SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.51 issue3Between lyricism and despair: variations on the meanings of “boredom” author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo July/Sept. 2017

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Marina Massi

Editora

Correspondência

 

 

Mas como devemos abrir espaço para este tédio inicialmente inessencial e inapreensível? Somente através do fato de não estarmos contra ele, mas de nos aproximarmos dele e de deixarmos que ele nos diga o que quer afinal, o que passa com ele afinal. (Martin Heidegger)

 

Caros leitores e colaboradores,

O processo de montagem deste número sobre Tédio ocorreu num compasso de espera por artigos que não chegavam, diferentemente do número anterior - Famílias -, que se mostrou farto de trabalhos, quase pedindo uma nova seção, que bem poderia se chamar “Ainda famílias”.

Nesse vazio de artigos temáticos sobre o tédio, decidimos enviar uma carta-convite estimulando os colegas a pensar sobre o tema:

Tédio, melancolia, depressão, vazio existencial, ócio... As ciências humanas, incluindo a psicanálise, são convocadas a investigar e compreender com mais profundidade a presença desse nada na vida do sujeito contemporâneo.

Apesar de não ser exclusividade da subjetivação pós-moderna, o tédio tornou-se uma forma recorrente, chegando aos nossos consultórios pela queixa do sentimento de falta de sentido diante da vida, de latência do tempo e de vazio espacial.

Como entender o conceito de tédio em sua especificidade a partir das transformações radicais do processo cultural e social que forma o solo do momento histórico de nossa civilização, com a mudança em instituições como a família e em noções como a de gênero, com a globalização, com as novas tecnologias etc.?

Tédio é um tema que carrega muitas possibilidades de estudo: qual a diferença entre tédio, melancolia e depressão? O tédio, na contemporaneidade, pode ser entendido como uma nova forma de sofrimento, uma nova patologia (não como no-sologia psiquiátrica, mas no âmbito da cultura)?

O convite teve um efeito surpreendente, e recebemos vários artigos - da teoria à clínica -, revelando que muitos psicanalistas estão envolvidos com pesquisas e investigações clínicas sobre as múltiplas formas e modalidades de tédio e seu manejo na clínica psicanalítica.

A escolha editorial para a abertura da seção temática, com os artigos “Entre lirismo e desespero”, de Pedro Salem, e “O tédio na sociedade do trabalho total e diversão total”, de Paulo Emilio P. L. Cabral e Ana Maria Loffredo, tem a finalidade de situar os sentidos do tédio numa perspectiva dos processos históricos, sociais e psíquicos, partindo da modernidade. Ambos os artigos examinam o tédio sob a ótica das relações sociais e psicanalíticas.

A abordagem do tema segue do mais geral para dentro da sala de análise e permite ao leitor trabalhar dialeticamente as noções de tédio apresentadas pelos diversos autores deste número.

Os próximos artigos são teórico-clínicos. Em “O tédio e a clínica do vazio”, Marion Minerbo trabalha com a questão do tédio na pós-modernida-de, da crise das grandes instituições, delineando o território do mal-estar pós-moderno na clínica do vazio. A autora diz que “as formas de sofrer, em cada época e lugar, são consubstanciais às formas de ser” (p. 58) e cunha a noção de depleção simbólica, que permite “fazer a mediação entre a crise das instituições no nível social e o sofrimento psíquico individual” (p. 59). A reflexão psicanalítica implicada com sua época e lugar teve privilégio na montagem deste número, tendo em vista a indagação lançada pela carta-convite.

Os artigos “Do tédio à rêverie”, de Talya S. Candi, e “Tédio, luto e melancolia”, de Vera L. C. Lamanno-Adamo, vão direto para a sala de análise, contribuindo para o entendimento dos sentimentos de tédio na relação analítica, diferenciando-os de luto e melancolia, e examinam o tédio do analista na própria sessão.

O último artigo, “Tédio”, de Adriana Meyer B. Gradin e Luís Claudio Figueiredo, também aborda as diferenças entre tédio e melancolia. Afirma que o tédio é uma entidade nosológica autônoma e procura sistematizar três modalidades de tédio e seus possíveis manejos por parte do analista na clínica. Sustenta, numa afirmação mais categórica, que as modalidades de tédio que nomeia de tédio-defesa, tédio-branco e tédio-protesto “fazem parte de um campo maior, sendo exteriorizações de adoecimentos psíquicos por passivação” (p. 91). Ao ler esse artigo, o leitor recebe a notícia de que Figueiredo e Nelson Coelho Junior estão com um livro no prelo sobre o tema dos adoeci-mentos psíquicos por passivação.

A próxima seção, “Keynote papers”, é dedicada à cobertura do mais recente congresso da ipa, ocorrido em Buenos Aires, entre os dias 25 e 29 de julho deste ano, sob a temática Intimidade (Intimacy). A revista publica os três artigos que formaram o painel principal do congresso, cujos autores são o brasileiro Ruggero Levy, o casal sueco Bjorn Salomonsson e Majlis Winberg Salomonsson e a americana Adrienne Harris. Para quem não foi ao evento, vale conferir o material apresentado e discutido na Argentina.

O artigo que compõe a seção “Interfaces” é fruto das atividades preparatórias para o 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, promovidas pela Febrapsi nas Sociedades federadas. A apresentação de Antonio Vargas em Florianópolis vem ao encontro do tema da revista, já que o Romantismo pode ser compreendido como um movimento precursor da noção de tédio. É enriquecedora a ampliação que Vargas faz ao assinalar a nostalgia e a morte como “mecanismos criativos que o romântico encontra para dar sentido a sua vida” (p. 174). A influência das condições sociais captada e engendrada pela cultura e arte nos remete à ideia de Freud da potência da psicanálise para captar o mal-estar de uma época.

Em “Outras palavras”, procuramos dar o merecido espaço aos colegas Daniel Schor e Miguel Calmon du Pin e Almeida, cujos trabalhos já aprovados não puderam ser publicados anteriormente. Esse é um grande problema vivido nos bastidores de uma publicação, que exige dos editores um manejo sofisticado para ater-se à linha editorial e ao tema do número e, ao mesmo tempo, apresentar o máximo possível da produção de qualidade dos colegas desse imenso território brasileiro. É um desafio permanente para nós.

A seção “História da psicanálise” traz um artigo de Nelson Coelho Junior que abre uma nova perspectiva sobre como trabalhar com a ideia de história da psicanálise: não é uma história somente de fatos cronológicos; é antes uma história de ideias, construções e produção psicanalítica. “Um capítulo húngaro da história da psicanálise” traz essa perspectiva, que sintoniza com um dos objetivos que a equipe editorial gesta para essa nova seção.

“Projetos e pesquisas” inaugura o lugar para um tipo de trabalho que nossa gestão se propõe a valorizar - o trabalho psicanalítico institucional. O artigo de Josefa Maria Dias da Silva Fernandes, colega de São José do Rio Preto, conta a experiência de uma psicanálise implicada com o conhecimento psicanalítico de grupos e instituições e com a escuta psicanalítica de muitos pacientes que ainda são invisíveis e sem voz em nossa sociedade. Trata-se de um trabalho que confirma os desafios da psicanálise diante da realidade social brasileira.

Por fim, podemos dizer que existe um movimento na psicanálise de, com pensadores de áreas afins, investigar o sentimento de tédio, construindo uma produção acurada sobre esse objeto de estudo.

Muitas questões surgem com a leitura dos artigos aqui publicados, como a afirmação de que o tédio é intrínseco à modernidade e à pós-modernidade, o que não deixa de ser intrigante. Ao refletir sobre os artigos no seu conjunto, nota-se uma tendência em aceitar que o surgimento da noção de tédio se deu no final do século XVIII.

Seria plausível, contudo, imaginar que outras formas de tédio existiram, talvez, desde a Antiguidade? A acidia, por exemplo, citada por alguns autores, foi investigada como uma “emoção de origem religiosa - reconhecendo-a como um antepassado remoto do tédio” (Salem, p. 22).

Lars Svendsen, em seu livro Filosofia do tédio, apura que há “escritos em Séneca em que, através do conceito de tedium vitae (cansaço da vida), ele descreve algo que lembra muito o tédio moderno” (1999/2006, p. 22).

No último artigo da seção temática, como visto, Gradin e Figueiredo defendem que o tédio é uma entidade nosológica autônoma. Ou seja, há muito ainda a investigar sobre suas origens, expressões, modalidades, sentidos e psicopatologias.

Portanto, caro leitor, a partir da concepção do tédio como um elemento crítico e expressivo de algum mal-estar, a Revista Brasileira de Psicanálise, numa breve cartografia da produção psicanalítica, procurou mostrar as investigações que estão em curso, as reflexões, as questões e o aprofundamento desse tema tão instigante para o mundo em que vivemos. Boa leitura!

 

Referências

Svendsen, L. (2006). Filosofia do tédio (M. L. X. de A. Borges, Trad.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1999)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marina Massi
marinamassieditora@rbp.org.br

Creative Commons License