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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo Apr./June 2017

 

FAMÍLIAS

 

Psicanálise de casal e sexualidade: um certo desencontro

 

Couple psychoanalysis and sexuality: a certain mismatch

 

Psicoanálisis de pareja y sexualidad: un cierto desencuentro

 

Psychanalyse de couple et sexualité: un certain désaccord

 

 

Sonia Thorstensen

Pós-doutoranda em psicologia clínica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF) e membro fundador da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão a respeito da escassa atenção teórica da psicanálise de casal e família sobre a temática da sexualidade conjugal, escassez essa que está implicada na menor possibilidade de escuta clínica desses casos. Após mencionar alguns autores que se debruçaram sobre essa questão, e a título de exemplificá-la, fragmentos clínicos são apresentados, referentes a um tipo específico de dificuldade sexual conjugal - a periodicidade dos encontros sexuais na relação de casal.

Palavras-chave: psicanálise de casal, sexualidade conjugal, escuta


ABSTRACT

This paper proposes to think about why couple and family psychoanalysis has neglected theoretical researches on sexual relations in marriage. The lack of focus on this subject matter is related to less listening ability in the clinical practice. This paper mentions some authors who have studied marital sexuality. The author illustrates this theme by using a few clinical vignettes, which are concerning a specific issue of marital sexuality, i.e., the discussion about frequency of sexual encounters in the couple relationship.

Keywords: couple psychoanalysis, marital sexuality, clinical listening


RESUMEN

Este artículo propone una reflexión sobre el escaso material teórico del psicoanálisis de pareja y familia sobre la temática de la sexualidad conyugal. Dicha escases lleva a una menor posibilidad de escucha analítica en esos casos. Después de mencionar algunos autores que tratan sobre el tema y con el objetivo de ejemplificarlo, se presentan algunos fragmentos clínicos referidos a un tipo específico de dificultad sexual conyugal: la periodicidad de los encuentros sexuales en la relación de pareja.

Palabras clave: psicoanálisis de pareja, sexualidad conyugal, escucha analítica


RÉSUMÉ

Cet article propose une réflexion concernant la faible attention théorique de la psychanalyse du couple et de la famille sur la thématique de la sexualité conjugale, une pénurie qui est impliquée dans la moindre possibilité d'écoute clinique de ces cas. Après mentionner quelques auteurs qui se sont penchés sur cette question, à titre de l'exemplifier, on présente des fragments cliniques concernant un genre spécifique de difficulté sexuel conjugale qui concerne la périodicité des rapports sexuels dans la relation du couple.

Mots-clés: psychanalyse de couple, sexualité conjugale, écoute


 

 

A reflexão a respeito da sexualidade conjugal a que venho me dedicando,1 e que deu ensejo a uma tese de doutorado (2016), me foi suscitada por duas constatações. A primeira foi a percepção de que, no dia a dia das supervisões, transparecia que a problemática da sexualidade não era abordada de forma direta no atendimento dos casais. Às vezes, nem mesmo se sabia se o casal em atendimento mantinha relações sexuais. Tudo se passava como se trabalhar sobre os problemas da relação (brigas, desentendimentos etc.) implicasse automaticamente resolver as dificuldades referentes à sexualidade sem que delas se precisasse falar. O que se transmite para o casal, nessas circunstâncias, é que o tema da sexualidade não pode ser trazido de modo aberto, apenas tangencialmente, enviesando, dessa forma, a própria capacidade de escuta clínica.

A segunda constatação foi ainda mais contundente, pois verifiquei que nos congressos e eventos da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família, entidade que reúne profissionais da área, essa temática também tem sido praticamente inexistente, com raras exceções.

Essa descoberta surpreendente levou-me a uma pesquisa na literatura a respeito do tema e o que encontrei foram manifestações de desconforto, semelhantes às minhas, diante da ausência de trabalhos publicados nessa área.

Clulow, na introdução de seu livro Sex, attachment and couple psychotherapy, pergunta-se jocosamente:

Do ponto de vista da psicanálise, o que constituem os "fatos da vida"? Quais são as histórias que nossos mentores profissionais nos contam sobre os equivalentes psicológicos dos "pássaros e abelhas"? De fato, essas histórias têm alguma coisa a dizer sobre sexo ou, como as invenções dos pais envergonhados, desviam nossa atenção para longe do que realmente deveríamos saber em relação à vida sexual de nossos pacientes? (2009, p. XXXV)

Ele continua com uma observação bastante óbvia: a de que a sexualidade, para os terapeutas de casal, é parte inevitável de sua atuação profissional, pois a característica que define casamento e vida adulta em comum é a sexualidade, mesmo quando não há sexo na relação.

A literatura sobre o tema encaminha-se, então, da ausência de trabalhos sobre a sexualidade conjugal para a questão mais ampla do papel da sexualidade na psicanálise e na clínica psicanalítica atual.

Fonagy pergunta-se: "Por que a profissão que descobriu que o sexo era a chave organizadora da função psíquica produziu tão poucos trabalhos com foco nesse aspecto central dos problemas de relacionamento?" (2009, p. XVII).

Segundo ele, alguns fatores podem explicar a diminuição do interesse da psicanálise pela sexualidade: a natureza problemática da teoria instintual de Freud e a dificuldade para reconciliá-la com a teoria de relação de objeto; a resistência inconsciente e o excesso de pudor da comunidade psicanalítica; a influência de Klein e a ênfase na díade mãe-bebê; e a frequência com que as patologias borderline se apresentam nos consultórios atualmente e para as quais as interpretações sexuais não são proveitosas.

Budd (2001), por sua vez, aponta que historicamente, à medida que analistas mulheres e não médicas substituíram seus colegas mais velhos, todos médicos e homens, houve uma mudança na teoria: a localização do Édipo mudou dos primeiros anos para os primeiros meses de vida, do casal parental para o seio bom e mau. Essa feminilização da psicanálise por Klein e seus seguidores colocou de lado o significado do pai e no centro a relação mãe-bebê.

Clulow, apontando a escassez de publicações sobre a sexualidade conjugal, comenta:

A ênfase na relação mãe-bebê, na motivação social em lugar da pulsional para formar e manter relacionamentos, no ódio no lugar do desejo, e na capacidade de pensar como a marca maior da maturidade fez com que a sexualidade possa ter sido excluída da psicanálise. (2009, p. XXIX)

Vale notar ainda que Green, em vários textos (1995, 1997, 2002), preocupou-se com o destino da sexualidade na psicanálise.

No texto de 2002, Green conclui que a psicanálise moderna corre o risco de tornar-se uma teoria exclusivamente psíquica, desmontando o esforço da construção teórica freudiana, baseada no jogo de forças de impulsos contraditórios, a famosa demanda de trabalho feita à mente, em consequência de suas conexões com o corpo, postulada por Freud. O autor alerta para os riscos de as teorias intersubjetivas enveredarem pelos mesmos caminhos:

a preocupação constante de Freud em articular a ordem do psíquico com o somático é deixada de lado na psicanálise moderna, que se torna cada vez mais uma teoria psicológica ou exclusivamente psíquica, acentuando o hiato entre a participação do soma e a participação do psiquismo. Da mesma maneira, quando se refere ao objeto (ao outro), um movimento complementar finaliza a minimização do papel pulsional, considerado como uma fonte de erros, tendente a biologizar o psiquismo e ignorar a dimensão relacional. ... vemos o prolongamento dessas confusões nas teorias ditas intersubjetivistas, onde a relação entre dois sujeitos leva ainda mais longe a tendência a fazer prevalecer o polo relacional sobre qualquer outro. (p. 90)

Num artigo muito citado, Green (1995) faz um comentário que, a meu ver, tem implicações importantes para a psicanálise de casal e família, pois, além de indicar praticamente uma anulação da sexualidade como fundamento sobre o qual se constrói a vida conjugal e familiar, assinala também uma lacuna conceitual no trato das questões clínicas que a ela se referem. Diz ele:

Como se ela [a sexualidade] fosse considerada um tópico de significação especializada, uma área limitada do mundo interno, entre outras. . Temos uma relativa subestimação, até mesmo desprezo e, por vezes, ausência da sexualidade nos instrumentos conceituais que deveriam iluminar nossas ideias. (p. 217)

Ele propõe "que se questione a ideia de que o sexual e o genital sejam superficiais" e acrescenta:

O valor da vida é vinculado ao que todos os seres humanos compartilham e almejam: a necessidade de amor, de gozar a vida, de ser parte de uma relação em sua expressão mais completa etc. ... Somos confrontados aqui com nossa ideologia sobre para que serve a psicanálise. Qual o seu objetivo?

Ele se posiciona: "Não seria o ser capaz de sentir-se vivo e investir as muitas possibilidades oferecidas pela diversidade da vida, a despeito dos desapontamentos inevitáveis, fontes de infelicidade e de cargas de sofrimento?" (p. 220).

As considerações tecidas por Green e Clulow nos indicam uma situação paradoxal, para não dizer absurda: trabalha-se na clínica de casal e família como se a sexualidade não fosse o elemento fundamental sobre o qual a estrutura do casal e da família se constrói. Esse elemento deve ficar "escondido" no discurso clínico e na teorização. Os autores apresentam seus argumentos sobre o porquê dessa situação. A esses argumentos podemos acrescentar o que o próprio Freud nos ensinou, ou seja, que a curiosidade a respeito da sexualidade dos pais é fortemente reprimida logo nos primeiros anos e que, sobre essa repressão, um processo de subjetivação institui-se. Constatamos que ela assim permanece inclusive nos dias atuais, em que a exacerbação e a exposição sexual nos meios de comunicação poderiam dar a entender que até mesmo essa repressão teria se modificado. Parece não ser isso o que acontece. O fato é que, na posição de analista, este estará, inexoravelmente, colocado diante de sua cena primária e de suas curiosidades sexuais reprimidas. Nesse caso, podemos dizer que, em vez do retorno do recalcado, temos aí um recalque que retorna, dificultando a escuta na clínica conjugal.

Apresento a seguir alguns exemplos clínicos de um tipo específico de dificuldade sexual conjugal, frequente na clínica de casal e família e que, muitas vezes, passa desapercebido se o analista não oferecer uma escuta adequada. Trata-se da discrepância entre o desejo da mulher e o de seu companheiro quanto à frequência da atividade sexual do casal, temática essa inevitavelmente marcada por época e cultura.

Deve-se levar em consideração que as vinhetas a seguir provêm de atendimentos originalmente solicitados para a família, nos quais a temática sexual, compreensivelmente, só surge quando são solicitadas sessões de casal.

 

A indisponibilidade sexual da mulher como queixa conjugal

A queixa sobre a disponibilidade sexual da mulher na frequência desejada pelo companheiro é comum na clínica de casais. Ela tanto pode aparecer como uma demanda direta, motivando a busca do casal por ajuda, como, mais frequentemente, pode desvelar-se no decorrer de um atendimento familiar cuja demanda inicial foi outra - por exemplo, dificuldades escolares de um filho -, ficando a queixa sexual como um pano de fundo de questões aparentemente não relacionadas com ela.

Vinheta 1

[No início de uma sessão de casal.]

Ela: Estamos muito melhor! Não temos brigado mais! Tudo está mais calmo em casa! [Dirigindo-se ao marido.] Você também acha isso?

Ele: Sim, não temos mais brigado. Mas a questão do sexo, essa ainda não resolvemos.

Ela: [Irritando-se.] Mas como? A gente transou outro dia e você ficou muito satisfeito! Você mesmo comentou isso!

Ele: Seu outro dia faz muito tempo!

Ela: Não é verdade! Foi no dia do churrasco do seu tio!

Ele: [Voltando-se para a analista.] Sabe há quanto tempo foi esse churrasco? Faz cinco semanas!

Ela: Tudo isso?

Esse é um diálogo usual na clínica. Ela, ao que parece, está satisfeita com a periodicidade da vida sexual atual do casal. Não lhe passa pela cabeça que ele possa estar insatisfeito, porque tem desejos e necessidades diferentes dos dela. Ela acredita piamente no discurso vigente de que homens e mulheres são iguais nos papéis, nos desejos e necessidades.

Ele está insatisfeito. A insatisfação masculina quanto à frequência sexual na relação conjugal dá origem a um sentimento de rejeição e a uma irritação latente, que aparecem sob a forma de provocações agressivas e cobranças variadas, resultando em desencontros e brigas.

Temos aqui uma primeira questão: qual é o efeito da indisponibilidade sexual feminina, enquanto quebra da promessa edípica ("quando você for grande como o papai, terá uma mulher como a mamãe só para você"), na autoestima masculina ou, falando freudianamente, em seu narcisismo? Na ausência da antiga "submissão sexual feminina", como fica o posicionamento masculino na conjugalidade atual?

A noção de igualdade entre os sexos encobre, de fato, um engodo. Há igualdade e há também diferença. Há uma igualdade jurídica e moral que vem recobrindo e encobrindo diferenças, que no entanto permanecem.

Esta é segunda questão a ser considerada: como as diferenças entre os sexos e as correspondentes representações que sobre elas cada indivíduo constrói interferem na atual organização da conjugalidade, concebida como uma organização de igualdades?

Vinheta 2

Ele: Minha mulher não tem o menor interesse em se vestir para me atrair. Adora dormir com o pijamão de moletom, exatamente como a mãe dela. Ambas são muito bonitas, mas não têm a menor preocupação em se fazerem atraentes para um homem.

Ela: Por que eu deveria dormir com algo que não acho confortável, só porque ele gosta? E o que ele faz para me atrair?

Ele: E o que você gostaria que eu fizesse?

Ela: [Atacando sua masculinidade.] Sei lá! Você é homem, você é quem deveria saber como atrair uma mulher.

[Ele se desorienta, se angustia e se cala.]

An.: [Dirigindo-se a ela.] Como é a relação entre seus pais?

Ela: Ah! Ele é apaixonado por minha mãe, acha-a o máximo, vive como um cachorrinho atrás dela.

Essa acusação ao homem diante de sua própria dificuldade para encontrar os caminhos de seu desejo é frequente nesses casos. Ela delega ao homem, sujeito suposto saber sobre o desejo (Nominé, 2007) (uma das decorrências da resolução edípica), a responsabilidade de despertar o seu desejo. Por outro lado, recusa-se a se colocar no lugar de despertar o dele. Dessa forma, ela inverte a situação e o ataca, de maneira agressiva, em sua masculinidade.

Além das representações propriamente edípicas e pré-edípicas de cada cônjuge, derivadas de suas vivências primordiais e que são "transferidas" para a relação amorosa, temos também a sobreposição das representações da relação entre os pais de cada um deles e as identificações daí decorrentes. Nesse exemplo, ela não compreende por que seu marido não se comporta com ela como seu pai em relação à sua mãe.

A terceira questão a ser considerada, então, é o entrelaçamento das vivências edípicas e pré-edípicas dos dois parceiros e também o entrelaçamento das representações das relações conjugais parentais que cada um carrega para a nova relação. Temos aqui, portanto, uma intersecção de fenômenos intrapsí-quicos, interpsíquicos e intergeracionais (Kaës, 2011).

Vinheta 3

Ela: [Dirigindo-se à analista.] Fiz uma pesquisa entre minhas amigas, todas casadas, com filhos e profissão, assim como eu. Todas dizem que transam como nós transamos, de vez em quando. [Este casal chega a ficar dois meses sem transar.] Não há energia que aguente muita transa. À noite, o que se quer é dormir!

Ele: O problema é que todos esses maridos traem suas mulheres. Só falam nisso nos papos de homem, ficam trocando telefones de putas entre si. O caso é que amo minha mulher e é com ela que quero transar! Acabo por ter que me masturbar várias vezes por semana. [Vai enraivecendo-se.] Isso não é vida! Não está certo!

A partir dessa vinheta, poder-se-ia fazer uma digressão histórica. Em outras épocas, esse descompasso poderia ser facilmente resolvido com a busca, pelo homem, de relacionamentos fora do casamento. Por outro lado, os costumes atuais, que prescrevem a igualdade entre os sexos, não previram como o envolvimento da mulher no mercado de trabalho afetaria seu posicionamento sexual como mulher e também como mãe. O conflito insolúvel da mulher entre trabalho e maternidade, com a carga de culpa inevitável que acarreta, por seu peso e importância, já contribui para um significativo afastamento representacional de si mesma como mulher sexual. Temos que considerar, ainda seguindo Freud (1940/1955), que a energia pulsional não é infinita e que questões sobre a economia da libido estão aí em jogo. A mulher, dolorosamente dividida entre maternidade, profissão e conjugalidade, apresenta um ressentimento que dirige ao parceiro. Este, a seu ver, não compreende a inviabilidade de sua vida nos moldes que a contemporaneidade lhe impõe; podemos dizer que ele está sendo "cobrado na cama" pelas consequências das mudanças sociais do papel da mulher na sociedade.

Não podemos esquecer, porém, que a indisponibilidade sexual da mulher não é um fenômeno atual. Pelo contrário, ela surge como queixa masculina desde sempre e é motivo de piadas entre os homens (vale lembrar as "enxaquecas" e "tonturas" da geração de nossas avós). No entanto, como a vinhetas evidenciam, ela reaparece com outras roupagens na contemporaneidade, e também com novas formas de lidar com ela.

De todo modo, o psíquico e o social intrincam-se de tal maneira que nem sempre é possível diferenciar um do outro e, no contexto clínico, saber como um funciona para encobrir o outro. Vejamos como isso ocorre na vinheta seguinte.

Vinheta 4

Ela: [Uma profissional bem-sucedida, diz brincando e em tom irônico.] Ele está sempre insatisfeito porque não transo tanto quanto ele gostaria. Às vezes, me dá desespero e penso: já terceirizo os cuidados com meus filhos, acho que terei que terceirizar o sexo também.

Ele: [Desesperado.] Mas é você que eu quero! Como quando nos conhecemos, transávamos bastante! E para você engravidar também! Depois que as crianças nasceram, tudo mudou. Você não tem mais interesse em mim. [Dirigindo-se à analista.] Mas tenho certeza que, se for para engravidar do terceiro filho, ela voltará a transar como antes. E depois tudo ficará como agora. Por isso, não quero mais filhos. Com dois, ela já não me enxerga, imagine com três! [E ele quase grita, enfurecido.] Quero de volta a mulher com quem me casei!

Ela: [Desafiadora.] Mas hoje eu sustento metade das nossas despesas, trabalho feito uma louca e ainda tenho que dar atenção às crianças. Aí tomo banho e desabo na cama! Você prefere sustentar a casa sozinho? Quem vai pagar a prestação do apartamento novo?

Ele: O que tem a ver uma coisa com a outra? Eu também trabalho feito louco e continuo querendo transar!

Ela: Quem acorda à noite para atender às crianças, quem as leva aos aniversários dos colegas e vai às reuniões de pais na escola, tudo isso enquanto você vai jogar futebol?

[Ele encolhe-se culpado, desconfirmado e sem palavras. Ela empina-se triunfante, dona da última palavra.]

O ressentimento dela e a culpa dele encerram o diálogo, encobrindo de fato a verdade, pois com a progressão da análise ele passa a assumir com bastante firmeza sua função de pai atuante em relação aos filhos e também, com um afinco maior, as tarefas de casa, que começaram a dividir entre si, e nem por isso ela se coloca mais disponível sexualmente. O fato é que ela está desligada de sua própria sexualidade: seus filhos e sua profissão a preenchem, sensual e falicamente. Não há falta discernível nela. Ele, por seu lado, permanece frustrado, carente e duplamente enganado. Em sua percepção, no passado, ela transava para conquistá-lo e, depois, para que ele fizesse filhos nela. Não era por ele. E atualmente, mesmo ajudando-a em casa, ela não se interessa por ele. Entretanto, ela não quer, de forma alguma, separar-se dele e desconstruir a família.

Situações como essa colocam o homem num "beco sem saída", uma espécie de tripé enlouquecedor para ele. Ela não quer ter relações sexuais, não quer se separar e, brincadeiras à parte, como na vinheta anterior, ela não aceita a infidelidade sexual dele. Como pode a mulher diferenciar o desejo de ter um homem, cuja atração por ela a confirme como mulher e lhe dê filhos, e o desejo sexual por um homem?

Vinheta 5

Ele: Temos brigado muito menos depois que começamos a análise. Está muito mais gostoso lá em casa. Mas sinto uma coisa estranha. Continuamos transando pouco e parece que para manter esse clima bom eu tenho que me habituar a transar muito menos do que gostaria. É o preço para ter paz em casa. Eu paro de cobrar sexo dela e tudo fica bem. Tenho que me contentar com meus filminhos pornográficos. E fico me perguntando: será assim que tem que ser? Isso é certo? [Faz essas perguntas evidenciando uma melancolização em seu posicionamento masculino.]

Temos de considerar que essa dúvida a respeito do "direito" ao sexo, por parte do homem, seria algo insólito em outras épocas. Por outro lado, do ponto de vista da clínica, por que ele aceita, se submete e melancoliza? Que feridas e culpas estarão agindo em sua autoestima de homem, que concorrem para a manutenção dessa situação?

Vinheta 6

Ele: Estou com uma sensação estranha! Esta semana eu a procurei e ela transou comigo só por mim, não quis gozar. Eu penetrei, gozei e, em seguida, dormimos. Fiquei muito frustrado! Por que ela não me deseja como eu a desejo?

Ela: [Agressiva.] Você é insaciável! Sempre tem do que reclamar! Por que não pode aceitar que estou me esforçando para te agradar? Não foi isso que conversamos, que vamos transar mais e que eu não preciso gozar sempre?

Ele: Reconheço o seu esforço para me agradar, mas mesmo assim fico triste! É como não ser desejado!

Pode-se pensar que, muitas vezes, psicanálise de casal é a psicanálise da aceitação das diferenças sexuais - diferenças no desejo, diferenças no gozo. Vejamos outro exemplo na vinheta seguinte.

Vinheta 7

Ela: [Dirigindo-se a ele.] Não adianta, depois de toda a correria do dia, trabalho, filhos, ele chegar e querer transar! Tem que criar um clima, ser romântico! Para transar à noite, tem que ter um preparo durante o dia, um trato especial comigo, fazer eu me ligar nele. Não sou um brinquedo que liga e desliga no sexo.

Ele: Eu tento criar um clima de tesão entre nós, mas ela nem percebe, ou me rejeita. Diz que está muito ocupada, com qualquer coisa! Minha sensação é que, na realidade, nada a deixa mais irritada do que entrar na cama e ver meu pênis duro. É como se, além do trabalho, da casa, das crianças, chegasse a hora de dormir e ainda tivesse que fazer algo com meu desejo por ela. Mais uma tarefa exaustiva, um saco para ela. Ela não entende que meu desejo por ela é minha forma de mostrar que a amo.

Há aqui uma dificuldade de comunicação causada pela própria diferença entre os sexos, no que se refere ao desejo sexual e à forma como ele se apresenta. De um modo direto, o intumescimento do órgão no momento de estar a sós com a companheira já é, para ele, uma prova incontestável de seu amor por ela. Portanto, para ele é incompreensível e extremamente frustrante que ela receba isso como uma cobrança a mais e um ato de desamor. Por outro lado, ambos não estão conseguindo sustentar o clima de erotização necessário em suas vidas diárias para que ela chegue mais preparada ao momento de intimidade do casal.

A seguir, duas vinhetas em contraponto.

Vinheta 8

Ele: [Frustrado porque, embora o casal transe regularmente, nem sempre ela quer ter orgasmo.] Queria que ela tivesse o mesmo prazer que eu!

Ela: Ele não consegue entender que são prazeres diferentes, transar para gozar e transar para amá-lo.

Vinheta 9

Ela: [Mais de 70 anos, voltando de uma semana de férias com o marido da mesma idade e achando a maior graça.] Já pensou eu andando de shortinho o dia inteiro? Ele me falou que com a idade fica mais difícil para ele, que eu preciso ajudar. Aí vesti um shortinho que ele adorou. Não tirei mais a semana inteira! Foi um sucesso!

Como se pode verificar, estamos aqui fazendo uma reflexão sobre a "psicopatologia da vida cotidiana conjugal", excluindo, portanto, as patologias mais graves. Podemos constatar nas vinhetas apresentadas que há uma questão que lhes é subjacente e que se refere a uma pergunta bem atual: como as ideologias dominantes no mundo ocidental sobre a igualdade entre os sexos acaba também por encobrir diferenças sexuais, que no entanto existem (diferenças na frequência, no desejo e no gozo)?

Colette Soler (1998), interpretando o pensamento de Lacan sobre esse tema, vai direto ao cerne da questão. Ela assinala que o homem intervém na relação sexual como sujeito do desejo, e a mulher se inscreve como objeto complementar do desejo dele. Isso ocorre porque, no que se refere à cópula (não no que se refere ao amor, nem ao desejo platônico), o desejo do homem é soberano, pois é ele quem dispõe do instrumento que condiciona a copulação. Na falta deste, não há cópula. Segundo Soler, essa é uma realidade que deverá ser elaborada psiquicamente por toda mulher.

Essa reflexão de Soler soa bastante dissonante nos tempos atuais, mais preocupados que estamos, e com razão, no aprofundamento da igualdade ética e jurídica entre os sexos.

Trata-se, por outro lado, de uma busca de sentido para as diferenças sexuais na construção das identidades masculina e feminina. Acontece que colocar-se como objeto do desejo masculino parece ser algo muito distante no imaginário de algumas mulheres, como os exemplos retratados nas vinhetas indicam. No entanto, a "realidade" apontada por Soler, isto é, o fato de que, sem o desejo masculino, não há ereção e não há cópula, permanece organizando o posicionamento sexual masculino e feminino na contemporaneidade, como ocorre, aliás, desde tempos imemoriais. Não há, portanto, como esquivar-se da questão das diferenças sexuais e das representações que cada cônjuge constrói sobre elas.

Certamente, as dificuldades sexuais conjugais são muito variadas e a indisponibilidade sexual da mulher é apenas um exemplo delas. Permanece, no entanto, o fato de que, em psicanálise, só a escuta do caso em questão pode levar à sua elucidação. E para haver escuta da problemática sexual conjugal nos atendimentos de casal faz-se necessária uma reflexão cuidadosa sobre o arcabouço teórico que a sustenta. O problema é que, como disse Green, "há uma ausência da sexualidade nos instrumentos conceituais que deveriam iluminar nossas ideias" (1995, p. 217).

 

Referências

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Clulow, C. (Ed.). (2009). Sex, attachment and couple psychotherapy: psychoanalytic perspectives. London: Karnac.         [ Links ]

Fonagy, P. (2009). Foreword. In C. Clulow, Sex, attachment and couple psychotherapy: psychoanalytic perspectives (pp. XVII-XXM). London: Karnac.         [ Links ]

Freud, S. (1955). The technique of psychoanalysis [An outline of psychoanalysis]. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. 23, pp. 172-182). London: The Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1940)        [ Links ]

Green, A. (1995). Has sexuality anything to do with psychoanalysis? The International Journal of Psychoanalysis, 76(5),217-229.         [ Links ]

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Nominé, B. (2007). O sintoma e a estrutura familiar. Stylus, 15,45-56.         [ Links ]

Soler, C. (1998). A psicanálise na civilização (V. A. Ribeiro & M. B. de Motta, Trads.). Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Thorstensen, S. (2016). Trabalhos psíquicos na conjugalidade: a indisponibilidade sexual da mulher como queixa conjugal. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sonia Thorstensen
Rua Bueno Brandão, 250, ap. 91
04509-021 São Paulo, SP
Tel.: 11 3842-6383
sthorstensen@terra.com.br

Recebido em 23.05.2017
Aceito em 08.06.2017

 

 

1 A experiência clínica sobre a qual se baseiam estas considerações não inclui relações homoafetivas, razão pela qual o termo conjugal é aqui referido aos vínculos heterossexuais.

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