandam uma aproximação à clínica da psicanálise dos vínculos de família e casal e reflexões sobre a questão da interpretação, que é a sua sustentação analítica.

Como sabemos, a construção da situação clínica depende primordialmente da postura analítica interna do analista, seu setting interior, como já dissemos, e de sua maneira inconsciente de ser como pessoa, resultante do decantar de sua experiência pessoal, profissional e de sua própria análise. Também depende do referencial teórico utilizado, o qual expressará o modelo que adota sobre o funcionamento inconsciente da mente humana (em contexto individual ou vincular). Este, por sua vez, determinará a natureza do recorte que será feito quanto aos elementos da situação clínica que serão levados em consideração por sua escuta analítica e, portanto, observados e trabalhados analiticamente por meio da interpretação.

Sendo muitas as variáveis e combinações possíveis presentes nessa composição, acredito que acabam sendo muitas e diversas as maneiras de construir uma situação clínica vincular. Cada uma delas deverá ter suas razões conceituais para sustentar o vértice adotado, sendo cada uma sustentada pelas verdades pessoais de cada analista que as professa, certamente as possíveis naquele dado momento.

Nossa abordagem inclui a concepção de uma realidade psíquica, por sua própria natureza, inefável, com múltiplas dimensões em contínuo movimento e cujas manifestações costumam ser de imprevisibilidades, incertezas e contradições (que coexistem com suas invariantes), permitindo, portanto, apenas aproximações e apreensões relativas, captadas pela sensibilidade da escuta vincular do analista.

O campo vincular inconsciente decorrente (transferencial ou não), de casal ou familiar, seria também, por consequência, um sistema complexo, multidimensional e multifatorial, com infinitas possibilidades de transformação em relação à sua realidade interna (intrassubjetiva) e à sua realidade externa (intersubjetiva).

A que nos levariam essas ideias?

A eleger como foco do trabalho analítico a mudança psíquica vincular, por meio da função de continência/rêverie do analista, em busca do desenvolvimento da capacidade para pensar dos pacientes e do aprender com a experiência emocional inconsciente vincular, naquela realidade singular, acontecendo na sessão. Convém lembrar que a experiência emocional não pode ser concebida isolada de uma relação, de um vínculo, seja entre analista e paciente, seja de pacientes entre si. Além disso, segundo a perspectiva bioniana, o pensar envolve sempre a alternância entre integração/não integração, ligar/desligar, referentes a movimentos naturais da mente (vínculos internos) e também a vínculos externos, condições indispensáveis para a expansão do continente psíquico, que evolui por rupturas (crise, separações...).

Esse processo seria justamente o que permite uma nova integração, uma reorganização diferente (do pensamento ou de um arranjo vincular) entre dois ou mais indivíduos, dando acesso ou possibilitando o acontecer de um novo fato psíquico, do não conhecido, do imprevisível. Caso contrário, teríamos a saturação, a repetição vincular infindável, o empobrecimento e a perda da capacidade para pensar e conhecer a si mesmo e ao outro.

Quanto à interpretação, o analista compatível com a visão descrita não seria mais aquele de quem se esperam interpretações como quem assegura verdades definitivas. Por esse vértice, a interpretação procuraria um sentido e não uma causa. A busca seria de mudança psíquica vincular, significando expansão da mente - de ambos, paciente e analista -, e não um afunilamento do observar, do pensar e do sentir. Não haveria conclusões explicativas, mas conjecturas possíveis. O analista estabeleceria relações entre os fatos clínicos, aproximaria eventos psíquicos, mas sempre investigando, lidando com a dúvida e, portanto, indagando-se e indagando o(s) paciente(s), levando-o(s) também a se questionar, a questionar suas verdades, até então inabaláveis (pensamentos por convicção), permitindo uma atitude reflexiva, um pensar sobre sua participação na resultante vincular conflitiva. Naquele momento, o possível seria sempre um aspecto parcial de um total inacessível e desconhecido.

Essa postura do analista de questionamento, que expressa a sua consciência pessoal do não saber relativo e sua capacidade para tolerar esse estado mental (o analista tem de saber que não sabe), deverá dirigir-se inicial e principalmente à própria teoria e à clínica utilizada por ele. Garantiria assim um trânsito contínuo entre elas, permitindo que se retroalimentem, se revitalizem e se recriem em novos modelos, o que é indispensável para a apreensão dos fatos clínicos sob a forma de hipóteses em busca de significados.

Dizendo de outra maneira, o analista sairia de seu lugar onipotente de suposto todo saber, abrindo espaço para a experiência emocional vincular em curso na sessão, expandindo a interpretação para além do campo transferencial, possibilitando contato com as próprias emoções contidas nos vínculos, dando significado, sentido, ao vir a ser de seus componentes.

Com isso, o processo analítico vincular também sairia de seu acontecer linear e predeterminado de causa e efeito, e cederia espaço às vivências do imprevisível, campo no qual, conforme a teoria do vínculo, o psiquismo é considerado extenso, aberto, em continuidade/descontinuidade com o(s) outro(s) e com o mundo externo, sociocultural. Sujeito e vínculo, sujeito e meio, interde-terminando-se, constituindo-se mútua e continuamente, gerando um inconsciente vivo e um processo de subjetivação nos indivíduos que os constituem.

Conforme Kães: "Não um sem o outro, nem sem o vínculo que os une e contém" (2007, p. 132).

Desse modo, a psicanálise dos vínculos de família e casal torna-se provavelmente o lócus mais favorável para as discussões sobre a intersubjetividade e sobre a construção da subjetividade contemporânea, uma vez que entendo os vínculos como os depositários primordiais do mal-estar social atual, uma vez que os sintomas individuais se mostram egossintônicos com os valores do meio e, portanto, com frequência não são considerados como psicodinâmicas disfuncionais.

Mas o importante nesse vértice é que, embora o contexto vincular seja a perspectiva fundamental, o indivíduo continua a ser levado em consideração. Agora, porém, devido ao setting vincular, ele pode ser apreendido em suas duas dimensões: a intrassubjetiva e a intersubjetiva, em contínua dialética. Em uma dimensão, a realidade psíquica individual inconsciente (tendo por referência a ausência), com seus afetos, fantasias, representações, contidos em suas relações de objeto, podendo inundar o(s) vínculo(s) dos pacientes de identificações projetivas transferenciais; em outra dimensão, a realidade psíquica vincular inconsciente deles (tendo por referência a presença), com suas alianças inconscientes estruturantes ou desobjetalizantes, pactos e conluios, pertinentes àquela situação vincular singular atual.

Ambas as dimensões compõem-se ou alternam-se em busca de um equilíbrio que será sempre instável, mas também poderá haver predominância significativa ora de uma dimensão, ora de outra. Destas, a que mais caracterizar a configuração vincular inconsciente na sessão será a determinante, como foco para a interpretação resultante. Certamente, não podemos esquecer que, estando em um setting vincular, qualquer compreensão que venha a acontecer em relação à psicodinâmica individual inconsciente de qualquer um dos participantes só deverá ser utilizada quando houver relação ou compreensão desse material com a dinâmica vincular, ou seja, apreensão de que função estaria desempenhando nela, a serviço de que estaria no vínculo.

A dinâmica vincular também poderá apresentar-se em diferentes estágios de desenvolvimento emocional vincular, desde o predomínio do território narcísico até o território do reconhecimento da alteridade, expressos por meio de maior ou menor complexidade obtida pelo(s) vínculo(s). O predomínio da dimensão da ordem da ausência ou da presença também se relacionará com esse desenvolvimento, uma vez que a possibilidade de adquirir capacidade de tolerância à existência do outro, à sua autonomia, à diferença, à diversidade será sempre uma conquista longa e árdua.

A escuta analítica identificará como fato selecionado o material clínico a ser interpretado. A dinâmica intersubjetiva se expressa no discurso conjunto (cadeia associativa produzida na sessão), cada um ressignificando a fala do outro. E nele importa o que constitui o eixo primordial da dinâmica intersubjetiva, quais os elementos que dão sentido aos afetos, fantasias e defesas que permeiam a comunicação verbal e não verbal entre os indivíduos.

Penso que essa concepção da psicanálise da vincularidade dialética, que também leva em conta na psicodinâmica intersubjetiva inconsciente a pers-pectiva intrassubjetiva (ou seja, que pode interpretar a repetição transferenciai do passado interferindo no vínculo, mas também o novo e o desconhecido do presente vincular, conforme seja o caso), é fundamental para que a abordagem psicanalítica possa ser validada, assim como para que seu método e seus parâmetros básicos possam ser clinicamente úteis em sua singularidade.

Enfatizo esses aspectos porque gostaria agora de refletir um pouco sobre nossa clínica atual e também sobre questões da interpretação relacionadas a ela.

Do meu ponto de vista, a psicanálise da vincularidade, como a descrevemos, talvez seja mais útil do que nunca nesse momento atual porque cria a possibilidade de contato justamente com o diferente, o estranho que o meio sociocultural oferece, carece e demanda. Favoreceria a possibilidade de que o indivíduo, por meio de tratar os seus vínculos, viesse a conhecer-se e conhecer o(s) outro(s) e a crescer emocionalmente para a vida.

Envolveria a análise de questões de escolha, responsabilidade e capacidade vincular. E o espaço de continência/rêverie do analista, que também contém a interpretação transferencial, é que favoreceria a experiência emocional necessária para o aprender com a experiência, podendo, quem sabe, desencadear transformações nos vínculos e nas subjetividades que os compõem.

Seria a psicanálise clínica vincular cumprindo o seu destino, indo na contramão do fluxo sociocultural, sendo a "peste"! Ela também busca o novo e vai em direção ao desconhecido, mas aquele novo sempre inédito contido na experiência emocional vincular vivida por todos e cada um, num dado momento, e não o novo instituído atualmente, quase obrigatório, já banalizado pela repetição das redes sociais e descartável a cada instante pela voracidade que o mercado exige. Ofereceríamos o "novo velho", aquele que se reinventa pela força do reencontro do sujeito com sua genuína veracidade como ser humano.

Nos dias de hoje, como é incansavelmente abordado, temos um processo de subjetivação em um meio social que favorece a dissolução do indivíduo na cultura de massa devido à globalização, que ameaça a sua privacidade, a sua individualidade e a construção de um pensamento próprio por precariedade da vivência da interdição, resultando em dificuldades de tolerância à frustração e à dor psíquica.

Assim, o que o paciente que nos chega ao consultório tem nos revelado em diferentes versões é mais a necessidade de trabalhar os deficit vinculares do que somente os conflitos.

Como trabalhar com os vínculos desobjetalizantes, nos quais a instauração da capacidade simbólica é precária e cuja sociedade na qual acontecem favorece muito mais a regressão à área narcísica, a incorporação indiscriminada mais do que a introjeção, a qual lhes permitiria diferenciar entre mundo interno e externo, entre fantasia e realidade, entre si mesmo e o outro etc., pré-requisitos para o exercício da maturidade emocional vincular?

Como abordar esses vínculos? EstereotIPAdos, endogâmicos, em funcionamento de lógica dual? Será que é desconhecendo que essas condições, estruturantes da qualidade do vínculo, também estariam subjetivando os integrantes do vínculo por meio de alianças inconscientes nocivas ao desenvolvimento psíquico de cada um deles?

São vínculos nos quais predominam os estados-limite, deficit ou excesso vincular de narcisização, as fissuras nos "vínculos de sustentação", o não constituído, o não representado. Demandam trabalho analítico não com o que foi perdido, mas com o que não chegou a existir. Para eles, a interpretação, com muita frequência, costuma ser tomada como invasão.

São vínculos que talvez requeiram um olhar mais abrangente, para incluir não só a interpretação transferencial, mas também aquela que possa alcançar áreas de repetição sem objeto, com questões de identidade e de vazio de mundo interno.

Bleger (1967) diz que o enquadre muito rígido, em casos assim, torna-se o depositário dos aspectos mais primitivos do vínculo, mas de forma muda, aspectos que tendem a ficar fora do processo, não analisados, não interpretados - seriam aquilo do que não se fala, o sagrado, algo não tocado pela palavra.

Como ficaria o lugar do analista? E como poderia ser a interpretação nessas circunstâncias?

Algumas considerações talvez sejam úteis para pensarmos.

Lembremos primeiramente que o lugar e a função do analista podem ser considerados como tendo o seu lado objetivo, que implica sua reflexão com certa racionalidade (pensamento clínico, de Green), e seu lado como pessoa real, subjetivo, reflexivo, relativo à evocação da sua experiência de vida, que inclui sua análise e, portanto, seu inconsciente.

A interpretação, por sua vez, abrange a questão da escuta e da contra-transferência.

A escuta não é um acúmulo racional de informações ou de conhecimento, mas um movimento também ligado ao inconsciente do analista. Este busca colocar-se em suspensão de seu próprio eu, sem desejo, sem memória, para acessar a produção de efeito metafórico de algo relacionado à realidade psíquica inconsciente vincular em curso.

A contratransferência, por outro lado, uma noção imprecisa mas ferramenta essencial do analista, é outra dimensão da situação analítica intersubjetiva e implica o eu do analista. Não tem a ver com o seu saber, teorias na operação da sua função, mas com sua convicção, diria no inconsciente, resultante de sua experiência emocional de vivê-lo.

Talvez o que gera efeitos analíticos interpretativos transformadores para esses vínculos mais disfuncionais aconteça naqueles momentos do analista de real presença, de intenso envolvimento, que na sessão costumam aparecer como "me peguei falando" (quando vi estava falando) - algo emerge. O seu inconsciente e a experiência que teve como que configuram um conteúdo, que é intuitivamente verbalizado.

É preciso saber muita psicanálise para ser capaz de esquecê-la... em muitos momentos.

Freud (1933/1986b), em nota necrológica a S. Ferenczi, se opôs à mecanização da técnica e à intelectualização da interpretação, mas em "Conselhos ao médico sobre o tratamento psicanalítico" (1912/1986a, p. 115) menciona que "o analista deve estar em condições de se servir do seu próprio inconsciente como instrumento de análise".

Coloquei todas essas observações porque são aspectos que aparecem entremeados na experiência, compondo o cerne da vivência emocional em curso na sessão, cujos conteúdos verbais e não verbais seriam processados pela função de rêverie do analista. Mas, principalmente, por meio da qual as metáforas seriam gradativamente coconstruídas com os integrantes do vínculo, na medida de suas possibilidades. Não seria essa composição fundamental para que a interpretação pudesse ser assimilada?

Os pacientes interpretam a interpretação e isso vai modificando ou instituindo significados, que por sua vez podem gerar transformações vinculares. São considerações possíveis no momento, hipóteses parciais de um todo que sabemos inacessível, que por seu turno produzem novas indagações, compatíveis com a postura investigativa/reflexiva do analista e gradativamente do analista e analisandos, em busca de expansão psíquica vincular e, portanto, de mudança psíquica.

R. Prat (2014) propõe definir o estatuto da interpretação não a partir de sua forma, mas a partir de seu efeito, tanto sobre o psiquismo quanto sobre o processo analítico. A forma da interpretação seria considerada como uma ferramenta que facilitaria a comunicação com os pacientes e constituiria um vocabulário específico, entre o verbal e o não verbal (linguagem de êxito, para Bion), que se harmonizaria com o nível deles de simbolização.

A. Ferro (1997) diz que a interpretação já não é considerada como algo que, segundo um código dado, permitiria extrair uma significação, mas como a proposição de um sentido, sempre não exaustivo, em devir, ou, como diz Bion (1979), insaturado, que encontra nas emoções dos pacientes e analista o impulso para novas significações, mais complexas, mais articuladas, aptas a veicular afetos.

A. Ferruta (2002) fala em construção interpretativa, e R. Roussillon (2005) em conversa psicanalítica. Alguns sugerem tornar o setting versátil, singularizado, utilizando imagens figurativas para áreas de deficit de simbolização; outros perguntam-se como ser analista para cada casal ou família. Cito ainda as contribuições de A. Ferro (2005) e de Bion (1993), que elaboram questões mais amplas, mas sustentam reflexões sobre esse tema.

E não podemos esquecer, o que me parece fundamental, o estilo do analista, que sempre foi fator determinante. Muitas vezes, importa mais o que ele é do que o que ele fala: a maneira como articula rupturas e aproximações, seu modo natural de ser, que lhe é inconsciente, seu ritmo e tônus, sua linguagem não verbal e corporal intuitiva...

A prática clínica da psicanálise da vincularidade, uma especificidade dentro da psicanálise, do modo como a vemos, tem respaldo teórico que permite a aproximação às vivências inconscientes do mundo mais primitivo do sujeito por meio da investigação psicanalítica sobre qual seria sua função ou significado ou consequência no campo vincular, como também, no sentido contrário, que sujeito o vínculo estaria formando e mantendo. Qual é a justificativa para isso? Dar condições favoráveis para o sujeito, por meio de elaboração da sua dinâmica vincular, resgatar sua individualidade como atributo de crescimento emocional para si e para seu acervo vincular. O importante não seria somente a resolução do conflito em si, mas a partir dele buscar a construção de um instrumental psíquico com condição suficientemente boa para conseguir lidar criativamente, da melhor maneira que lhe for possível, com o mundo em transformação dos dias de hoje e com a diversidade social, de modo democrático, respeitoso e verdadeiro consigo mesmo e com o outro, ao estar inserido, com sentido, em seu espaço e tempo existencial.

 

Referências

Bion, W. R. (1979). Elements de psychanalyse (F. Robert, Trad.). Paris: PUF.         [ Links ]

Bion, W. R. (1993). Second thoughts. London: Karnac.         [ Links ]

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Ferruta, A. (2002). Une interprétation qui construit le sujet: l'aventure du processus psychanalytique. In J. J. Baranes et al., Inventer en psychanalyse (pp. 49-66). Paris: Dunod.         [ Links ]

Freud, S. (1986a). Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 12, pp. 107-119). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1912)        [ Links ]

Freud, S. (1986b). Sándor Ferenczi. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol.

22, pp. 226-228). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1933)

Kaes, R. (2007). Un singular plural (M. Segoviano, Trad.). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Prat, R. (2014). A roupa nova da interpretação. Revista Brasileira de Psicanálise, 48(2),33-46.         [ Links ]

Roussillon, R. (2005). La conversation psychanalytique: un divan en latence. Revue Française de Psychanalyse, 69(2),365-381.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Lia Rachel Colussi Cypel
Rua Banibas, 415
05460-010 São Paulo, SP
Tel.: 11 3031-0424
liacypel@terra.com.br

Recebido em 25.04.2017
Aceito em 10.05.2017

 

 

1 Trabalho apresentado no 2.° Congresso Internacional do Comitê de Psicanálise de Família e Casal da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), Madri, fevereiro de 2017.

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