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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo Apr./June 2017

 

DIÁLOGO

 

A família de Kafka, ou Da educação de crianças no interior de um organismo animal1

 

Kafka's family, or On the education of children inside an animal organism

 

La familia de Kafka, o De la educación de niños en el interior de un organismo animal

 

La famille de Kafka, ou De l'éducation des enfants à l'intérieur d'un organisme animal

 

 

Enrique MandelbaumI; Belinda MandelbaumII

IPsicanalista, psicólogo, membro filiado do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutor em literatura comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Autor de Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível
IIProfessora associada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade, psicanalista, autora de Psicanálise da família e Trabalhos com famílias em psicologia social

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de duas cartas de Kafka à sua irmã, tecem-se comentários a respeito da concepção de família que tinha o escritor, que via nesta uma fonte originária de violência. Situa-se a origem dessa concepção na própria experiência de vida familiar de Kafka e em suas reflexões a partir da literatura.

Palavras-chave: Franz Kafka, família, educação


ABSTRACT

The authors start from two of Kafka's letters to his sister. These letters are herein translated. The authors comment on the writer's conception of family, which he considered an original source of violence. This idea would be a result of Kafka's own experience of family life, as well as of his reflections on literature.

Keywords: Franz Kafka, family, education


RESUMEN

A partir de dos cartas, traducidas aquí, escritas por Kafka a su hermana, los comentarios se estructuran en la concepción de familia sostenida por el escritor, en la cual vio una fuente original de violencia. Los orígenes de esta concepción se basan en la propia experiencia de vida familiar del escritor y en sus reflexiones relacionadas con la literatura.

Palabras clave: Franz Kafka, familia, educación


RÉSUMÉ

À partir de la traduction ci-jointe de deux lettres de Kafka à sa soeur, on élabore des commentaires sur la conception de l'auteur sur la famille, où il voyait une source de violence. On situe l'origine de cette conception dans la propre expérience de Kafka en ce qui concerne la vie familiale et ses réflexions à partir de la littérature.

Mots-clés: Franz Kafka, famille, éducation


 

 

No outono de 1921, Kafka envia duas cartas para a sua irmã Elli Herrmann, nas quais, entre outros assuntos, aborda a questão da educação dos filhos. Quando Max Brod copiou, das cartas que estavam em posse da irmã de Kafka, os trechos antes apresentados,2 ele omitiu passagens que considerou menos importantes. Após a Segunda Guerra Mundial, Brod quis restaurar as cartas por inteiro, mas descobriu que os originais haviam desaparecido. Tudo o que nos restou são essas incríveis passagens, fragmentos de um todo maior que, ao serem retirados por Brod das cartas de que eram partes constitutivas, tiveram o mérito de sobreviver à destruição nazista, que consumiu milhões de homens e seus objetos pessoais.

A ideia de que se deva extrair os filhos de seu núcleo familiar para promover a sua educação não é nova e tampouco é o essencial do que Kafka insinua nesses fragmentos. Montaigne, no final do século XVI, no capítulo 26 do primeiro livro de seus Ensaios, "Da educação das crianças", já assinalava que "quem quiser fazer do menino um homem" deve levar em consideração que "a presença dos pais é nociva à autoridade do preceptor, a qual deve ser soberana" (1972, p. 83).

A família sempre foi o lugar privilegiado para o acolhimento das crianças em seus primeiros dias e anos de vida. Mas é bastante arraigada também a desconfiança de que a família seja capaz de percorrer com eficácia todo o caminho que leva, do menino e da menina, ao homem e à mulher. O familiar é o suporte sobre o qual a história cultural dos homens se constrói. Quem quiser participar ativamente dessa história, porém, deve ser capaz de atravessar a insidiosa membrana familiar e tornar-se parte do espaço público, lugar legítimo da construção humana, incluindo nesta a própria constituição de um novo núcleo familiar.

Em princípio, como sugerimos, parece que é sobre a educação das crianças que Kafka está pensando ao escrever essas cartas. E, num primeiro nível, assim o é. Mas a força da argumentação de Kafka não está na ideia de que os filhos devem ser educados pelo mundo, e não pela família. Isso, como também acabamos de sugerir, é de há muito quase que um lugar-comum entre os homens. O estranhamento que o texto suscita em nós advém de ele reivindicar à família o seu estatuto de organismo animal. Dentro da família, o humano penetra na sua dimensão animal. A ideia é assombrosa e vai na contramão de todas aquelas teses que atribuem à família o lugar privilegiado de construção do humano. E o terrível da argumentação de Kafka é que o contexto familiar também não é o lugar de atuação de singularidades humanas isoladas que pudessem dar fruição à sua animalidade. Não se trata de adultos e crianças agindo com autonomia, uns em relação aos outros. Todos são partes de um organismo, e portanto partes de um sistema a cujo equilíbrio estão submetidos - um sistema no qual as partes constitutivas essenciais, pais e filhos, assumem atribuições em nada equilibradas. Aos pais, cabe tudo; aos filhos, quando muito, sucumbir - não da maneira como o fariam no seio da sociedade, mas amaldiçoados ou destruídos se não assumirem a determinação de responder "a exigências totalmente determinadas e, mais ainda, aos termos ditados pelos pais".

O que Kafka expõe é uma compreensão bem pessoal sobre a dinâmica das relações em família, tentando trazer à cena as forças que mobilizam essa dinâmica e que certamente, se de fato operarem com a eficácia que Kafka lhes atribui, tornam imperiosa uma intervenção do mundo para, nas crianças, sustentar viva a potencialidade de virem a se transformar em sujeitos sociais plenamente constituídos. Kafka, por assim dizer, explicita a mecânica do organismo familiar, investigando os movimentos promovidos entre pais e filhos e as forças que produzem esses movimentos. E, assim, aqui o vemos transformado num psicanalista. Porque sua investigação o leva a ter que lidar com o intercâmbio afetivo que se dá entre as partes, deixando surgir a estrutura que tal intercâmbio promove, dentro da qual cada um dos implicados é dinamizado.

Kafka compreende o que ele denominou de organismo familiar como um sistema, um conjunto de elementos em relação, que se coordenam e funcionam como uma estrutura organizada. O que faz esse sistema ser um organismo é que a coordenação de todos os seus elementos realiza-se através de um meio comum. Diz Kafka: "os pais não são livres diante de seus filhos como sim o é um adulto diante de uma criança, porque se trata, no primeiro caso, de laços de sangue, do próprio sangue". Kafka opera na materialidade da metáfora do organismo familiar, como se este fosse um sistema que, à maneira de um organismo animal, de um corpo biológico complexo, tivesse, em torno dos órgãos que o compõem, um fluxo de irrigação sanguínea que mantivesse esses órgãos intimamente relacionados entre si. "É sangue do meu sangue", um membro pode dizer ao outro dentro desse organismo familiar - se bem que Kafka não esqueça o problema da "grave complicação: o sangue de cada um dos pais". Ao operar com tanta maestria no interior da metáfora do organismo, Kafka mantém-se nesses textos como o grande escritor que é. Ou seja, é no interior de sua atividade de escritor que Kafka se apresenta, através desses fragmentos, como um arguto psicanalista, explicitando o feixe de poderosas forças emocionais responsáveis pela configuração de um estado de coisas entre pais e filhos que é violento em sua essência.

Parece-nos interessante destacar as fontes das quais Kafka extrai o material com que a sua escrita opera. Em primeiro lugar, está a destinatária das cartas, sua irmã, sangue do seu sangue, e portanto alguém a quem pode narrar de forma sublimada uma experiência familiar pessoal, como que sob o mote você bem sabe do que eu estou falando. Ou seja, sob toda a abstração que a carta tem, falando de pais e filhos de uma maneira tão generalizada que atinge o mítico pai Cronos - que, na Teogonia, de Hesíodo, devora os filhos -, parece que se comunica à destinatária uma reflexão sobre a vida em família dos Kafka, a situação kafkiana por excelência. Bem sabe Kafka e bem sabe a sua irmã o quanto as inclinações para a escrita e seu modo de ser em nenhum momento ganharam do pai qualquer reconhecimento, a não ser o furor, um furor que, para Kafka, sempre beirou a repugnância por aquela criança, depois adulto, que teimava ou não podia configurar-se à forma de ser que o senhor Hermann Kafka acreditava ser a legítima para a vida em sociedade. Diante dessa almejada forma de ser, o pai se comportava como um zeloso funcionário que dá tudo de si para fazer bem feito, mas que, por obstinação do filho, deve arcar com um fracasso difícil de explicar para o mundo: um filho já adulto solteiro e dado a esquisitices tão exóticas quanto a de ser escritor. Vale a pena salientar, de passagem, que a sensibilidade de Kafka para o impacto da conflituosa dinâmica dele em seu seio familiar era tão grande que não erraríamos muito se afirmássemos que grande parte da maravilhosa e perturbadora obra ficcional de Kafka emerge, entre outras matrizes, de uma análise pessoal de sua vida em família. Mais do que espaços públicos, a obra de Kafka é ocupada por cenas familiares, em cujo interior a morte ronda à espreita, seja na forma de um veredicto promulgado pelo pai, em O veredicto, seja como o triste resultado de uma transformação inesperada, em A metamorfose. Definitivamente, em Kafka, a família não é o lugar de promoção da compreensão e do entendimento. É verdade que, no para além da família, no exílio de América, na vida urbana de O processo ou na aldeia de O castelo, as coisas não são mais fáceis. Mas, para Kafka, os espaços públicos são os lugares por excelência de busca - uma busca difícil de ser bem-sucedida porque o familiar lança as suas sombras para o coletivo. E, como em Kafka o poder e a violência autoritária materializam-se, antes de mais nada, em figuras tão concretas quanto a de um pai, o social, por assim dizer, emerge contaminado de toda essa desconfiança e poder de destruição que a incomunicabilidade é capaz de suscitar. Mapeia-se a dinâmica do poder do particular para o geral. Em Kafka, a família não é um instrumento através do qual uma determinada ideologia social põe-se em funcionamento. Kafka parece inverter esse modo de compreender as coisas. Em seus escritos, a família é núcleo originário de um modo de relação entre pais e filhos que conduz à alienação ou à solidão. Em Kafka, forças muito violentas atuam no interior da família, originariamente - uma violência que ele parece recuperar de textos tão fundantes quanto a Bíblia ou a Teogonia. De fato, em ambos esses textos fundantes de uma situação originária do homem, mítico-poético um - a Bíblia - e mítico o outro - a Teogonia -, o humano emerge de um núcleo familiar no qual se dinamiza também a violência, violência que já vimos na Teogonia e que, na Bíblia, emerge de forma tão explícita que poderíamos resumir todo o livro de Gênesis a uma luta sem tréguas entre irmãos. E se é para lembrar a violência entre pais e filhos, a passagem do sacrifício de Isaac pelo pai Abraão é insuperável. Aqui, o pai ergue uma faca diante do filho porque assim o exige a sua crença e porque é assim que as coisas entre os homens devem se dar. Desse ponto de vista, ser filho é ser sujeito de uma ação profundamente violenta, porque o novo ser que vem ao mundo deve, antes de mais nada, inserir-se numa história que o antecede. E o processo de incorporação, por um meio sociocultural e afetivo, de uma criança é violento, porque incide no âmago da constituição desse sujeito. É verdade que as coisas não podem ser de outro modo. Mas a mera atribuição de um nome a um bebê é um sinal demarcatório de propriedade, através do qual o sangue dos pais, para trabalhar no interior da metáfora kafkiana, encontra um novo meio para a expansão de sua corrente.

Kafka é, dos escritores do início do século XX, com certeza um dos principais a obrigar-nos a levantar suspeitas sobre todo e qualquer processo civilizatório. Talvez possamos traçar toda uma linha de afinidades das principais elaborações teóricas do século XX - que se caracterizam por manter uma atitude de suspeita diante das instituições responsáveis pela construção do humano, sejam estas o Estado, hospitais psiquiátricos, escolas etc. - com Kafka, que, ao explicitar o modo de funcionar da família, violento em sua essência, levou a figura do pai e sua autoridade às alçadas de um tribunal, arranhando assim o autoritário poder que, originariamente, lhe parecia ser de legítima propriedade. Os pais, depois de Kafka, devem se explicar. E diante dos filhos, por amor a eles (e melhor ainda se for só por respeito pelas almas humanas), devem se sentir pisando em ovos. Essa é, talvez, uma das ideias mais originais do século XX. E Kafka ajudou a consolidá-la. Todo o poder advém da figura paterna, mas esta, no fundo, não passa de um esmerado funcionário de uma maquinaria ideológica que o atravessa e o aprisiona.

A segunda fonte da qual Kafka retira os elementos de sua reflexão nessas cartas é o texto escrito por Swift no início do século XVIII, Viagens de Gulliver, especificamente o capítulo 6 desse livro, "Dos habitantes de Lilliput; do seu saber, das suas leis e costumes, da sua maneira de educar os filhos. A maneira de viver do autor nesse país. A sua defesa de uma grande dama". Swift, no livro, através do relato fictício de uma viagem a terras desconhecidas, cria um espaço textual que funciona à maneira de um espelho ao mesmo tempo irônico e alegórico, no qual emergem com destaque os traços característicos da sociedade de onde o viajante partiu. Essa descrição de usos e costumes de povos em territórios exóticos serve para explicitar o caráter especular crítico que o texto pode ter em relação ao contexto em que se insere. Cada texto é um território novo, como o são as paragens onde Gulliver aporta. Mas a exploração desse terreno possibilita a emergência de uma visão renovada do lugar de onde se parte, do contexto em que realizamos a leitura. Pelo menos, é assim que Kafka lê Swift e encontra nele os argumentos necessários para dizer à sua irmã que o melhor lugar para a educação de seu sobrinho não é o seio familiar, mas o mundo.

Literatura e experiência pessoal são os materiais com os quais Kafka opera para desvendar uma mecânica de forças atuantes na família que nós poderíamos nomear de mecânica kafkiana. Se Newton, por meio de sua mecânica, permitiu-nos observar e controlar as forças que atuam nos movimentos dos corpos, a mecânica kafkiana, tal como explicitada nesses fragmentos, permite-nos observar aspectos essenciais da dinâmica entre pais e filhos.

 

Referências

Brod, M. (1982). Kafka (C. F. Grieben, Trad.). Madrid: Alianza.         [ Links ]

Hesíodo. (1991). Teogonia: a origem dos deuses (J. Torrano, Trad.). São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

Kafka, F. (1977). Letters to friends, family and editors (R. & C. Winston, Trads.). New York: Schocken.         [ Links ]

Kafka, F. (1982). América (D. J. Vogelmann, Trad.). Madrid: Alianza.         [ Links ]

Kafka, F. (1986). O veredicto; Na colônia penal (M. Carone, Trad.). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Kafka, F. (2000a). O castelo (M. Carone, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Kafka, F. (2000b). A metamorfose (M. Carone, Trad.). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Kafka, F. (2000c). O processo (M. Carone, Trad.). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Montaigne, M. (1972). Ensaios (S. P. Milliet, Trad.). São Paulo: Abril.         [ Links ]

Swift, J. (1987). Viagens de Gulliver (O. M. Cajado, Trad.). Rio de Janeiro: Globo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Enrique Mandelbaum
Rua Maranhão, 554, conj. 14
01240-904 São Paulo, SP
Tel.: 11 3661-9837
enriquemandelbaum@gmail.com

Belinda Mendelbaum
Av. Prof. Mello Moraes, 1721, bloco A
05508-030 São Paulo, SP
Tel.: 11 3091-4184
belmande@usp.br

Recebido em 11.05.2017
Aceito em 26.05.2017

 

 

1 Trabalho original publicado em 2002: Psicologia USP, 13(2),143-150.
2 Ver, neste volume, "De duas cartas de Kafka à sua irmã Elli sobre a educação de crianças".

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