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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo July/Sept. 2017

 

TÉDIO

 

O tédio e a clínica do vazio

 

Boredom, and the feeling of emptiness in the clinical practice

 

El aburrimiento y la clínica del vacío

 

L'ennui et la clinique du vide

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora aborda a relação entre o tédio, a clínica do vazio e a fragilidade das instituições no mundo contemporâneo. Diferencia aquele afeto da depressão e da mera insatisfação com a vida. Metapsicologicamente, o tédio corresponde ao que André Green chama de angústia branca, típica da clínica do vazio. Um fragmento clínico ilustra essa forma de sofrimento psíquico e o manejo possível.

Palavras-chave: tédio, patologias do vazio, angústia branca, depleção simbólica, pós-modernidade


ABSTRACT

In this paper, the author deals with the relation between boredom, the feeling of emptiness in the clinical practice, and the fragility of institutions in the contemporary world. The author distinguishes that emotional experience from depression and the mere dissatisfaction with life. In metapsychological terms, boredom corresponds to what Green have called white anxiety, which is typical of this feeling of emptiness (“clinical emptiness”). A clinical vignette illustrates this form of psychic suffering and may suggest some ways to manage it.

Keywords: boredom, pathologies of emptiness, white anxiety, symbolic depletion, postmodernity


RESUMEN

La autora aborda la relación entre el aburrimiento, la clínica del vacío, y la fragilidad de las instituciones en el mundo contemporáneo. Distingue aquel afecto de la depresión y de la mera insatisfacción con la vida. Metapsicológicamente, el aburrimiento corresponde a lo que Green llama angustia blanca, típica de la clínica del vacío. Un fragmento clínico ilustra esta forma de sufrimiento psíquico y el posible manejo.

Palabras clave: aburrimiento, patologías del vacío, angustia blanca, depleción simbólica, posmodernidad


RÉSUMÉ

L'auteur aborde le rapport entre l'ennui, la clinique du vide et la fragilité des institutions dans le monde contemporain. Elle distingue cet affect de la dépression et de la simple insatisfaction à propos de la vie. Du point de vue de la métapsychologie, l'ennui correspond à ce que Green appelle l'angoisse blanche, typique de la clinique du vide. Une vignette clinique illustre cette façon de souffrance psychique et le maniement possible de celleci.

Mots-clés: ennui, pathologies du vide, angoisse blanche, déplétion symbolique, post-modernité


 

 

Introdução

Todos nos entediamos em situações como passar horas no trânsito ou no aeroporto. Nem todos, porém, sentimos o tédio existencial, aquele ligado à sensação crônica de vazio. O sujeito sente que sua vida não tem sentido; nada é vivido como significativo nem parece valer a pena; a vida é uma sequência estéril de dias; a pessoa não sabe o que fazer consigo mesma; há um sentimento penoso e estranho de futilidade da existência; o eu não consegue se vincular aos objetos através de experiências genuínas, com um verdadeiro lastro emocional, que lhe proporcione o sentimento de ser e de existir. É uma existência em falso self.

O tédio costuma ser confundido com a depressão, mas são experiências afetivas distintas. Na depressão, o sentimento é de perda e de tristeza: havia algo que iluminava a existência, e esse algo foi perdido. O deprimido não se sente vazio, mas cheio de tristeza, o que pode ser uma reação muito saudável diante de uma perda. Ele continua sonhando em recuperar o que perdeu, enquanto o problema do entediado é que ele não sonha com nada - é uma depressão sem tristeza.

Esse mesmo afeto também pode ser confundido com uma insatisfação crônica. Nada preenche, nada satisfaz. Em certos casos, a insatisfação pode ser positiva, porque ajuda o sujeito a se abrir para novas possibilidades de vida. Já o entediado vive um simulacro de vida. Ele não conseguiu criar uma vida própria “de verdade”, que faça sentido. Poderá tentar mudar de vida, mas, se for algo de fora para dentro, em pouco tempo voltará a se sentir vazio, entediado.

As defesas mobilizadas contra essa forma de sofrimento psíquico são bastante variadas. Falarei delas adiante. Apenas para dar alguns exemplos, muitas pessoas lançam-se em atividades frenéticas ou, ao contrário, desligam-se, dormindo muito ou isolando-se do convívio social; podem usar drogas, tornar-se dependentes de séries televisivas ou então parasitar a vida dos outros.

Celulares e redes sociais podem ser usados para disfarçar a sensação de vida vazia e sem sentido. (Note, porém, que esses mesmos estímulos podem ser usados de modo muito criativo.) Quando, por qualquer motivo, esses recursos não estão disponíveis, o tédio se agudiza. Isso porque eles oferecem um holding contínuo, como próteses que dão uma sustentação psíquica no tempo e no espaço. Quando faltam, a pessoa se sente largada de repente: cai e se es-borracha brutalmente no vazio.

A clínica sugere que é a falta radical de criatividade psíquica que mata a imaginação e o interesse pelas coisas da vida, originando o vazio e o tédio. Criatividade, aqui, não tem nada a ver com ser artista ou descobrir soluções criativas para problemas. Trata-se de uma função do eu, tão importante quanto a função simbolizante.

Segundo Castoriadis (1975), imaginação é a capacidade elementar e irredutível de evocar uma imagem, de ver numa coisa o que ela não é, ou de vê-la distinta do que ela é. Uma criança com um desenvolvimento psíquico normal não se entedia, pois é capaz de pegar qualquer coisa - até um simples carretel! - e imaginar e criar uma brincadeira com aquilo.

A falta de criatividade e de imaginação indica uma condição psíquica grave. Sem imaginação não há fantasia, e sem fantasia não temos como inventar um ideal do eu, não há investimento libidinal em projetos, a vida se esvazia de sentido e se torna um tédio.

 

A clínica do vazio

Um fragmento clínico ilustra essa forma de existência.1 Paula é uma bela mulher de uns 35 anos. Sempre elegante, nota-se a preocupação com o estilo do que veste. Era secretária de um empresário e acabou se casando com ele. Pouco depois, teve dois filhos.

Na entrevista, fico sabendo que, antes de se casar, foi passar o Natal na Disney sozinha. Estranho a ausência de vínculos e mais ainda a escolha do lugar. Comenta que adora as sensações da montanha-russa. Só bem depois isso fez sentido para mim: sensações fortes lhe proporcionam a experiência fugaz de estar viva. Mais tarde, venho a saber que, na adolescência, era adepta de esportes radicais, ou seja, a busca de sensações fortes já era um modo de vida.

Tem uma vida confortável, mas vive atormentada pela ideia de que não trabalha. Não tem o que responder quando, nas festas, lhe perguntam o que faz. Gostaria de poder dizer que é empresária ou arquiteta. Com a rede social e profissional do marido, poderia trabalhar no que quisesse. Seria muito fácil abraçar uma das causas sociais que ele apoia. O problema é que ela não consegue se entusiasmar por nada. Não há ninguém-nela capaz de ter uma ideia, formular um desejo ou investir alguma coisa no mundo. Depois de algum tempo de análise, já percebe vagamente que esse é o problema.

Adorava quando era secretária. Pergunto-lhe do que gostava. Ela responde que gostava de ter um lugar para ir, um horário para cumprir, uma função e tarefas, que executava de forma eficiente. Entendo que esse trabalho era perfeito para ela em vários níveis. Funcionava como um enquadre que lhe dava uma sustentação firme no tempo e no espaço. Não era necessário ter criatividade, apenas eficiência. Como nunca faltavam tarefas, estava engajada em um modo de vida operatório que a protegia do tédio e do vazio que sente agora.

A incapacidade de investir alguma coisa poderia ser confundida com um estado melancólico, mas esse vazio é o resultado da mais absoluta falta de criatividade psíquica. Não sabe o que fazer consigo mesma nem com o seu tempo. Certa tarde, decidiu arrumar os armários. Conseguiu ocupar-se por cinco horas. Pelo menos durante esse tempo não ficou se atormentando com a ideia de que precisa encontrar um trabalho.

Uso a palavra vazio para descrever o sofrimento ligado ao silêncio ensurdecedor de seu mundo interno. Reconheço aí o que a Escola Psicossomáti-ca de Paris chamou de depressão sem tristeza, e André Green (1988) de angústia branca - termo que prefiro, pois é de angústia que se trata.

Não foi difícil reconhecer o padrão transferenciai que se instalou nas sessões. Chega pontualmente, deita-se e cumpre rigorosamente o que entende ser sua tarefa: falar. Mas, para ela, falar não é dizer algo significativo, e sim preencher o silêncio. É o que ela faz. Usa palavras que não pertencem ao seu vocabulário e fala sobre temas que não conhece. Não consegue completar as frases. Enfim, é evidente que ela não está realmente ali, naquilo que está me dizendo. Paula é uma moça inteligente, mas não há ninguém “ali dentro” que realmente tenha uma opinião sobre alguma coisa. Por trás da personagem sorridente e elegante, construída de fora para dentro graças ao estilo das roupas e dos acessórios, não há nada. Ela sofre porque intui vagamente que nada-nela é de verdade.

Essa modalidade de transferência produz em mim a sensação de estar falando com um autômato. Esse campo transferencial me permitiu reconstruir (para mim mesma) a relação entre a criança e um objeto primário que não tinha acesso ao que chamamos de mundo emocional, de tal forma que áreas inteiras do psiquismo de Paula nunca foram vistas, reconhecidas e ativadas na relação intersubjetiva.

O funcionamento operatório do objeto primário impediu certas funções psíquicas de nascer: as preconcepções inatas permaneceram em estado potencial, não nascidas. Ou então as funções psíquicas, ainda incipientes, foram desativadas por falta de investimento por parte do objeto.

A grande questão para nós, psicanalistas, é como trabalhar com esses pacientes. Dou aqui um exemplo mínimo do que precisei fazer durante um longo tempo. Remeto o leitor ao texto no qual discuto como o trabalho clínico precisa ser compatível com o processo de adoecimento que levou a essa forma de sofrimento psíquico (Minerbo, 2016).

Quando Paula volta de uma viagem, cumpre rigorosamente o que imagina ser sua tarefa: entrega-me relatórios fidedignos sobre tudo o que viu. Não tenho a menor ideia do que dizer. Nada, absolutamente nada, me ocorre. Experimento em mim o terrível vazio produzido por uma fala totalmente operatória. É assustadora a ausência de um comentário mais vivo, mais pessoal. Como já mencionei, imagino que essa tenha sido a experiência da criança que ela foi, diante do psiquismo-autômato da mãe.

De vez em quando, escapa algo como: “Adorei a loja x” Aqui há verdade! Agarro a oportunidade: se eu conheço a loja, faço algum comentário sobre ela; se eu não a conheço, peço que me descreva o que viu, o que comprou, e então comento alguma coisa que faça sentido para mim. É uma maneira de resgatar e legitimar algo de vivo e próprio, antes que submerja novamente no mar da hiperadaptação ao outro.

É preciso se implicar muito e propor uma variante do jogo do rabisco para conseguir “ir ao encontro de alguma vida ainda pulsante soterrada sob grossas camadas de matéria morta” (Figueiredo, citado por Minerbo, 2016, p. 59). Muitas vezes é ainda mais difícil: preciso emprestar minha própria criatividade para criar alguma matéria psíquica lá onde ainda não há.

Lentamente, as coisas começam a se mexer. Não por acaso, a primeira coisa que começa a investir genuinamente é o corpo. Passa a frequentar uma academia de ginástica e também o pilates, que lhe proporciona o prazer de sentir a flexibilidade do próprio corpo. Depois dos exercícios, gosta de sentir as dores musculares, experiência sensorial que lhe indica que ela - seu corpo - existe. Para além das roupas que estão a serviço de construir uma personagem, começa a haver um esboço genuíno de ego corporal. Ainda é um prazer puramente sensorial, mas já muito diferente da adrenalina da montanha-russa.

O rádio do carro está sempre na estação que toca música clássica, conforme o gosto do marido. Um dia, indo para a análise, ocorreu-lhe que po-deria mudar de estação para ouvir as músicas de que gosta. “Claro que depois eu deixo do jeito que estava” Nota-se a angústia com relação às marcas que sua subjetividade poderia deixar no outro. Tornar-se transparente, inexistente, para sobreviver: eis o processo de adoecimento que produziu essa forma tão particular de sofrimento psíquico. Digo então: “Tem medo que percebam quem você é, do que você gosta; medo que percebam que você é uma pessoa”.

Certa vez, no banho, ficou curtindo a água bem quente escorrendo pelo corpo. Quando viu, estava chorando. Soluçava. Tive a impressão de que no lugar da angústia branca, da depressão sem tristeza, havia tristeza e angústia verdadeiras por perceber o vazio dramático de sua existência. Era um bom sinal. O tecido psíquico começava a se revitalizar.

Como muitas de minhas pacientes, adorou o filme Aquarius. Ele apresenta uma mulher que enfrenta as empreiteiras que querem comprar seu apartamento. Paula fica tocada ao ver como essa mulher luta para preservar a vida que havia construído para si. Esse material indica que está em trânsito entre a estratégia conhecida, de se fingir de morta para sobreviver, e outra, na qual é possível afirmar algo próprio e lutar pelo direito de existir.

 

Tédio: mal do século XXI?

Generalizações são sempre arriscadas, mas talvez não seja descabido afirmar que o afeto típico da modernidade era a culpa (do sujeito neurótico), enquanto o da pós-modernidade é o tédio. A carta-convite dos editores da Revista Brasileira de Psicanálise propõe uma reflexão sobre essa condição. Cito:

Tédio, melancolia, depressão, vazio existencial, ócio... As ciências humanas, incluindo a psicanálise, são convocadas a investigar e compreender com mais profundidade a presença desse nada na vida do sujeito contemporâneo. Apesar de não ser exclusividade da subjetivação pós-moderna, o tédio tornou-se uma forma recorrente, chegando aos nossos consultórios pela queixa do sentimento de falta de sentido diante da vida, de latência do tempo e de vazio espacial. Como entender o conceito de tédio em sua especificidade a partir das transformações radicais do processo cultural e social que forma o solo do momento histórico de nossa civilização, com a mudança em instituições como a família e em noções como a de gênero, com a globalização, com as novas tecnologias etc.?

Convencionou-se chamar de pós-modernidade ao momento histórico em que as grandes instituições que serviram de base para a civilização ocidental entraram em crise.2 A falência do modelo único, típico da modernidade, pode ser vivida como libertação, mas também como falta de chão. O laço simbólico, que soldava um significante a um significado, tornou-se frágil e corrediço. Com isso, os sentidos se relativizaram, ou seja, já não acreditamos com certeza inabalável que - só para dar um exemplo - família signifique “casal heterossexual com filhos”.

A vantagem é que a fragilidade do símbolo pode ser aproveitada de forma criativa para que novos laços simbólicos sejam constituídos: as pessoas podem se reinventar. Há espaço para que novas formas de viver se tornem possíveis, contemplando a singularidade do desejo. A homoparentalidade, antes inimaginável, mas atualmente possível, é um exemplo de reinvenção da família.

A desvantagem é que cada um tem que se reinventar a partir de si mesmo, já que não conta com o apoio simbolizante das instituições. Ser “diferente” tornou-se, se não obrigatório, pelo menos desejável. É uma tarefa solitária, angustiante e exaustiva. A subjetividade tem que se constituir em meio a um estado de depleção simbólica - situação em que instituições frágeis não têm lastro nem credibilidade para produzir significações operantes (Castoriadis, 1975).

Ora, o psiquismo depende das significações oferecidas pelas instituições para atribuir algum sentido à realidade e simbolizar as experiências emocionais. Na ausência de verdades absolutas, tudo é possível; há liberdade, mas também há obrigação de encontrar seu próprio caminho. Quem não consegue fica perdido, sem chão, sem rumo, sem projeto de vida.

Percebe-se, então, que instituições excessivamente fortes produzem um tipo de mal-estar (a culpa ligada ao sofrimento neurótico), e instituições excessivamente frágeis produzem outro tipo de mal-estar (o tédio ligado às patologias do vazio). As formas de sofrer, em cada época e lugar, são consubstanciais às formas de ser.

Assim, o mal-estar na pós-modernidade, relacionado à fragilidade do símbolo, é um sofrimento existencial, consubstancial com a forma de subjetividade da época. Trata-se de uma forma de ser. Saindo, porém, do plano existencial e passando para o da psicopatologia, em um dos extremos, encontramos o sofrimento ligado à experiência de vazio, de falta de sentido e de tédio existencial; no outro, atuações dos mais variados tipos, nas quais a violência pulsional permeia as relações intersubjetivas.

A noção de depleção simbólica vai nos servir para fazer a mediação entre a crise das instituições no nível social e o sofrimento psíquico individual. Tomo emprestado da medicina o termo depleção, que significa redução de alguma substância no meio celular, com prejuízo de seu funcionamento. A depleção de ferro no organismo, por exemplo, produz anemia, acarretando extrema fraqueza e falta de ar. Pareceu-me uma boa imagem para falar do que vem acontecendo com o aparelho psíquico e seu funcionamento no mundo contemporâneo: a insuficiência/fragilidade do símbolo vem produzindo uma espécie de anemia psíquica. Diante disso, o sujeito luta para encontrar mecanismos defensivos ou compensatórios, o que nos introduz no campo da psicopatologia psicanalítica.

 

Depleção simbólica: níveis macro e micro

A depleção simbólica pode ser considerada no nível macro, o das grandes instituições sociais no seio das quais nos subjetivamos, e também no nível micro, que envolve a relação do bebê com seus objetos significativos.

Como sabemos, uma parte essencial da função materna é ler e traduzir o bebê para ele mesmo: isto é fome; isto é raiva. Mas ela também lê e traduz o mundo para ele: isto é bom (ou mau); isto é perigoso (ou seguro); isto tem valor (ou é desprezível); isto é proibido (ou obrigatório).

Ou seja, a função materna institui sentidos para o bebê, e por isso tomo a liberdade de entendê-la como uma microinstituição. Pelo simples fato de oferecer algum sentido - qualquer sentido -, essa microinstituição promove o apaziguamento simbolizante (o termo é de Roussillon). Inversamente, a ausência de sentido impede a ligação das pulsões ou promove seu desligamento, o que é profundamente desorganizador para o psiquismo.

Ora, a crise das instituições no mundo contemporâneo inclui, como não podia deixar de ser, as duas microinstituições mais diretamente ligadas à constituição do sujeito psíquico: a psique materna e a família edipiana.

Se antes a jovem mãe contava com as certezas dadas pelas instituições modernas - a família ampliada, a comunidade e os pediatras -, agora ela é obrigada a criar, a partir de si mesma, em meio a um relativismo absoluto de valores, o que é bom e o que é mau, o que é certo e o que é errado. Podemos imaginar a angústia que permeia a relação consigo mesma e, inevitavelmente, com o bebê.

Da mesma forma, o pai tinha certezas sobre qual era o seu papel. A crise das instituições afeta sua maneira de perceber tanto sua masculinidade quanto sua paternidade. Mãe e pai se veem lançados na angústia do desamparo iden-titário (Muszkat, 2011).

Não vou retomar aqui temas por demais conhecidos, como a insuficiência da função materna, especialmente em sua vertente simbolizante. Basta dizer que, do ponto de vista psicopatológico, a subjetividade que se constitui em meio à depleção ou, em muitos casos, em meio à miséria simbólica está sujeita a experiências emocionais que excedem sua capacidade de elaboração.

Como sabemos, isso afeta a constituição do eu e o obriga a lançar mão de defesas, que poderão ser extremamente custosas para o indivíduo e para a sociedade. Assim como a reposição de ferro melhora a anemia, o fortalecimento não enrijecido das instituições (macro e micro) promove uma espécie de reposição simbólica. A credibilidade e a confiança nas significações instituídas aliviam consideravelmente o sofrimento existencial e psicopatológico que caracteriza a subjetividade pós-moderna.

Sublinho o fato de que a miséria simbólica não tem relação necessária com a classe social. Famílias das classes a e b podem ser absolutamente miseráveis desse ponto de vista, como constatamos diariamente em nossos consultórios. Por outro lado, a inclusão cultural das classes desfavorecidas tem se mostrado um fator terapêutico de alcance indiscutível. Noto também que a inclusão cultural é muito diferente da assim chamada inclusão social, que costuma ser medida pelo aumento do poder de consumo da população.

Para lidar com o sofrimento ligado à depleção simbólica, o eu lança mão de estratégias defensivas específicas, entre as quais destaco três:

• Quando a capacidade de gestão da angústia é insuficiente, há um trans-bordamento pulsional. Segundo Green (1988), estudioso dos estados-limite, os afetos ligados a experiências emocionais que o psiquismo não consegue conter/elaborar em seu espaço próprio são evacuados para fora de seus limites. Ele vê dois tipos de transbordamento: para fora, no campo social, ou para dentro, no soma - os dois espaços não psíquicos que fazem fronteira com o campo psíquico.

• O segundo recurso defensivo que o sujeito contemporâneo encontra para lidar com o sofrimento ligado à depleção simbólica pode ser descrito como comportamental. Esse recurso - que assume duas formas metapsicologicamente distintas - tende a ser mais aceito socialmente do que o transbordamento e o desinvestimento pulsional. Isso porque o comportamento se confunde com modos de ser culturalmente espera-dos e o sintoma fica camuflado. Refiro-me à adição a estímulos senso-riais e à compulsão que visa produzir próteses identitárias.

• Finalmente, quando o laço simbólico necessário para ligar a pulsão é excessivamente corrediço, o sentido - que poderia nutrir um projeto de vida ou o ideal do eu - não se fixa e não pode ser sustentado pelo aparelho psíquico como desejo. Observa-se um desinvestimento pulsional generalizado, que produz quadros nos quais o paciente relata vivências de vazio, tédio e apatia - o que, como foi dito, pode ser confundido com depressão. No entanto, ao contrário desta, em que o sujeito des-espera - ele perde as esperanças - de realizar o desejo, aqui não há desejo: nenhum objeto se destaca na paisagem e o sujeito não consegue investir em nada. Em lugar do sentimento de tristeza ou da dor da perda na depressão, encontramos aqui a angústia branca, sofrimento ligado ao negativo: o vazio psíquico e a desobjetalização. São quadros em que vemos um “desinvestimento maciço, tanto radical como temporário, que deixa traços no inconsciente na forma de buracos psíquicos” (Green, 1988, p. 152).

Paula é um caso típico. Constituiu-se psiquicamente num ambiente em que, à miséria simbólica em nível macro, somou-se a miséria simbólica em nível micro.

 

Finalizando

Se o mundo produz formas de sofrer que são consubstanciais às formas de ser, ele também oferece elementos para atenuar esse sofrimento, seja ele meramente existencial ou francamente patológico. Retomo o fragmento clínico para comentar dois detalhes à luz da ideia de adição e compulsão como recursos defensivos diante da angústia branca.

Paula disse na primeira entrevista que adora montanha-russa e que já fora adepta de esportes radicais. Como vimos, uma das defesas contra o tédio, ou angústia branca, são os comportamentos aditivos. Podemos falar em adições quando o sujeito recorre a substâncias e comportamentos que visam atenuar a angústia (de fragmentação, persecutória etc.) ou estimular e excitar o ego tomado pelo tédio e pela apatia (angústia branca). As substâncias psico-ativas podem ser artificiais, produzidas pelo narcotráfico e/ou pela indústria farmacêutica, ou naturais, como a adrenalina e a endorfina, produzidas por exercícios físicos em excesso ou por esportes radicais.

Não cheguei a mencionar que Paula compra compulsivamente roupas e acessórios, que servem para dizer ao mundo e a si própria quem ela é. Depois de ter tido filhos, passou a comprar também para eles, vividos como seu prolongamento narcísico. Os signos culturais que consome são concretos, exteriores ao espaço psíquico. Não seguem o caminho da internalização de experiências emocionais com objetos significativos e que, uma vez simbolizadas, dão consistência ao eu. Comprar, para ela, é tanto uma forma de fugir do tédio quanto de afirmar alguma coisa sobre o eu.

Percebe-se que as compulsões pós-modernas são diferentes das compulsões neuróticas clássicas, como lavar as mãos ou verificar se o gás está fechado. Tais comportamentos podiam ser interpretados classicamente, isto é, em seu valor simbólico. Na atualidade, em meio à miséria simbólica, o que se verifica é, ao contrário, uma tentativa desesperada de encontrar algum sentido para a existência. É um desafio e tanto para o analista, que precisa se reinventar como clínico para dar conta de uma forma de sofrimento que, ouso pensar, era inconcebível para Freud.

 

Referências

Castoriadis, C. (1975). L'institution imaginaire de la société. Paris: Seuil.         [ Links ]

Green, A. (1988). Sobre a loucura pessoal (C. A. Pavanelli, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ] Minerbo, M. (2013). Ser e sofrer, hoje. Ide, 35(55),31-42.         [ Links ]

Minerbo, M. (2016). Barulho. Silêncio. Trabalhando com os ecos da pulsão de morte. Revista Brasileira de Psicanálise, 50(4),49-64.         [ Links ]

Muszkat, S. (2011). Violência e masculinidade. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Marion Minerbo
Rua Alcides Pertiga, 53
05413-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3898-0074
marionminerbo@gmail.com

Recebido em 23.07.2017
Aceito em 08.08.2017

 

 

1 Este é um fragmento de um dos dois casos apresentados e discutidos no texto “Barulho. Silêncio. Trabalhando com os ecos da pulsão de morte” (Minerbo, 2016).
2 Este trecho faz parte do texto “Ser e sofrer, hoje” (Minerbo, 2013).

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