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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.2 São Paulo Apr./June 2017

 

RESENHAS

 

Arte, literatura e os artistas: obras incompletas de Sigmund Freud

 

 

Renato Tardivo

Psicanalista e escritor. Doutor em psicologia social da arte pela Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros, do ensaio Porvir que vem antes de tudo: literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê; Fapesp)

Correspondência

 

 

Autor: Sigmund Freud
Tradutor: Ernani Chaves
Editora: Autêntica, Belo Horizonte, 2015, 344 p.
Resenhado por: Renato Tardivo

 

 

Mistério interminável

A relação de Freud com a arte foi marcada por ambiguidades. Em uma vertente, ele se valeu da arte e do trabalho do artista a fim de validar a teoria que estava criando. Em outra, ele parece privilegiar a correspondência entre a arte e a psicanálise, pois ambas se prestam a explorar os mistérios da alma humana.

No volume Arte, literatura e os artistas, das Obras incompletas de Sigmund Freud, com tradução do alemão feita por Ernani Chaves, o leitor encontrará as duas tendências. O volume reúne praticamente todos os textos de Freud dedicados ao tema, à exceção de "O estranho" e do ensaio sobre a Gradiva, os quais, segundo o prefácio do tradutor, estarão em outro volume.

O primeiro texto é um excerto curto, anexo a uma carta a Fliess (31 de maio de 1897). Nele, Freud compara as fantasias histéricas aos mecanismos da criação poética: "Shakespeare tem razão ao igualar criação poética e delírio" (p. 43). Essa acepção, talvez majoritária ao longo de sua obra, é a que está contida no capítulo (aqui traduzido como) "O poeta e o fantasiar" (1908): a arte enquanto sublimação de desejos inconscientes reprimidos. Em vez de transformá-los em sintomas, os artistas dariam forma a esses desejos, isto é, os sublimariam, de modo a serem aceitos pela cultura.

Um dos principais textos nessa direção é o longo ensaio Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (1910). Freud procura resolver os enigmas que a obra de arte coloca por meio de sua teoria em construção, aplicando a psicanálise à obra de arte e ao trabalho do artista, testando e buscando validar conceitos. O fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty, no ensaio "A dúvida de Cézanne", faz ressalvas a esse uso de Freud, muitas vezes arbitrário, mas também reconhece a sua importância. De acordo com o filósofo, "o sentido de sua obra [do artista] não pode ser determinado por sua vida" (2004, p. 125). Ao contrário, é a "obra por fazer [que] exigia essa vida" (p. 136).

A respeito das observações de Freud sobre Leonardo, ele escreve:

A psicanálise não é feita para nos dar, como as ciências da natureza, relações necessárias de causa e efeito, mas para nos indicar relações de motivação que, por princípio, são simplesmente possíveis. Não imaginamos o fantasma do abutre em Leonardo, com o passado infantil que ele recobre, como uma força que determinou seu futuro. Trata-se, antes, como a palavra do áugure, de um símbolo ambíguo que se aplica antecipadamente a várias linhas de acontecimentos possíveis. (p. 141)

Amparado, entre outros autores, em Merleau-Ponty, João A. Frayze-Pereira (2010) discute o texto dedicado a Leonardo e "O Moisés de Michelangelo" (1914) (também presente nesta coletânea), diferenciando a psicanálise tomada em sua aplicação, ou seja, a psicanálise aplicada, daquela tomada em sua implicação, a psicanálise implicada.

Emblema da psicanálise implicada seria o texto dedicado ao Moisés, no qual o psicanalista trabalha analiticamente de modo a "superpor trabalho de sonho e trabalho de criação, interpretação do sonho e interpretação da obra de arte" (Frayze-Pereira, 2010, p. 79). Em suma, Freud faz uma leitura da escultura que aponta para a sua sobredeterminação. Desse ponto de vista, a interpretação do espectador é inerente à leitura que fará da obra. Há, portanto, uma analogia entre o trabalho criativo do artista e as interpretações do psicanalista.

Célebre nesse sentido é a carta que Freud endereçou ao escritor Arthur Schnitzler. Nela, o psicanalista confessa encontrar no escritor o seu duplo. Essa carta, que não veio a público enquanto Freud esteve vivo, revela o seu temor a respeito da aproximação entre o trabalho do artista e o trabalho do psicanalista. Homem da ciência que foi, sabemos que Freud rompe com ela, mas procura a todo tempo reconciliar-se.

Curiosamente, o único prêmio que recebeu em vida foi o Goethe, prêmio dedicado a escritores. Sabemos que, em muitos de seus textos, Freud valeu-se de passagens do escritor alemão. No discurso lido por Anna Freud na ocasião do prêmio (1930), o último capítulo deste livro, ironicamente, Freud afirma que ter colocado o escritor na "condição de objeto da pesquisa analítica" (p. 313) não significava um rebaixamento. Uma vez mais, a obra e o trabalho do artista são objeto da teoria psicanalítica, que é capaz de esclarecer "o mistério do talento extraordinário que o torna artista" (p. 313). Freud recebe um prêmio concedido a escritores enquanto homem da ciência...

"Transitoriedade" (1916), outro texto do livro, é um artigo curto, mas muito importante. Nele, encontramos o Freud escritor em sua melhor forma. Com ares proustianos, o pai da psicanálise discorre poeticamente sobre a passagem do tempo. No ensaio, é abordada a temporalidade freudiana do après-coup, segundo a qual as inscrições do vivido são ressignificadas só depois de sua ocorrência factual. Eis uma forma interessante de pensar o atravessamento de Freud pela arte, também ele empreendendo uma série de ressignificações sobre o lugar da arte e o trabalho do artista. Após a leitura deste livro, talvez concluamos que, ao procurar desvendar os mistérios da alma humana, Freud nos ensinou que ela é um mistério interminável.

 

Referências

Frayze-Pereira, J. A. (2010). Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. São Paulo: Ateliê         [ Links ].

Merleau-Ponty, M. (2004). A dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, O olho e o espírito (P. Neves & M. E. G. G. Pereira, Trads., pp. 121-142). São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Renato Tardivo
Rua André Ampére, 153, conj. 63
04562-080 São Paulo, SP
rctardivo@uol.com.br

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