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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo July/Sept. 2017

 

TÉDIO

 

Entre lirismo e desespero: variações sobre os sentidos do tédio

 

Between lyricism and despair: variations on the meanings of “boredom”

 

Entre lirismo y desesperación: variaciones en los sentidos del aburrimiento

 

Entre lyrisme et désespoir: variations des sens de l'ennui

 

 

Pedro Salem

Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), mestre e doutor em saúde coletiva (IMS/UERJ), autor do livro Do luxo ao fardo: um estudo histórico sobre o tédio, Relume-Dumará (2004), e um dos organizadores de Dimensões da intersubjetividade, Editora Escuta/Fapesp (2011)

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do pressuposto de que o tédio é uma construção social, o presente artigo procura evidenciar alguns de seus sentidos prevalentes ao longo da história recente do Ocidente. Após examinar emoções precursoras do tédio e os fatores que propiciaram o seu surgimento na modernidade, indica transformações em seus principais significados ao longo dos três últimos séculos. Faz notar como, no século XVIII, o tédio se associa à ideia de fraqueza moral, transformando-se, sob a influência do romantismo no século XIX, em uma emoção de teor lírico que confere distinção aos indivíduos. Já no século XX, tem seus sentidos ditados por aspectos do contexto sociocultural contemporâneo, sobretudo o culto às sensações. Por fim, o artigo recorre a interpretações psicanalíticas do tédio que examinam a importante função que desempenha no desenvolvimento infantil.

Palavras-chave: tédio, história das mentalidades, subjetividade contemporânea, psicanálise


ABSTRACT

Starting from the assumption that boredom is a social construction, this article attempts to highlight some of the most prevalent meanings of this state in the recent history of the West. After examining emotions that precede boredom and analyzing the factors that have enabled it to emerge in modernity, the author points out the way the main meanings of boredom have changed over the last three centuries. This article shows that, in the eighteenth century, boredom was related to the idea of a moral weakness. However, under the influence of Romanticism, in the nineteenth century, it was considered an emotion with a lyrical content, i.e., an emotion that provided distinction to individuals. In the twentieth century, some aspects of the sociocultural environment, especially the cult of sensations, define the meanings of boredom. Finally, the author invokes psychoanalytic interpretations in order to explore the important role of boredom in child development.

Keywords: boredom, history of mentalities, contemporary subjectivity, Psychoanalysis


RESUMEN

Partiendo del supuesto de que el aburrimiento es una construcción social, este artículo busca resaltar algunos de sus principales significados a lo largo de la historia reciente del Occidente. Después de examinar las emociones que precedieron al aburrimiento y los factores que condujeron a su aparición en la modernidad, indica algunas transformaciones en sus diferentes significados durante los últimos tres siglos. El artículo muestra cómo, en el siglo XVIII, el aburrimiento se asoció con la idea de una debilidad moral, convirtiéndose, bajo la influencia del Romanticismo en el siglo XIX, en una emoción con un contenido lírico que confería distinción a los individuos. En el siglo XX, algunos aspectos del contexto sociocultural, especialmente el culto a las sensaciones, definen sus significados. El artículo también explora interpretaciones psicoanalíticas del aburrimiento como jugando un papel importante en el desarrollo del niño.

Palabras clave: aburrimiento, historia de las mentalidades, subjetividad contemporánea, psicoanálisis


RÉSUMÉ

En partant de l'hypothèse que l'ennui est une construction sociale, cet article cherche à mettre en évidence certaines de ses principales sens historiques récentes. Après avoir examiné les émotions qui ont précédé l'ennui et les facteurs qui ont conduit à son émergence dans la modernité, on présente certaines transformations dans ses différentes sens au cours des trois derniers siècles. L'article montre comment, au dix-huitième siècle, l'ennui était associé à l'idée d'une faiblesse morale, devenant, sous l'influence du romantisme, au dix-neuvième siècle, une émotion avec un contenu lyrique qui accordait de la distinction aux individus. Au vingtième siècle, certains aspects de l'environnement socioculturel, en particulier le culte des sensations, définissent ses sens. L'article explore également les interprétations psychanalytiques de l'ennui qui jouent un rôle important dans le développement psychique de l'enfant.

Mots-clés: ennui, histoire des mentalités, subjectivité contemporaine, psychanalyse


 

 

Para o pensador, como para todos os espíritos sensíveis, o tédio é aquela desagradável “calmaria” da alma que precede a viagem venturosa e os ventos joviais. É preciso que eles os suportem e aguardem seu efeito. É exatamente isso que as naturezas medíocres não conseguem atingir por si!

(Nietzsche, 1882/1998)

Não é raro testemunharmos a afirmação de que o tédio, em suas múltiplas formas, constitui um elemento cada vez mais comum no conjunto de experiências subjetivas dos indivíduos contemporâneos. De fato, grande parte da bibliografia dedicada ao tédio insiste em afirmar que suas manifestações têm-se tornado cada vez mais generalizadas e frequentes; ou seja, que, apesar de nosso acesso crescente a formas de lazer e entretenimento, estaríamos, contraditoriamente, cada vez mais propensos ao tédio. Ainda que soe plausível tal ilação, sugerimos que ela expressa, antes, o fato de que o tédio vem ganhando uma centralidade ímpar na vida subjetiva e na cultura. Assim, se, por um lado, parece difícil sustentar consistentemente a ideia de um aumento de sua incidência subjetiva, por outro, entendemos que suas abundantes referências na cultura atual - nos âmbitos artístico, literário e mesmo clínico, por exemplo - tornaram o tédio, sem dúvida, uma importante categoria de interpretação da vida subjetiva contemporânea.

Ocorre, contudo, que, bem como qualquer emoção, o tédio tem seus sentidos ditados pelas regras de uso e pelos jogos de linguagem aos quais é submetido.1 Nesse sentido, é possível defender que o tédio afirma-se como uma construção social; isto é, uma emoção culturalmente codificada, sujeita a transformações impostas pelo contexto e dotada, portanto, de uma história. Partindo desse pressuposto, o presente artigo tenciona examinar alguns dos sentidos prevalentes do tédio nos últimos séculos da história do Ocidente, tomando como ponto de partida seu “nascimento” como uma emoção eminentemente moderna. Pretendemos, paralelamente à análise de seus principais significados, examinar seu sentido contemporâneo, mais afinado às queixas clínicas e ao sofrimento subjetivo a que assistimos cotidianamente nos consultórios. Por fim, amparados numa rarefeita bibliografia psicanalítica dedicada à compreensão dessa emoção, tecer algumas considerações sobre seu valor na dinâmica subjetiva.

 

O surgimento do tédio

Pode-se afirmar que a história do tédio tem seu início no final do século XVIII, época em que se reconhece seu primeiro uso na linguagem, mais especificamente, na língua inglesa. De fato, tanto a palavra bore aparece em sua acepção psicológica nesse período, quanto o termo boredom, aqui traduzido como tédio, nasce em meados desse mesmo século. Mais precisamente, ambos os termos aparecem numa acepção psicológica por volta de 1770 (Bernstein, 1975; Healy, 1984; Spacks, 1995). Sem a intenção de enveredar pela discussão acerca da anterioridade do tédio em relação à sua aparição na língua, entendemos que é a partir de então que ele se afirma como uma importante categoria de interpretação do mundo, assumindo determinadas singularidades significativas, se comparado a outras emoções interpretadas por alguns autores como antecedentes do tédio.

O tédio surge no bojo das principais transformações do período moderno. Seu uso frequente, a partir de então, sobretudo em obras literárias eu-ropeias, ajuda a mapear seus significados e sua importância, indicando que as descrições que os indivíduos passaram a fazer de si mesmos e de suas experiências subjetivas encontraram nessa emoção um importante conceito organizador de sentido. Nesse contexto, algumas das transformações impostas à vida sociocultural e subjetiva dos indivíduos nesse período fomentaram um ambiente fértil no qual o tédio viria a encontrar temperatura e solo propícios para germinar. Em uma palavra, sugerimos, portanto, que o tédio é indissociável da história do sujeito moderno.

Cabe notar que o que tomamos por “nascimento” do tédio relacionase, de um modo geral, a três fatores principais (Spacks, 1995). Inicialmente, pode-se destacar o processo de aprofundamento da consciência de si como relacionado ao surgimento dessa emoção; em seguida, o contexto da afirmação do individualismo e, por fim, o domínio da religião, mais especificamente, o chamado “desencantamento do mundo” (Weber, 1967). Autores descrevem o processo pelo qual, em torno da segunda metade do século XVIII, foram surgindo termos que apontavam para uma nova percepção que os indivíduos passaram a ter de si e dos outros. Tais termos indicavam menos as qualidades objetivas das coisas e mais os efeitos que tais coisas produziam nos indivíduos, demonstrando uma nova preocupação com a vida subjetiva e emocional dos homens. Alguns estudiosos (Elias, 1990) explicam esse fato com base em mudanças processadas no interior da sociedade de corte dos séculos XVI ao XVIII - o chamado “processo civilizador” -, que teriam incentivado uma maior psicologização e racionalização das condutas. Em poucas palavras, teria sido em função de uma maior interdependência entre as pessoas na vida da corte europeia que os comportamentos tornaram-se mais racionais e menos sujeitos a impulsos emocionais. Isso quer dizer que um maior autocontrole passou a ser instilado nos indivíduos, o que, por sua vez, produziu um olhar distanciado das próprias condutas e do próprio pensamento, aumentando a consciência de si e dos processos subjetivos, dos quais o tédio faz parte.

A afirmação do individualismo pode ser citada como o segundo elemento que contribuiu para formar o solo propício à germinação do tédio. As revoluções burguesas do final do século XVIII transformaram a relação entre indivíduo e sociedade de tal forma, que o indivíduo passou a assumir valor central na sociedade (Dumont, 1985). Destacando-se progressivamente das totalidades e das hierarquias que o continham, e norteado pelos ideais de igualdade e de liberdade (defendidos na Declaração dos Direitos do Homem), o indivíduo passou a fazer sentido em si mesmo, a ponto de subordinar os fins da sociedade aos seus próprios anseios. Paralelamente, uma nova ênfase passou a ser conferida à experiência individual. Por um lado, como destacado, tal processo favoreceu a transformação dos eventos mentais em objeto de atenção privilegiada, e, por outro, fez derivar a ideia de um “direito à felicidade” individual, concomitante, portanto, ao surgimento da noção de tédio. Assim, é justamente a percepção da existência humana como arena para a busca da felicidade - cujo índice principal é a obtenção de prazer na vida diária - que se associa com a elevação do tédio a uma categoria fundamental da experiência humana. Como afirma Arendt, “uma demanda universal pela felicidade e uma infelicidade generalizada em nossa sociedade ... não são mais do que dois lados da mesma moeda” (citada por Spacks, 1995, p. 23).2

Conforme afirmado, a religião desponta como outro elemento fundamental para a compreensão do contexto que permitiu a emergência do tédio. Diversos autores investigaram a acidia - uma emoção de origem religiosa -, reconhecendo-a como um antepassado remoto do tédio (Healy, 1984; Huguet, 1984; Kuhn, 1976; Peters, 1975; Spacks, 1995). Em virtude da própria hegemonia religiosa estabelecida sobretudo no período medieval, grande parte do vocabulário psicológico mais antigo da história da Europa foi derivado e usado por longo tempo no contexto moral da teologia (Peters, 1975). Assim é que a análise dos significados da acídia nos introduz a alguns dos estados mentais e emocionais do indivíduo cristão, que desembocaram, mais tarde, em novas emoções e percepções dos indivíduos.

A literatura monástica antiga tratava a acídia como uma forma de preguiça, uma indiferença espiritual. Encarada como um dos pecados capitais, ela consistia numa incapacidade de se fixar e de realizar as obrigações religiosas. Apesar de isoladas referências anteriores, é no século iv que a acídia recebe uma descrição mais detalhada. É registrada por monges deste período como o “demônio do meio dia” (daemon meridianas), cujas visitas poderiam devastá-los, esgotando-lhes as energias dedicadas à procura de Deus. A acídia denotava a instalação nos monges da dúvida quanto à entrega a uma vida religiosa. Ainda nesse século, o monge Cassiano a descreve com detalhes no comportamento do monge que

olha ansiosamente para este e para aquele lado, e, lastimando que nenhum dos irmãos vem vê-lo, por várias vezes entra e sai de sua cela, frequentemente fixando seu olhar no sol, como se estivesse demorando a se pôr. E então uma confusão irracional toma posse de sua mente como uma escuridão, tornando-o ocioso e inútil para qualquer trabalho espiritual. Não é capaz de imaginar a existência de cura para tão terrível ataque; apenas o alívio na visita de algum irmão ou no conforto de seu sono solitário. (citado por Spacks, 1995, p. 11)

Ao longo dos séculos subsequentes, entretanto, as conotações da acidia sofreram sucessivas transformações: se originalmente era referida à condição espiritual de monges, ela passou, progressivamente, a designar também emoções de indivíduos leigos. Nos séculos XIII e XIV, e correlatamente a uma crescente complexidade da vida social, os significados da acidia voltaram a sofrer mais uma ampliação para dar conta de novos estados psicológicos e emocionais (Peters, 1975). O termo passou a se referir a estados físicos causados pelo desequilíbrio dos humores, particularmente a melancolia, abarcando assim condições espirituais, emocionais e físicas. Ainda no século XIV, a influência do latim na tradução de textos religiosos ligou a acídia a termos como o ennui, na língua francesa, e a termos da língua inglesa como preguiça (sloth), enfado (weariness) e monotonia (dreariness), usados de forma intercambiável com o termo de sentido religioso. A separação definitiva, porém, entre o tom teológico e o secular da acídia consumou-se apenas no bojo das revoluções ocorridas entre os séculos XVII e XVIII, momento em que se processa uma crescente revolta contra o poder religioso exercido pela Igreja.

É interessante notar que a maioria dos autores que reconhece na acídia um antepassado remoto do tédio o faz com o objetivo de destacar as continuidades entre as duas emoções. Ou seja, o tédio seria um herdeiro da acídia. Ainda que dotado de características que lhe conferiram um aspecto singular, seria uma espécie de acídia despida do sentido religioso. Não obstante certas similaridades entre ambos, enfatizar as diferenças que os separam ajuda a realçar a novidade implicada no nascimento do tédio como uma emoção eminentemente moderna. Nesse sentido, vale ressaltar que, enquanto a acídia tem seus sentidos ditados pela ideia de uma obrigação não cumprida, o tédio tem seu significado ordenado pela categoria de prazer, cujo valor central se liga às transformações promovidas pelo período moderno e é viabilizado pelo exercício inédito da autonomia e da liberdade.

Em segundo lugar, se na acídia a prestação de contas da incapacidade torna-se dívida para com Deus (pecado), o tédio tem como referente último o prazer do próprio indivíduo. Assim, enquanto a acidia envolve uma prestação de contas “para fora”, o tédio diz respeito a uma prestação de contas “para dentro”, marcando um momento de transição em que a referência à interioridade torna-se privilegiada.

Em terceiro, pode-se ainda ressaltar que a acidia, vista como uma provação necessária no percurso de desenvolvimento espiritual, reporta a um sofrimento “com sentido”. Já o tédio - destacado do domínio religioso e imerso no secular - não representa qualquer provação, mas tangencia a experiência de vazio e de um sofrimento “sem sentido”.

Em suma, as descontinuidades assinaladas entre a acídia e o tédio atestam uma transformação na experiência das mentalidades que, por sua vez, pode ser creditada à passagem de um mundo no qual os valores religiosos eram organizadores de sentido para um mundo progressivamente “desencantado” (Weber, 1967). Mais ainda, o declínio da religião se mantém como referência fundamental aos sentidos posteriormente assumidos pelo tédio. Ao longo dos séculos subsequentes são inúmeras as associações estabelecidas entre essa emoção e a perda da transcendência como fator propiciador de sentido à vida dos indivíduos.

 

O tédio no século XVIII: entre o desejo e a temperança

Já no final do século XVIII, o tédio tem seus sentidos ditados por uma era marcada pela transição entre o pensamento teológico e o pensamento positivo. O Iluminismo despontava como o movimento formador do ideário da época e, consequentemente, exerceu influência capital nos significados do tédio. A ênfase no indivíduo racional, a crença na ideia de progresso continuado e o empenho no desvelamento das leis da natureza fizeram do tédio uma emoção a ser explorada, desvendada e combatida.

Foi precisamente nessa civilização nascente, marcada por transformações socioculturais expressas no crescimento demográfico, na expansão econômica, no desenvolvimento das cidades e na consolidação da sociedade burguesa, que se gerou uma nova sensibilidade na qual o conceito de tédio se tornou designativo de uma determinada expressão de mal-estar. Seus usos imaginativos em livros, poesias ou cartas datam dessa época, anunciando a preocupação com seus danos e com formas de evitá-los.

O acento no caráter natural e comum à humanidade, assim como o otimismo exaltado no período das Luzes, também conferiu um tom particular ao tédio. Como emoção secular, já não mais referida ao contexto teológico, mas ainda parcialmente influenciada por seus valores, o tédio assumiu logo de início o estatuto de uma fraqueza moral. Ele era encarado, principalmente, como uma emoção inerente à condição humana, como uma fraqueza na qual a ânsia por eventos ou estímulos externos denunciaria a insuficiência interna ao próprio sujeito. Samuel Johnson, importante autor inglês da segunda metade do século XVIII, cuja obra é fortemente marcada pela menção ao tédio, denuncia um padrão de inadequação moral marcado pela busca ansiosa de realização no mundo exterior. Segundo o autor, de acordo com esse padrão, alguns indivíduos estão sempre buscando

despertar algum novo desejo para que tenham algo a perseguir, para reacender alguma esperança que já sabem que será frustrada, trocando uma diversão por outra que dentro de poucos meses terá se tornado igualmente insípida, ou afundando em languidez e doença, por quererem algo que mobilize seus corpos ou alegre suas mentes. (citado por Spacks, 1995, pp. 42-43)

É fundamentalmente nesse contexto que alguns autores do século XVIII condenavam um padrão de busca permanente de novos desejos como forma de mobilizar a mente e o corpo, considerando-o moralmente inadequado. Segundo eles, o excesso de desejo tornaria os homens tão miseráveis quanto a sua falta, denominada tédio. Rousseau, dando continuidade a suas considerações sobre a "corrupção dos costumes", afina-se com esse ideário ao considerar que o homem corre constante risco de se desviar de um estilo de vida ligado ao trabalho, família e dever cívico, dedicando-se, por exemplo, a "prazeres frívolos" que corromperiam sua moral e o exporiam à experiência de tédio. Desse modo, ele afirma que "um pai, um filho, um marido e um cidadão têm deveres tão caros a cumprir, que nada lhes resta para dedicar ao tédio" (citado por Sennett, 1999, p. 149).

A chave para a felicidade e a forma pela qual os homens poderiam se esquivar do tédio estariam na moderação das paixões, em atitudes comedidas e no adestramento dos desejos e prazeres. Tal afirmação fica clara em outra citação do mesmo autor, sendo bastante sugestiva de como compreende o tédio e como concebe formas de evitá-lo:

Se a uniformidade de uma vida igual parece, de início, tediosa, olhando melhor, achamos, ao contrário, que o mais doce hábito da alma consiste em uma moderação do gozo que deixa pouco espaço para o desejo e para o tédio. A inquietação dos desejos produz a curiosidade, a inconstância: o vazio dos prazeres turbulentos produz o tédio. Ninguém se entedia nunca de seu estado quando não conhece absolutamente um outro mais agradável. (citado por Costa, 1998, p. 68, grifos nossos)

Em suma, o homem setecentista, desconfiado dos poderes do desejo, vivia o paradoxo de tomar o tédio como uma emoção naturalizada nos indivíduos e como um inimigo a ser combatido pela disciplina, pela temperança e por ações consideradas nobres. A crença iluminista na razão e na vontade humana era peça fundamental para superar esse paradoxo e para afirmar o otimismo do homem na sua luta contra o tédio.

 

O tédio no século XIX: do lirismo ao desespero

No século XIX, o tédio tem, em relação ao século anterior, sua originalidade, marcada, inicialmente, pelos movimentos românticos. São eles que redirecionam o sentido dessa emoção em dois aspectos principais: em primeiro lugar, contesta-se a ideia do século XVIII de que seria possível vencer o tédio por meio da vontade e da ação. Ao contrário, ele se torna agora enraizado nos próprios indivíduos, e para ele não há remédio. Mas também, em segundo lugar, o tédio passa a ser encarado como privilégio de uns poucos eleitos, convertendo-se em um símbolo de distinção. As transformações pelas quais passa o valor indivíduo, assim como a nova dinâmica entre os âmbitos público e privado, contribuem de modo fundamental para essa mudança de perspectiva. O sujeito do Iluminismo, racional, moderado, submetido às normas sociais e ligado a todos os outros pela ideia de igualdade, é destronado pelo indivíduo romântico, “irracional”, autêntico, preocupado em romper com os valores iluministas e distinguir-se dos outros por meio do cultivo de si (Bildung).

No século XIX o tédio torna-se, assim, um tema ainda mais presente em inúmeras manifestações artísticas. Privilegiado na literatura europeia, perpassa também as correspondências pessoais de diversos escritores do período e se afina com a mentalidade romântica emergente. Traduzida na exacerbação dos afetos, emoções e sofrimento, a dimensão da interioridade do sujeito moderno encontra plena expressão nesse movimento sociocultural. De modo geral, o ideário romântico se insurge contra o materialismo e o cientificismo do período, relevando a função do sentimento em detrimento da razão, das ciências naturais diante do mecanicismo, da subjetividade diante da objetividade. À medida que o sujeito romântico se constitui em oposição aos constrangimentos impostos à sua espontaneidade pelo “artificialismo” atribuído à sociedade, o contato com a natureza assume a função de refúgio, permitindo ao indivíduo esquivar-se dos males da civilização e encontrar um lugar propício para o cultivo de si. A melancolia e o tédio, próximos em significação, ganham especial valor no contexto de um culto ao sofrimento, próprio aos movimentos românticos. Como afirma Taylor,

se a distinção vinculava-se à grandeza dos sentimentos e se o mais elevado era inseparável da renúncia e do sofrimento, então até saborear na melancolia um infortúnio sentido com nobreza podia ser considerado admirável. Nem todos teriam a sensibilidade para sentir tal infortúnio, e os que tinham deviam ser seres superiores. (Taylor, 1994, p. 383, grifos nossos)

É propriamente nesse ambiente que o tédio ganha sua principal significação no século XIX. O tédio romântico surge em meio ao culto das emoções e dos sentimentos, tendo seus sentidos marcados pela valorização da interioridade e do sofrimento. Se, por um lado, essa emoção exibe beleza e confere distinção àqueles que têm o privilégio de se entediar, ela também guarda uma tonalidade lírica que convive com a intensidade do desespero expresso por suas vítimas. As palavras de Giacomo Leopardi, poeta italiano desse século, ilustram exemplarmente a ideia de que o tédio, além de conferir superioridade às suas vítimas, deve ser louvado e cultivado:

o tédio é o mais sublime dos sentimentos humanos. ... Não ser capaz de obter satisfação com coisas terrenas ... sentir que tudo é insignificante e medíocre em contraste com a capacidade do nosso espírito; ... sempre acusar as coisas de serem insuficientes e sem valor, sofrer da ausência e do vazio e, assim, do tédio, parece-me o maior dos signos de grandeza e nobreza que se podem encontrar na natureza humana. (citado por Kuhn, 1976, p. 286, grifos nossos)

Em termos gerais, o tédio tem, para os românticos do século XIX, múltiplos significados. É uma emoção que lhes permite aceder à interioridade e ao mergulho em si mesmos, já que experimentá-lo em toda a sua intensidade constitui prova do contato com os próprios sentimentos. É nesse sentido que o tédio atende a uma inclinação tipicamente romântica. Paralelamente, ele é também um sentimento ambivalente, gerador de grande sofrimento, ao mesmo tempo que de atração, que faz padecer suas vítimas, mas, simultaneamente, as dignifica e as distingue da “mediocridade” de uma vida distante dos sentimentos mais profundos.

 

O tédio no século XX: do luxo ao fardo

Permitindo-nos um considerável salto histórico, justificável pelo interesse em contrastar modalidades típicas de tédio ao longo do tempo, torna-se interessante verificar como determinados aspectos do contexto sociocultural das últimas décadas conferiram um sentido bastante singular a essa emoção, sobretudo se comparada às suas expressões nos séculos anteriores.

Análises empreendidas por diversos autores desse contexto e seu impacto nas subjetividades apontam para alguns aspectos comuns, dentre os quais poderiamos citar a radicalização do individualismo e do culto ao eu (Lasch, 1983; Lipovetsky s./d.), o valor conferido à experiência presente em detrimento de uma perspectiva temporal futura (Lasch, 1983) e a perseguição do bem -estar e da autossatisfação baseada no culto às sensações (Bauman, 1998). Se bem que todas, em alguma medida, se associem aos sentidos conferidos ao tédio (Salem, 2004), com a intenção de não nos afastarmos do foco do artigo, daremos prioridade à relação entre o tédio e um dos tópicos acima citados, qual seja, o culto às sensações.

Bauman (1998) descreve a emergência de um tipo cultural prevalente nas últimas décadas, que designa como colecionador de sensações: um sujeito fortemente marcado por traços narcisicos, que nutre pouca consideração pelo Outro ou por valores que possuam algum tipo de continuidade no tempo futuro ou origem no passado. Um individuo que vive ancorado no instante presente e se alimenta da busca de sensações, que devem continuamente se sobrepor em intensidade e inovação às anteriores. Esse autor destaca o modo de vida consumista como um dos principais traços distintivos da cultura contemporánea e o fundamento do colecionador de sensações. Nesse sentido, ele sugere que, ao contrário das sociedades industriais, que engajavam seus membros prioritariamente como produtores, as sociedades atuais precisam comprometê-los como consumidores. Por isso, novos desejos devem despertar continuamente a atenção e o interesse dos individuos, de modo que se mantenha a engrenagem de um sistema que é alimentado pela insatisfação compulsória de seus participantes. Os colecionadores de sensações, contudo, são consumidores com uma particularidade especial. Diz ele:

Não tanto a avidez de adquirir, de possuir, não o acúmulo de riqueza no seu sentido material, palpável, mas a excitação de uma sensação nova, ainda não experimentada - este é o jogo do consumidor. Os consumidores são, primeiro e acima de tudo, acumuladores de sensações, são colecionadores de coisas apenas num sentido secundário e derivativo. (Bauman, 1998, p. 21, grifos nossos)

O filósofo alemão Christoph Türcke (2014) aproxima-se de Bauman ao definir a sociedade contemporánea como a “sociedade da sensação”, examinando o modo pelo qual a ideia de sensação deslocou-se da percepção de elementos comuns para o espetacular e o incomum. Mesmo atribuindo a origem dessa mudança a um processo cultural que data de mais de dois séculos, entende que o valor da sensação e seus impactos no modo de conceber o mundo e a própria subjetividade se alteraram radicalmente nas últimas décadas, afirmando que “as sensações estão a ponto de se tornar as marcas de orientação e as batidas do pulso da vida social como um todo” (Türcke, 2014, p. 14). Em um texto repleto de influências intelectuais e referências a elementos da cultura - como as transformações impostas pela publicidade, pelo cinema e pelo jornalismo em função da pregnância de imagens e da velocidade do fluxo de informações -, indica que hoje o que nos toca e comove é, sobretudo, o que causa sensação.

É precisamente esse traço das mentalidades atuais - a busca incansável de experiências novas e excitantes -, condensado na descrição do colecionador de sensações efetuada por Bauman, e da sociedade excitada realizada por Türcke que ajuda na tarefa de vislumbrar os sentidos do tédio nos sujeitos contemporâneos.

Para avançarmos na caracterização dos sentidos atualmente conferidos ao tédio, recorreremos brevemente às apreciações de Costa (1998) sobre o contraste entre sentimentos e sensações. Segundo o autor, ao contrário dos sentimentos - definidos como hábitos afetivos dependentes da prática da introspecção -, as sensações constituem-se basicamente como respostas mentais semelhantes às respostas sensoriais dadas aos estímulos corporais. Assim, os sujeitos hoje se voltam sobretudo para o aprendizado e para a valorização do modo de satisfação ditado pela sensações. Isto quer dizer que, ao contrário, por exemplo, dos sujeitos românticos, para os quais a satisfação sentimental não se confundia com a gratificação sensual, os indivíduos contemporâneos procuram um tipo de satisfação que deve ser imediata, de grande intensidade e, de preferência, deve sobrepor-se em quantidade e qualidade às experimentadas anteriormente. Portanto, enquanto para os românticos a vida emocional fundamentava-se no culto aos sentimentos e era feita de afetos estáveis baseados na premissa de projetos a longo prazo, para os sujeitos contemporâneos a construção das identidades ancora-se na primazia de imagens e sensações.

A compreensão dessa mudança é imprescindível para a apreensão dos significados do tédio contemporâneo. Como vimos, esta modalidade de tédio tem sua gramática construída em torno do culto às sensações, e não mais em torno do culto dos sentimentos. E o modo de satisfação sensorial não requer só experiências excitantes e intensas: dadas a instantaneidade e a rapidez com que o êxtase se esvai, elas demandam sempre novas e mais instigantes gratificações sensuais (Bauman, 1998; Türcke, 2014). Ora, poderiamos perguntar, o que fazem os indivíduos nos intervalos entre suas sempre espetaculares sensações? Que sentido conferem à espera pelas novas e excitantes experiências? Sugerimos que as respostas a essas perguntas apontam para o que poderíamos denominar “tédio da insatisfação permanente”.

Sob o imperativo cultural das sensações, qualquer espera é significada como desprazerosa e incômoda. Todo intervalo é vivido como vazio e, mais especificamente, como tédio. Conforme assevera Bauman, “o efeito de 'tirar a espera do desejo' é tirar o desejo de espera” (1999, p. 87), consequência direta do modo de satisfação das sensações. Resulta daí, por um lado, que a capaci- dade de consumo dos indivíduos tem seus limites fortemente ampliados para muito além de quaisquer necessidades; por outro, que a busca por novas e desconhecidas experiências se torna sempre atraente e um ideal incontornável. Segundo o autor, “para os bons consumidores não é a satisfação das necessidades que atormenta a pessoa, mas os tormentos dos desejos ainda não percebidos nem suspeitados que fazem a promessa ser tão tentadora” (Bauman, 1999, p. 90). Em referência à busca ansiosa por sensações e à valorização midiática do espetacular, Türcke também lembra “como parecem insossos os estímulos do meio imediato, em comparação com aqueles que, berrantes, continuamente cintilam na tela; como fica entediante a rotina de cada um diante de tudo aquilo de excitante que as mídias incessantemente veiculam” (Türcke, 2014, p. 65). Em meio a um “afogamento de estímulos”, sugere o autor, a consequência é a emergência de um modo de percepção do mundo não mais unificado em torno de elementos centrais, resultando no enfraquecimento do sentido de identidade e uma experiência de desorientação e insatisfação crescentes.

É nesse contexto de supressão do desejo de espera e da valorização das sensações que o tédio da insatisfação permanente encontra solo fértil para proliferar. Se a satisfação deve ser imediata, sem que se deseje nem tolere qualquer demora, a emoção que desponta no espaço entre os picos de êxtase sensorial é significada como tédio. Como os indivíduos têm a ilusão de poder repetir a dose, o que se passa entre um gozo e outro é necessariamente enfadonho. Na cultura que entroniza o tempo presente como locus privilegiado de satisfação, o tempo de espera pelas próximas sensações é sempre entediante.

Assim, enquanto entre os românticos o tédio assumia um caráter melancólico e por vezes desesperado, o tédio referido às sensações é mais propriamente vazio, ansioso e excitado. Na medida em que, no romantismo, o tédio tem seus sentidos ditados pelo jogo de linguagem dos sentimentos, ele não se apresenta no espaço entre dois gozos, já que o intervalo entre um prazer sentimental e outro poderia se dar como espera, mesmo que implicasse sofrimento. Atualmente, são suas qualidades de sensação que sobressaem e definem sua nova gramática. Enquanto descrição linguística mais elaborada, que apela para a ideia de narração autobiográfica, de relatos da vida emocional e de avaliação moral do que é sentido, o tédio romântico incorporava um tipo de experiência identitária que considerava a permanência e continuidade temporal. Já na contemporanei-dade, a interioridade romântica cede lugar à autorreferência narcísica, e o tédio, agora relacionado a identidades plurais, carentes de referências fixas, não mais se associa à busca de sentido interior. Antes, expressa um vazio não mais trágico ou desesperado, mas inquieto e ansioso. Emergindo no intervalo vazio das sensações, na falta de desejo pela espera, pode-se afirmar, o tédio contemporâneo encontra-se na contraface da cultura das sensações.

 

Tédio e psicanálise: um breve elogio ao tédio

Em meio à rara bibliografia psicanalítica sobre o tédio, encontra-se um precioso ensaio de Phillips (1996) no qual o autor procura elencar alguns importantes aspectos dessa experiência subjetiva. Descrevendo-o como um estado de “expectativa suspensa”, Phillips não se esquiva de reconhecer a desprazerosa sensação de vazio implicada nessa emoção. Inova, contudo, ao descrever a capacidade de entediar-se como uma importante conquista no desenvolvimento infantil, cuja emergência depende da presença de um adulto que não sucumba ao ideal narcísico de tornar a vida da criança “infinitamente interessante” e não viole o tempo de espera de novos investimentos.

Afinado com a valorização teórico-clínica que Winnicott confere às experiências subjetivas “não culminantes” - distantes do referencial orgástico muitas vezes prevalente na teoria psicanalítica -, Phillips encontra no tédio uma emoção relacionada à gramática da espera. Segundo ele, “o tédio é parte integrante do processo de não ter pressa” (Phillips, 1996, p. 100). E, precisamente por tal motivo, implica um modo singular de lidar com a temporalidade, com investimentos objetais e, finalmente, com as experiências de perda e luto dos objetos. E reforça:

Em qualquer discussão sobre a espera ... faz sentido falar do tédio porque a criança entediada está esperando, de forma inconsciente, uma experiência de expectativa. Em estados comuns de tédio, a criança reverte à possibilidade do seu próprio desejo. Esse tédio é, na verdade, um processo precário, no qual a criança ... está tanto à espera quanto à procura de alguma coisa . (Phillips, 1996, p. 99)

De acordo com o autor, haveria um paradoxo implicado na experiência do tédio no qual estaria contido o desafio de tornar tolerável a “impossível experiência de esperar algo sem ter ideia do que possa ser”. Em outros termos, aponta para um risco inerente ao tédio, traduzido na ideia de uma espera subtraída da garantia de definição do objeto de um desejo.

Por tal motivo, pode-se afirmar, o tédio se associa também à ideia de esperança. Em um belo artigo em que discorre sobre “a arte de esperar”, Gurfinkel (2016) examina, com o auxílio de Winnicott, o processo pelo qual o bebê aprende a esperar na ausência da mãe, mantendo viva sua imagem interna por intervalos de tempo crescentes. O tédio pode, nesse contexto, ser compreendido como uma conquista no desenvolvimento na exata medida em que, com o auxílio de um ambiente suficientemente bom, implica o alargamento do tempo de espera diante da ausência do objeto e da indefinição de seu retorno. A capacidade de entediar-se depende, portanto, da esperança, ancorada na crença de que o objeto será reencontrado, substituído ou mesmo recriado sob uma nova forma.

Partindo da sua preocupação com os efeitos subjetivos de uma cultura que se ocupou em valorizar ao extremo o âmbito das sensações, Türcke recorre a uma interessante analogia entre a produção agrícola e a vida subjetiva. Afirma que, em tempos remotos, “a ociosidade representava ... um sinal de plenitude” (2014, p. 42), lembrando que o descanso da terra com o objetivo de recuperar sua fertilidade fazia da espera uma parte integrante do processo produtivo. Tendo essa etapa sido subtraída do processo agrícola, passou-se a associar um pedaço de terra sem cultivo a um valor dissipado ou vazio.

Curiosamente, Khan (citado por Gurfinkel, 2016) recorre à mesma imagem para valorizar a dimensão da espera na vida subjetiva. Em um ensaio dedicado ao tema (Khan, 1977/2012), expõe detalhadamente a fenomenologia do “deixar a terra descansar” (lying fallow), cuja marca central seria uma espécie de “languidez benigna”, uma não inclinação para o cumprimento ansioso de tarefas. Ao enunciar o valor psíquico de deixar a terra descansar, tomando esse estado como uma “função saudável do eu”, o psicanalista o define como uma condição que antecede a maior parte dos esforços criativos. Referido a Winnicott, sugere que esse tempo de espera envolveria uma espécie de “animação psíquica não integrada”, que ofereceria ao sujeito “as condições de possibilidade para aquela experiência interior larval que distingue a verdadeira criatividade psíquica de uma produtividade obsessiva” (Khan, 1977/2012, p. 185). Assim como Phillips, Khan cita a importância do outro não intrusivo para a instalação dessa condição, experiencial e conceitualmente próxima da capacidade de estar só e dos estados não integrados, na medida em que “deixar a terra descansar é, acima de tudo, a prova de que o indivíduo pode ficar consigo mesmo sem propósito”.

É interessante notar como os autores acima citados parecem afinados em torno de uma mesma crítica ao contexto sociocultural contemporâneo, observando, cada qual a seu modo, a subtração de um conjunto de experiências ligadas à valorização do repouso e da espera nos processos sociais e psíquicos. Khan observa, especificamente, como a aderência ao ideário da vida como "um constante divertimento" constitui a "falácia onipresente de nosso tempo", tornando os indivíduos compulsoriamente infelizes e apáticos, porquanto cada vez mais dependentes da hiperestimulação do ambiente. Tal estado de coisas seria, segundo ele, consequência da falha em compreender o papel subjetivo de deixar a terra descansar. É justamente nesse contexto de reconhecimento do valor e função da espera e, paralelamente, dos estados transicionais, que a capacidade de entediar-se pode ser compreendida como uma conquista subjetiva. Isso não significa, contudo, negar a experiência de desconforto implicada no tédio, mas reconhecer seu valor central junto à esfera das experiências psíquicas intervalares, como as de afastamento, ausência ou perda dos objetos até o reencontro de novos investimentos. Dessa perspectiva, pode-se ainda depreender que, quanto menor a esperança e a crença num objeto criado/encontrado, mais aniquilador e mais próximo da melancolia o tédio se apresenta.

 

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Recebido em 17.08.2017
Aceito em 31.08.2017

 

 

1 No decorrer deste artigo estaremos tomando o tédio como uma emoção, baseados nos estudos de Costa (1998), que a define como um complexo afetivo formado por sentimentos, sensações, crenças e julgamentos. Para nosso objetivo, o importante é compreender que uma emoção condensa uma experiência afetiva mais ampla, que engloba sentimentos e sensações enquanto dimensões que permitem ordenar e significar os fenômenos subjetivos. A sensação tem, no corpo, um referente privilegiado, enquanto o sentimento remete à imagem do eu com base em uma história, afirmando-se como um evento mental mais complexo do ponto de vista linguístico. Retornaremos ao tema mais adiante.
2 Alguns autores também citam o lazer como uma importante noção oriunda do final do século XVIII e, portanto, associado ao surgimento do tédio. A emergência da ideia de um tempo livre - ou tempo de lazer -, fruto de mudanças nos meios de produção, tornou-se justamente um dos aspectos responsáveis pela preocupação com modos de ocupação do tempo e com novas possibilidades de satisfação (cf. Spacks, 1995).

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