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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo Apr./June 2017

 

FAMÍLIAS

 

Subjetividades em transição, parentalidades contemporâneas: diversidade e diferença

 

Subjectivities in transition. Contemporary parenthood: diversity and difference

 

Subjetividades en transición, parentalidades contemporáneas: diversidad y diferencia

 

Subjectivités en transition parentalités contemporaines: diversité et différence

 

 

Letícia Glocer FioriniI; Tradução Julia Tomasini

ICo-chair para a América Latina do Comitê de Estudos de Diversidade Sexual e de Gênero, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Professora do mestrado Estudos Interdisciplinares da Subjetividade, da Universidade de Buenos Aires (UBA). Ex-presidente da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Foi diretora de publicações de IPA e da APA. Publicou os livros Lo femenino y el pensamiento complejo e La diferencia sexual en debate, além de vários artigos sobre sexualidade feminina, maternidade e diversidade sexual

Correspondência

 

 


RESUMO

As sociedades contemporâneas, principalmente no Ocidente, atravessam importantes mudanças referentes às normativas que regem a organização dos laços sociais, mudanças que se expressam no que a autora denomina subjetividades em transição. Distintos tipos de família se fazem presentes: monoparentais, reconstituídas e/ou constituídas por casais que adotam outras expressões de sexualidade e gênero, que não pertencem às legalidades vigentes. Seus efeitos nas parentalidades contemporâneas são abordados. Considera-se o efeito das biotecnologias através de diferentes variantes de fertilização assistida, especialmente quando são incluídos um terceiro e outros elementos alheios com seus eventuais efeitos. Reflete-se também sobre os efeitos da ciber/tecnocultura na produção de subjetividade, nesse espaço gerado entre o humano e a máquina. Propõe-se distinguir entre os conceitos de diversidade e diferença e revisar os dispositivos, subjetivos e intersubjetivos, que geram diferença simbólica e que implicam o reconhecimento da alteridade. Sugere-se que se excedam os limites do pensamento binário em prol de um pensamento triádico. A autora revisa as noções de desejo de filho e função paterna à luz das parentalidades contemporâneas, convencionais ou não, e sustenta que a categoria diferença num sentido ampliado pode estar incluída no psiquismo dos pais, muito além de sua orientação sexual.

Palavras-chave: parentalidades contemporâneas, desejo de filho, função paterna, biotecnocultura, ciborgue, diversidade e diferença


ABSTRACT

Contemporary societies, especially in the Western world, have experienced important changes regarding norms that rule the organization of social bonds. These changes are expressed in what the author has called subjectivities in transition. We may find different types of families: one-parent families, reconstituted families, and/or families constituted by couples who adopt other expressions of sexuality and gender which are not according to the laws in force. This paper studies their impact in contemporary parenthood. In her paper, the author takes into consideration the impact of biotechnology through different sort of assisted fertilization, particularly the use of a third person and how it may affect the parenthood. She also writes a reflection on the impacts of the techno-cyberculture in the development of subjectivity in this space which has arisen between human and machine. The author's purpose is to distinguish diversity from difference, and revising the subjective and intersubjective apparatus as well. This apparatus generates a symbolic difference and results in recognizing alterity. The author suggests that the limitations of the binary thinking be overcome in order to produce a triadic thinking. The author revises notions of child's desire and the paternal function in the light of contemporary parenthoods, which may be conventional or not. She defends the idea that difference, as category in an ample sense, may be included.

Keywords: contemporary parenthood, child's desire, paternal function, biotechnological culture, cyborg, diversity and difference


RESUMEN

Las sociedades contemporáneas, principalmente en Occidente, atraviesan importantes cambios en cuanto a las normativas que rigen la organización de los lazos sociales. Se expresan en lo que la autora denomina subjetividades en transición. Distintos tipos de familias se hacen presentes: monoparentales, ensambladas y/o constituidas por parejas que encarnan otras expresiones de la sexualidad y el género, que se apartan de las legalidades vigentes. Se abordan sus efectos en las parentalidades contemporáneas. Se considera el efecto de las biotecnologías a través de distintas variantes de fertilización asistida, especialmente cuando hay inclusión de un tercero y eventuales efectos de ajenidad. Asimismo, se reflexiona sobre los efectos de la tecno-cibercultura en la producción de subjetividad, en ese espacio que se genera entre lo humano y la máquina. Se propone distinguir entre los conceptos de diversidad y diferencia y revisar los dispositivos, subjetivos e intersubjetivos, que generan diferencia simbólica y que implican el reconocimiento de la alteridad. Se sugiere exceder los límites del pensamiento binario en pos de un pensamiento triádico. La autora revisa las nociones de deseo de hijo y función paterna a la luz de las parentalidades contemporáneas, convencionales o no, y sostiene que la categoría diferencia en un sentido ampliado puede estar incluida en el psiquismo de los padres, más allá de su orientación sexual.

Palabras clave: parentalidades contemporáneas, deseo de hijo, función paterna, biotecnocultura, ciborg, diversidad y diferencia


RÉSUMÉ

Les sociétés contemporaines, surtout à l'Occident, passent par d'importants changements concernant aux normes qui régissent l'organisation des liens sociaux. Elles sont exprimées dans ce que l'auteur appelle subjectivités en transition. Différents types de famille se font présents: monoparentales, reconstitués e/ ou constitués par des couples qui adoptent d'autres expressions de la sexualité et de genre qui n'appartiennent pas à la législation en vigueur. On aborde leurs effets dans la parentalité contemporaine. On considère l'effet des biotechnologies par de différentes variantes de fertilisation assisté, en spécial lorsqu'il y a l'inclusion d'un tiers et les éventuels effets de s'aliéner. On réfléchit aussi sur les effets de la techno-cyberculture dans la production de subjectivité, dans cet espace généré entre l'humain et la machine. On propose distinguer entre les concepts de diversité et différence et revoir les dispositifs subjectifs et intersubjectifs qui génèrent une différence symbolique et qui impliquent la reconnaissance d'altérité. On suggère que l'on excède les limites de la pensée binaire en vue d'une pensée triadique. L'auteur revoit les notions de désir de fils et la fonction paternelle à la lumière des parentalités contemporaines, conventionnelles ou non, et soutient que la catégorie différence dans un sens élargi peut être inclus dans le psychisme des parents, au-delà de son orientation sexuelle.

Mots-clés: parentalités contemporaines, désir de fils, fonction paternelle, bio-technoculture, cyborg, diversité et différence


 

 

As sociedades contemporâneas, principalmente no Ocidente, atravessam mudanças significativas em relação às normativas que regem a organização dos laços sociais, ao incremento em progressão geométrica das tecnologias e às inéditas formas de comunicação como resultado do desenvolvimento ininterrupto dos mundos virtuais. Dessa forma, a vida em comum tem experimentado importantes mudanças, que se expressam no que poderiamos chamar de subjetividades em transição.

Essa trama é indissociável da influência de variados fatores. Por um lado, a queda de ideais coletivos próprios da segunda metade do século xx é correlativa ao auge dos individualismos. Os ideais da familia nuclear também perderam seu prestigio, deparamo-nos com diversas expressões da sexualidade e a identidade de gênero é questionada. Por outro lado, o auge da globalização - com seus aportes e problemáticas - coexiste com as diversidades culturais. Essa coexistência entre a globalização e o multiculturalismo pode produzir conflitos e fenômenos de violência de diferentes naturezas.

Nesse contexto, surgem diversos tipos de familia: monoparentais, reconstituidas e/ou constituidas por casais que representam outras expressões da sexualidade e do gênero, que se distanciam das normas vigentes. Essas apresentações constituem um desafio que nos induz a abordar seus efeitos nas parentalidades contemporâneas.

Todas essas questões indicam que a organização social e cultural contemporânea está em transição. Não pretendemos abordar o tema emitindo juizos de valor. Nossa ideia é analisar o impacto na constituição da subjetividade sem adotar um posicionamento nostálgico, mas sem também defender uma visão acritica a esse respeito.

 

Parentalidades, biotecnologia e cibercultura

Os avanços da biotecnologia mostram progressos antes impensáveis, ligados a novas variantes de configuração familiar. As técnicas de reprodução assistida atuais significaram um avanço enorme sobre as possibilidades de realizar maternidades e paternidades antes impossiveis. Isso, porém, não se aplica apenas à familia nuclear, tradicional, heterossexual, mas também a outras familias, não convencionais, formadas por casais homossexuais, travestis e/ou transexuais, ou mesmo pessoas que não aceitam ser incluidas em nenhum dos dois gêneros clássicos: masculino ou feminino.

A fertilização assistida permite que esses casais tenham filhos biológicos, além de adotivos, o que passou a fazer parte dos consensos desta época.

Mitos e ficções sobre a procriação atravessam a história da humanidade, tentando proporcionar uma explicação para os mistérios da vida e da reprodução. As diferentes mitologias e religiões oferecem suas explicações. Zeus dá vida a uma figura de barro, os deuses "criam" o homem à sua imagem e semelhança. Por outro lado, a ficção científica, com seu caráter premonitório, torna-se cada vez menos ficcional, e nesse contexto a cibernética fornece novos argumentos, que transitam entre a realidade e a ficção.

Mudam as regras do contrato social? Devemos levar em consideração que os mitos e narrativas atuais sobre a procriação, apoiados na biotecnologia e na tecnociência em geral, propõem formas de reprodução não tradicionais, nas quais o encontro amoroso e sexual dos corpos não é mais imprescindível. Ainda mais: nem sequer é necessário fornecer os próprios gametas para procriar. Acrescenta-se ao anteriormente dito que não existe mais um limite de idade definido para a procriação.

 

Sobre a procriação e as biotecnologías

As novas formas de reprodução assistida trazem questões cruciais sobre as legislações e normas das sociedades atuais. Isso inclui tanto famílias quanto cada sujeito individualmente. Surgem importantes indagações que dizem respeito ao campo da psicanálise, sobre a origem da vida humana, o papel de homens e mulheres na procriação, as relações entre os gêneros, as caraterísticas (invariáveis ou não) do contrato social, as categorias de filiação, as mulheres e sua capacidade de decisão sobre seus corpos, o status dos embriões congelados e não utilizados. Incluem-se nisso a participação de outras pessoas na gestação pela gestação de substituição (barriga de aluguel ou doação temporária do útero), bem como pela doação de óvulos e esperma, e, quem sabe, o desenvolvimento de novas formas que ainda não conhecemos, mas que já podemos imaginar, como a gestação in vitro. Do ponto de vista psicanalítico, precisamos nos questionar sobre os efeitos disso na novela familiar, na estruturação da cena primária, na fantasmática sobre a origem da vida e a procriação, na noção de diferença sexual vigente, descritas por Freud em artigos imprescindíveis como "Sobre as teorias sexuais das crianças" (1908/1986d), "Análise de uma fobia em um menino de cinco anos" (1909/1986a) e "A novela familiar do neurótico" (1909[1908]/1986c). Será que os conteúdos e narrativas continuam sendo os mesmos? Caso não, seria apenas uma mudança formal, que não afetaria uma estrutura invariante? E como a fantasmática do próprio analista a respeito desses temas influi na produção de interpretações ou construções no curso de uma análise?

Há diversas propostas de fertilização assistida e de técnica de acordo com as problemáticas em questão. Os efeitos serão cada vez mais complexos. Em relação ao psiquismo, não é o mesmo utilizar gametas próprios ou doados, ou recorrer à gestação de substituição. A participação de outros corpos, de um material biológico alheio, demanda um trabalho de elaboração diferente, sempre atrelado à singularidade de cada paciente. Pensamos que, nesses casos, a combinação de partes de corpos através da doação pode dar espaço a efeitos psíquicos de caraterísticas ominosas, pela intervenção de material alheio, estranho, no próprio corpo - fator que deve ser considerado para a sua elaboração psíquica. Chamamos essas combinações de maternidades epaternidades multicêntricas (Glocer Fiorini, 2001b, 2015). Em outras palavras, há efeitos benéficos nessas novas técnicas de fertilização assistida, pois permitem que o desejo de filho seja satisfeito naqueles que padecem de alguma impossibilidade para sua realização, mas também há angústias próprias da intrusão de um corpo estranho, alheio, no próprio corpo, e é necessário detectá-las para sua elaboração simbólica.

 

Sobre a ciber/tecnocultura

No século XIX, Mary Shelley criou, em Frankenstein, um ser constituído entre o humano e a máquina, antecipando o que seria desenvolvido com a cibernética, no âmbito da tecnocultura. No século passado, o cinema e a literatura propuseram outras formas de reprodução humana, gestação e parto nos humanos: filhos como um produto gerado por computadores-mãe (como no filme Matrix), assim como outras formas de união do espermatozoide com o óvulo. Nessas antecipações, sempre aparece a intervenção de um terceiro, um estranho, que pode ser um extraterrestre, um inseto, uma máquina ou uma combinatória digital. O papel do terceiro é visto como ameaçador, e aparecem outras noções sobre a diferença sexual que desafiam a clássica união heterossexual.

Os quadrinhos infantis da atualidade refletem aspectos dessas diferentes formas de reprodução quando descrevem, por exemplo, mundos de super-heróis onde há depósitos de óvulos, que são selecionados, colhidos e distribuídos por "repartidores de sementes" como parte dos "impostos corporais obrigatórios", para depois serem gestados em úteros de alienígenas escravas. Isso já faz parte da cultura popular, foi naturalizado e incluído progressivamente na construção psíquica das futuras gerações. Sem dúvida, essas antecipações são expressões biopolíticas e de relações de poder.

Na década de 1980, Donna Haraway (1984/1991) propôs a figura do ciborgue, um ser misto entre o humano e o tecnológico, como metáfora de novas formas de subjetivação. Por sua vez, Braidotti (2004) argumentou que estamos na era do pós-humano, ao se referir a esses fenômenos que extrapolam a noção do humano vigente até poucas décadas atrás.

Todas essas questões têm efeitos psíquicos substanciais na construção de subjetividade. E isso remete tanto às narrativas coletivas e ao exercício de funções parentais nesse contexto quanto à construção de subjetividade nas crianças que são concebidas nessas condições.

Nessa situação, enfatizamos as interseções próprias da cultura atual, entre variações de famílias e parentalidades não convencionais e as possibilidades que oferecem a biotecnologia, a informática e a cultura virtual em geral.

 

Famílias e parentalidades não convencionais: diversidade e diferença

Ao pensar na produção de subjetividade em referência a configurações familiares e parentalidades no século XXI, é preciso centrar-se em como são gerados os fenômenos de subjetivação em um sentido simbólico. Para tanto, abordaremos alguns pontos de grande importância. Primeiro, vamos estabelecer uma distinção entre as categorias de diversidade e diferença (Glocer Fiorini, 2001b). Depois, revisaremos os dispositivos subjetivos e intersubjetivos que geram diferença simbólica.

A diversidade diz respeito à pluralidade de apresentações no âmbito das configurações familiares, assim como de apresentações subjetivas e suas variantes vinculadas a sexualidade e gênero, fato distintivo das culturas atuais no Ocidente. O conceito de diversidade tem outras acepções, relacionadas à diversidade étnica, religiosa, cultural, entre outras, mas nesse contexto utilizaremos a referente a sexualidade e gênero.

Em contrapartida, a noção de diferença remete a um valor simbólico, embora tenha também uma vertente imaginária. O acesso à diferença se sustenta em distintos planos: linguístico, sexual, de gênero, entre outros, tendo como base o reconhecimento da alteridade (Glocer Fiorini, 2015). Isto é, trata-se de uma noção multideterminada. O reconhecimento da diferença sexual é uma de suas facetas, desde que: (a) transcenda os juízos de valor sobre os gêneros; (b) permita uma revisão do complexo de castração na menina, a inveja do pênis e suas determinações.

Em outras palavras, e como mencionamos anteriormente, a diferença sexual não é a única chave para o acesso à categoria diferença. A construção de subjetividade simbólica vai além do acesso à diferença sexual, embora a inclua. Implica seu reconhecimento, mas requer uma revisão dos conteúdos com os quais a feminilidade e a masculinidade são interpretadas, assim como das diversas resoluções do complexo de Édipo que Freud propõe para a menina. Supõe, então, que essa complexidade de variáveis envolvidas seja reconhecida. Caso contrário, acaba-se ideologizando a posição feminina e, também, excluindo outras orientações sexuais e de gênero da organização simbólica dos laços sociais e os filhos criados por essas famílias.

Se considerarmos a categoria diferença no sentido amplo antes mencionado, a nosso ver ela poderia estar incluída no psiquismo dos pais, para além de sua orientação sexual. Nessa linha, tanto o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero quanto a capacidade de gerar diferenças simbólicas demandam o estabelecimento de uma relação entre ambas as noções. Essa relação pode ser de concordância ou discordância. Diversidade e diferença podem caminhar juntas ou não.

Para pensar essa proposta, destacamos a necessidade de revisar certas noções dentro do âmbito de outras lógicas, como o paradigma da complexidade (Morin, 1990/1995), situando nosso pensamento em outro marco epistemológico, para além das dicotomias excludentes.

Por isso, em outros trabalhos (Glocer Fiorini, 1994, 2001b, 2015) colocamos que, se pensarmos a construção de subjetividade sexuada em termos triádicos, poderemos abordar essa questão de forma diferente. Trata-se de incluir o papel dos corpos, que sempre estão significados no campo do humano; das identificações, inclusive as de gênero, que fazem a identidade de gênero; e da pulsão e do desejo, sempre considerados em relação ao objeto. Essas variáveis coexistem em tensão e não alcançam uma síntese harmônica, o que nos faz pensar na clínica.

No marco da categoria diferença, também propusemos pensá-la na intersecção de três variáveis: heterogeneidade dos corpos sexuados, diferença de gênero (baseada em identificações) e diferença sexual. Essa tríade está atravessada pelas categorias de diferença segundo o consenso cultural, que precisa ser desconstruído.

Além do mais, essas variáveis cruzam com diferenças linguísticas e discursivas e são conceitualizadas a partir de diferentes ângulos: a différance de Derrida (1996/1998), o diferendo de Lyotard (1983), a distinção heideggeriana (1988), que aportam elementos fundamentais para entender a categoria diferença em um sentido simbólico e seu impacto nos processos de subjetivação. Isso se aplica à diversidade sexual e de gênero, assim como a filhos criados nessas famílias.

Os consensos epocais sobre a diferença, por sua vez, geram resistências, como as expressas no campo da diversidade sexual e de gênero.

No interjogo entre essas variáveis, entre consensos e resistências, a subjetividade é construída. Por isso, sublinhamos que essa construção está relacionada com o reconhecimento da diferença simbólica, expressa fundamentalmente no reconhecimento da outridade, e entendendo a categoria diferença, como já dissemos, em um sentido multideterminado por diferentes variáveis.

Além disso, é preciso estabelecer distinções em relação a uma vertente imaginária da categoria diferença, que confere narrativas, estereótipos, teorias explícitas e implícitas sobre ela - vertente distinta de entender a diferença como uma operação simbólica que por si só é assexuada.

Por outro lado, nessa trama de cruzamentos, é preciso enfatizar também que nem tudo é simbolizável. A diferença sexual em si mesma é um enigma que geralmente desliza para o feminino (Glocer Fiorini, 2015). Isto é, o feminino concentra os aspectos enigmáticos da diferença. No caso do pequeno Hans (Freud, 1909/1986a), por exemplo, paradigmático das teorias sobre a diferença sexual na obra freudiana, a angústia de castração do menino é deslocada para o campo do feminino. Assim, a diferença passará a ser interpretada na menina como falta.

Em outras palavras, para pensar como será inscrita a diferença entre pais e filhos, é imprescindível analisar de que maneira são incluídas as múltiplas variáveis em jogo. Nesse contexto, também está presente a forma como elas estão inscritas em cada psicanalista, o que terá efeitos na clínica.

Será preciso uma revisão do complexo de Édipo clássico, que responde à estrutura da família nuclear, em prol de sua ampliação (Glocer Fiorini, 2014).

Para tanto, o foco será: (a) a noção de desejo de filho; (b) a homologação da categoria função paterna com a função simbólica, e seus mal-entendidos. Ambos no contexto da narrativa edípica.

 

Desejo de filho e função paterna

Freud explicou o desejo de filho fundamentalmente a partir da subjetividade feminina, através da inveja do pênis. Ele propôs que fosse pensado por meio da equação simbólica pênis-bebê (Freud, 1917/1986e).

Então, como entender esse desejo em homens ou a partir de outras subjetividades cuja sexualidade ou gênero não cabem dentro das normas aceitas? Isso é parte dos desafios atuais da psicanálise, porque envolve duas linhas divergentes: ou pensamos em crianças que não podem acessar o simbólico em um contexto de laços sociais - porque seus pais, por sua vez, tampouco o fizeram (caso lhes fosse atribuído o inequívoco diagnóstico de perversão ou psicose) -, ou então temos que pensar em outra forma de conceitualizar o desejo de filho, o que também supõe a necessidade de rever diagnósticos imutáveis.

Temos proposto (Glocer Fiorini, 2001a, 2001b, 2015) que, embora o desejo de filho possa responder, em algumas mulheres, a uma substituição da inveja do pênis (Freud, 1925/1984, 1933[1932]/1986b), também podemos pensá-lo como forma de produção desejante (Deleuze & Parnet, 1980). Para tanto, utilizamos a proposta de Deleuze de que o desejo não é definido por uma carência essencial, mesmo que suponha vazios, que não deveriam ser confundidos com carência e que fazem plenamente parte do desejo. Segundo o filósofo, a carência remete a uma positividade do desejo, e não o desejo a uma negatividade da carência. Isso poderia ser aplicado a outras formas de conceitualizar o desejo de filho em mulheres, bem como nas diversidades sexuais, e ainda explicar melhor o desejo de filho no homem.

A nosso ver, na clínica existem as duas possibilidades: em termos freudianos, é possível constatar, na histeria, que o filho pode ser produto de uma substituição da inveja do pênis; mas há também outra interpretação, que julgamos importante ser considerada no campo psicanalítico (Glocer Fiorini, 2001a, 2015) - o filho como produção desejante, portando um valor simbólico.

A noção de produção desejante permite pensar ainda em um acervo simbólico da mãe (Benjamin, 1995/1997) que possa promover uma separação com o filho, em termos de função de terceiro, evitando dessa forma reificar a função paterna como único acesso a uma função terceira, simbólica (Glocer Fiorini, 2013, 2015). Além do mais, como já observamos, isso permitirá que nos aproximemos psicanaliticamente, a partir de outra perspectiva, da análise do desejo de filho em casais não convencionas e nos homens.

 

Subjetividades em transição

Como pensamos a noção de sujeito no mundo contemporâneo? Julia Kristeva (1986) trouxe a noção de sujeito em processo, que procura, a nosso ver, incluir a categoria de movimento. Não há um sujeito transcendental. Poderíamos dizer que tampouco há uma família transcendental.

Deleuze (1980), por sua vez, falou de sujeito em devir. É nessa linha que propomos o conceito de subjetividades em transição. Ele é abordado a partir de dois pontos de vista: por um lado, remete à ideia de que toda construção de subjetividade é interminável, o que se refere também ao conceito de mudança psíquica; por outro, alude a mudanças produzidas em tempos de transformações culturais e sociais que inevitavelmente afetam a subjetividade.

Ao falar em subjetividades em transição, também nos questionamos sobre as teorias do sujeito, a psicanalítica inclusive, e as possibilidades de explicar e acompanhar essas mudanças, que - é importante ressaltar - são irreversíveis. Não é possível retornar à família nuclear de forma exclusiva, ao pai que organiza as relações familiares e lhes dá o valor simbólico como único meio de acesso a uma trama de laços sociais, se levarmos em conta o contexto que desenvolvemos aqui. Trata-se de um desafio à teoria e à clínica que é preciso abordar.

Pontalis (1982) afirma que, atribuída uma identidade sexual, uma vida inteira não é suficiente para respondermos pessoalmente, cada um ou uma de nós, às respostas que se apresentavam como já dadas.

Nessa linha, que reforça a noção de subjetividade em movimento, Guattari (1996) sublinha que universos múltiplos habitam a subjetividade.

Em síntese, as culturas atuais apresentam mudanças significativas nas normativas que regem os laços sociais. Para alguns, as caraterísticas narcisistas das subjetividades ficam mais acentuadas no contexto da ciber/tecnocultura e da biotecnologia, chegando inclusive a prognósticos apocalípticos.

Entretanto, há outras vias para pensar o surgimento de outras subjetividades, desejos e formatos familiares. Há questionamentos necessários em relação a teorias e práticas que defendem a iniquidade entre os gêneros. Tudo isso é parte do humano. Para alguns, como mencionamos, entramos na era do pós-gênero e do pós-humano (Braidotti, 2004); para outros, trata-se de abordar o que foi chamado de hiper-humanismo tardio.

Adquirem relevância instâncias que demandam o reconhecimento da alteridade e uma ética da vida em comum. Nesse sentido, podemos pensar em um movimento prospectivo em que Eros participa, diferente das vertentes tanáticas e apocalípticas que alguns prognosticam para as sociedades contemporâneas. O tanático está relacionado, fundamentalmente, com a violência sem fim e as guerras utilizadas pelas estruturas econômicas e de biopoder, e não com as buscas atribuídas ao percurso do desejo, às subjetividades em transição.

Em outras palavras, existe um desafio no campo psicanalítico, já que somos atravessados, simultaneamente, por demandas de Eros e por aspectos destrutivos, tanáticos, que expressam as contradições das sociedades e das culturas contemporâneas.

 

Referências

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Correspondência:
Leticia Glocer Fiorini
Zapiola 1646, piso 2
Caba (1426) Buenos Aires, Argentina
Tel.: 54 11 4551-5440
lglocerf@intramed.net

Recebido em 03.05.2017
Aceito em 18.05.2017

 

 

Revisão técnica Abigail Betbedé

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