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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo July/Sept. 2017

 

TÉDIO

 

Do tédio à rêverie: vicissitudes da intersubjetividade no enquadre psicanalítico

 

From boredom to reverie: vicissitudes of intersubjectivity in the psychoanalytic framework

 

Del aburrimiento a la reverie: vicisitudes de la intersubjetividad en el encuadre psicoanalítico

 

De l'ennui à la rêverie: vicissitudes de l'intersubjectivité dans le cadre psychanalytique

 

 

Talya S. Candi

Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora se dedica a refletir acerca das vicissitudes dos sentimentos de tédio na relação analítica, particularmente o tédio do analista em sessão. Seguindo Winnicott, propõe pensar que o tédio do analista é um elemento que serve para diagnosticar a indicação de psicanálise ou de psicoterapia. Ressalta a necessidade de diferenciar dois tipos de tédio: o primeiro tipo (tédio benigno) resulta de um tempo necessário de espera para que a angústia e os afetos presentes na sessão possam ser metabolizados e achar uma via de expressão; o segundo tipo (tédio maligno) é fruto do desligamento e da desesperança e requer um trabalho psíquico ativo do analista (uma rêverie). A autora utiliza material clínico para ilustrar os processos intersubjetivos ligados a esses dois tipos de tédio.

Palavras-chave: tédio, comunicação pré-verbal sem representação, intersubjetividade, evocação, rêverie


ABSTRACT

This paper shows the author's thoughts on the vicissitudes of boredom in the psychoanalytic relationship, especially the analyst's boredom during the session. Inspired by Winnicott, the author suggests that the psychoanalyst's boredom should be considered an element that serves the purpose of indicating either Psychoanalysis or Psychotherapy for the specific case. The author emphasizes the importance of distinguishing the two kinds of boredom. The first type of boredom - the benign boredom - results from a time of waiting which is needed in order to enable the anguish and affections experienced in the session to be digested so that they may find a way of expression. The second type - the malign boredom - is a result of des-objetalization and hopelessness; it requires the psychoanalyst's psychic work to be active (a reverie). The author uses clinical vignettes to illustrate the intersubjective processes that are connected to these two kinds of boredom.

Keywords: boredom, preverbal communication, intersubjectivity, evocation, reverie


RESUMEN

El autor reflexiona sobre las vicisitudes de los sentimientos de aburrimiento en la relación analítica, particularmente del aburrimiento del analista en la sesión. Siguiendo a Winnicott el autor propone pensar que el aburrimiento del analista es un elemento que sirve para diagnosticar la indicación de psicoanálisis o psicoterapia. El autor resalta la necesidad de diferenciar dos tipos de aburrimiento. Un primer tipo denominado tedio benigno, que es resultado de un tiempo necesario de espera para que la angustia y los afectos presentes en la sesión puedan metabolizarse y encontrar una vía de expresión. Y un segundo tipo de aburrimiento, el tedio maligno, que es fruto de la des-objetalización y la desesperanza y que requiere un trabajo psíquico activo por parte del analista (una reverie). El autor utiliza material clínico para ilustrar los procesos intersubjetivos relacionados a estos dos tipos de aburrimiento.

Palabras clave: aburrimiento, comunicación preverbal, intersubjetividad, evocación, reverie


RÉSUMÉ

This paper shows the author's thoughts on the vicissitudes of boredom in the psychoanalytic relationship, especially the analyst's boredom during the session. Inspired by Winnicott, the author suggests that the psychoanalyst's boredom should be considered an element that serves the purpose of indicating either Psychoanalysis or Psychotherapy for the specific case. The author emphasizes the importance of distinguishing the two kinds of boredom. The first type of boredom - the benign boredom - results from a time of waiting which is needed in order to enable the anguish and affections experienced in the session to be digested so that they may find a way of expression. The second type - the malign boredom - is a result of des-objetalization and hopelessness; it requires the psychoanalyst's psychic work to be active (a reverie). The author uses clinical vignettes to illustrate the intersubjective processes that are connected to these two kinds of boredom.

Mots-clés: boredom, preverbal communication, intersubjectivity, evocation, reverie


 

 

O tédio como elemento diagnóstico

Em sua introdução ao livro de Winnicott Holding e interpretação, Masud Khan menciona a seguinte anedota: aproximadamente seis meses antes da morte de Winnicott, um grupo de jovens padres anglicanos o convidou para uma conversa. Em dado momento, os padres pediram que Winnicott estabelecesse um critério para diferenciar a pessoa que procurava ajuda porque estava doente e necessitava de tratamento psicanalítico e aquela que podia ser ajudada simplesmente por meio de uma conversa com um deles. Winnicott teria ficado momentaneamente espantado pela simplicidade da pergunta e, depois de um silêncio reflexivo, teria respondido:

Se uma pessoa vem falar com você e, ao ouvi-la, você sente que a conversa o está entediando, então a pessoa está doente e precisa de tratamento psicanalítico. Mas, se ela consegue manter o seu interesse independentemente da gravidade do conflito ou sofrimento, então você pode ajudá-la. (1986/1991, p. 1)

Nessa surpreendente afirmação, Winnicott considera o tédio como proveniente de um aspecto patológico da personalidade do paciente, que agiria ativamente para entorpecer o interesse do padre e que exigiria, portanto, os cuidados de um profissional da psicanálise.

Segundo o dicionário Le petit Robert (1993), o tédio surge a partir de uma sensação de vazio, de cansaço, causada pela ociosidade de uma ocupação repetitiva e monótona, que termina tornando-se desprovida de interesse. Surpreendentemente, é o desinteresse do discurso do paciente que serve como indicação da necessidade de um psicanalista.

O que pensar de uma situação analítica na qual predomina o tédio? O tédio seria o indício de um encontro oco, de uma análise que não funciona, de um paciente gravemente doente?

Neste artigo, abordaremos as vicissitudes dos sentimentos de tédio que podem surgir ao longo de um processo analítico.

Sugiro pensar que, passada a excitação inicial necessária para o engajamento numa análise, certa quantidade de sensação de monotonia e de tédio pode aparecer em todo processo analítico. Ela é um produto do que Freud denominou de compulsão à repetição, que ativa um tipo de comunicação em ação, uma ação na fala. Gostaria de propor que o tédio congela o movimento do processo analítico; que o monitoramento do tédio contratransferencial oferece informações valiosas acerca da qualidade da presença e do investimento libidinal do analista, tão necessários para vitalizar a análise dos ditos casos difíceis; e que, quando os afetos despertados pelo tédio podem ser elaborados e sonhados na contratransferência num espaço intersubjetivo, a análise consegue sair da situação congelada e abrir novos caminhos de pesquisa.

A etimologia da palavra tédio nos leva a dois verbos da língua latina: onidiare e taedere.

Onidiare aproxima o tédio ao ódio de si mesmo. O substantivo do verbo onidiare é inodium. Com o tempo, inodium transformou-se na palavra francesa ennui. A frase “Est mihi in odio”, traduzida em português por “Isto está me entediando” (“Cela m'ennuie”, em francês), significa literalmente, em latim clássico, “Isto é um objeto de ódio para mim”. Ennui e ódio estão entrelaçados em sua própria origem.

Por outro lado, a origem da palavra portuguesa tédio provém do termo taedium, que se refere a “enfado, desinteresse, repugnância” e deriva do verbo taedere, que significa “cansar, trazer monotonia”. O tédio remete à monotonia de um acontecimento repetitivo.

Coube ao filósofo alemão Martin Heidegger propor, em Ser e tempo (1927/1990), uma interpretação temporal do tédio. Para Heidegger, o tédio se instala quando não encontramos um objeto para passar o tempo. Estaríamos entediados porque o tempo não passa, porque esperamos alguma coisa que não chega e que poderia nos ajudar a fazer passar o tempo. O tédio marcaria um momento em que nada acontece ou, dito de outra forma, em que o que acontece não é digno de interesse e acaba se transformando em nada. O tédio se tornaria uma medida da decalagem entre o que imaginamos que poderia estar acontecendo e o que realmente está acontecendo. Ele seria a marca de uma espera dolorosa, que esvazia o acontecimento, pois retira o possível interesse que o objeto poderia apresentar para o sujeito. Se o tédio fosse uma patologia, sua etiologia estaria do lado do ideal e do vazio.

Quanto mais intenso for o tédio, mais o analista sentirá dificuldade de digerir essa fala/ação/tédio, processar os afetos presentes e dar significado ao que está acontecendo. Acredito que a linguagem em ação (Busch, 2017) da compulsão à repetição carrega um pensar pré-simbólico. Esse pensar pré-simbólico impregna o clima da sessão e exerce no analista uma pressão mais ou menos consciente, que trabalha a serviço da compulsão à repetição e da resistência, paralisando o andamento do processo de simbolização.

Wilfred Bion vincula a rêverie materna ao sonhar do analista. Com o sonhar, Bion (1992) se refere à capacidade de transformar as impressões sen-soriais e corporais em imagens visuais geralmente encontradas em sonhos. A capacidade de rêverie do analista depende de uma experiência que é veiculada pela ansiedade e que passa pela intuição (Bion, 1970/1974). O analista percebe intuitivamente algo dos acontecimentos mentais de que o paciente não está consciente e que não aparece no discurso e nas associações do paciente. Trata-se de situações em que nada parece estar acontecendo. A rêverie digere a angústia e transforma as sensações corporais ligadas ao tédio em algo que possa iluminar o vazio do nada, o vazio do tempo que não passa. É importante, então, que o analista se mantenha em contato com suas memórias corporais mais arcaicas, para captar e entrar em ressonância com as comunicações pré-verbais do paciente. Isso porque, se há uma paralisação no processo de simbolização, há um empobrecimento dos vínculos com o mundo externo e, concomitantemente, um empobrecimento dos objetos internos. Os mundos interno e externo tornam-se cinzentos, esvaziados. Assim, a rêverie do analista é um elemento precioso para introduzir formas vivas que possam descongelar o processo de simbolização e dar representação aos afetos presentes no campo analítico.

André Green (1987/1990b) situa a rêverie do analista como decorrente da penumbra, da sombra das imagens, sensações, lembranças, ideias e emoções que a fala associativa do paciente desperta no analista. Segundo Green, a rêverie do analista surge a partir do eco da fala do paciente: uma resposta interna que se desenvolve com o impacto produzido pela comunicação verbal e pré-verbal do paciente, que pode manter-se em silêncio elaborativo ou dar lugar a uma interpretação. Seja no silêncio, seja na interpretação, a atenção flutuante é fruto da situação analítica, do investimento pulsional do analista que acolhe o impacto da presença do paciente e sustenta a sua atenção viva. Thomas Ogden (2013), por sua vez, indica que nenhuma rêverie deve ser considerada uma via régia de acesso ao inconsciente do outro, e que o sentido da comunicação do paciente deve ser alcançado sem pressa, num tempo que respeite a força da resistência e das defesas.

Num contexto clínico intersubjetivo, proponho diferenciar dois tipos de tédio. Poderiamos nomear o primeiro, ligado ao taedium, de tédio benigno. Nesse caso, a compulsão à repetição instaura uma monotonia que se configura como um vazio necessário, a partir do qual pode advir uma interpretação/imagem/lembrança capaz de dar sentido e preencher o vazio que habita a relação. No tédio benigno, há um tempo de espera que deve ser tolerado pelo analista, um tempo necessário para acordar os afetos e despertar um discurso interno, que se organiza numa série de ideias, lembranças, representações e associações e acaba se configurando numa rêverie e, eventualmente, numa interpretação, reflexo do pensar pré-verbal do paciente implícito no tédio.

O segundo tipo, o tédio maligno, decorre de onidiare, de um ódio de si mesmo que provoca desvitalização e desligamento. Acreditamos que esse tipo deriva da negatividade e se configura a partir de um tempo de morte psíquica no qual se instalou o que Green (1979/1990c) denominou de lógica da desesperança. Essa lógica se inscreve no psiquismo como um tempo em que não existe mais espera e esperança possível. É o caso de sujeitos nos quais o tédio e a agonia impregnam muito fortemente os investimentos e os destinos libidinais, tanto o objetal quanto o narcisista.

 

O tempo da espera e a situação analítica

Em 1974 (1990a), Green define a situação analítica como o conjunto dos elementos envolvidos na relação analítica, em que um processo se desenvolve no tempo. A situação analítica constitui-se pelos nódulos provocados pela transferência e pela contratransferência, graças ao estabelecimento e à delimitação do enquadre. Ela é influenciada não somente pelo material do paciente, mas também pela pessoalidade do analista, suas leituras e suas discussões com os colegas. Além de colocar a contratransferência como anterior à transferência, Green a posiciona em estreita ligação com toda a vida mental do analista e inclui nesse conceito todo o funcionamento mental do analista. Com isso, amplia a noção de contratransferência e subordina a apreensão da própria situação analítica ao funcionamento mental do analista.

O enquadre analítico é uma matriz simbólica, um continente vazio que sustenta a criação do sentido. O silêncio esperançoso é o pano de fundo do processo analítico. No âmago do método analítico, residem a ausência e o silêncio. O silêncio do analista é silêncio de espera das associações do paciente e silêncio de acolhimento do eco que essas associações provocam na subjetividade do analista, entendida como subjetividade pulsional. O silêncio é a marca de uma exigência de trabalho psíquico que surge como consequência do vínculo do corpo do analista com o corpo do analisando. Esse vínculo produz uma tensão que demanda um trabalho de transformação, um trabalho de sonho.

Para Green (1979/1990d), o silêncio do analista é solidário dos outros parâmetros que definem a situação analítica. Assim, o analista, visível no começo da sessão, cessa de sê-lo ao longo dela, para tornar a sê-lo no final; o paciente em análise suporta esse silêncio na posição deitada, na qual sua motricidade está restrita; esse conjunto de condições, do qual o silêncio faz parte, é indutor das forças que movimentam as associações e os pensamentos endereçados a esse objeto inacessível, que retornam sobre o analisando, encadeando-se a outros. O silêncio torna-se, então, como a tela de fundo do sonho, sobre a qual se desenrola a circulação das energias afetivas e das imagens que caracteriza a atividade da associação livre.

O espaço analítico é um espaço do sonho. O silêncio é um tempo de espera, um tempo suspenso que resulta do investimento libidinal do analista e da aptidão de guardar memórias afetivas significativas. Trata-se do que Emmanuelle Chervet (2017) denomina de representação de espera, que sustenta a ausência e modula a angústia que movimenta a procura de uma ideia a ser investida.

O tempo de espera do analista em sessão recobre o momento muito sensível e delicado da ausência e do nada, no qual pode acontecer a separação entre o sujeito e o objeto, entre o paciente e o analista. É nesse tempo de espera, tempo do nada, que pode advir o que Winnicott (1953/1975b) chamou de espaço potencial. A tolerância ao tédio seria comparável à tolerância à espera da resposta materna. Quanto tempo a criança pode esperar brincando sozinha, sem a presença da mãe, sem ter algum sinal concreto da sua existência? Quanto tempo a marca psíquica de um objeto pode permanecer viva na mente da criança?

Cabe lembrar que, para apreender o fator quantitativo que existe no espaço potencial, Winnicott (1967/1975a) voltou-se para a questão da temporalidade, dando uma medida quantitativa à resposta materna. A tolerância ao sofrimento interliga a urgência pulsional à duração da espera da resposta materna. Expliquemos. Se o chamado de desespero da criança não puder ser satisfeito antes de um prazo x, a resposta do objeto que eventualmente neutralizaria os efeitos desorganizadores da ausência não será eficaz. No entanto, um tempo x poderá ser facilmente suportado em certo momento do desenvolvimento graças à possibilidade de antecipação e à realização alu-cinatória do desejo. Por outro lado, se a resposta materna chegar num tempo X + Y, a criança experimentará uma desorganização maior, o que tornará mais difícil restabelecer o equilíbrio anterior, provocando sentimentos de angústia. Se, finalmente, a resposta acontecer num prazo X + Y + Z, a angústia será excessiva, a criança viverá um estado de agonia com efeitos que podem chegar a ser irreversíveis e fazer desaparecer a marca representativa do objeto da satisfação, que permitia a antecipação e a realização alucinatória do desejo. O não acontecido se tornará, então, mais real e verdadeiro do que qualquer resposta que surja depois. O negativo terá imprimido sua marca de maneira inesquecível no psicossoma da criança. Green aponta, nesses casos, uma subversão do trabalho do negativo, pela qual se instala a lógica da desesperança.

Quando a representação do objeto interno se desvitaliza e se esfumaça, a capacidade de criar e manter objetos transicionais que preencham o espaço potencial criativamente fica muito prejudicada. Winnicott, nessa argumentação, tenta construir a metáfora de uma linha, uma fronteira temporal e espacial, que separa o território dos vivos e o dos mortos. Em algum lugar no meio dos dois, nos diz Winnicott, pode haver um precioso momento de raiva que emerge momentaneamente, indicando uma ligação entre as noções de vitalidade e de destrutividade. Nesses momentos de raiva, a criança se vê habitada por uma força impessoal incontrolável, que pode parecer sádica e que ela sente como tendo o potencial de destruir tanto a ela própria quanto aos objetos ao seu redor.

A raiva e a destrutividade seriam, portanto, uma tentativa desesperada de manter algum contato com a vitalidade afetiva, o que permitiria não mergulhar no que Green (2000/2002) nomeou de a morte em vida (la mort dans la vie), pois a destrutividade ativada nesse caso é difusa e vivida como orientada tanto para o interior quanto para o exterior. A morte aqui significa uma perda de esperança, levando ao que desenvolvemos antes a partir da lógica da desesperança. Contudo, vale acrescentar o fato de que, segundo Green e Winnicott, o que prevalecerá nesse caso, além da perda da esperança e da destrutividade difusa, será um desinvestimento do próprio eu e do mundo externo.

Esse desinvestimento, ligado ao que Green (1983) chamou de narcisismo de morte, será vivido como um vazio existencial, pois produzirá uma interrupção nos processos de simbolização, tanto da experiência de ser no mundo quanto de ser no tempo, impossibilitando a criança de criar experiência de Do tédio à rêverie: vicissitudes da intersubjetividade no enquadre psicanalítico temporalidade, uma vez que todo o processo de antecipação que permite qualquer vivência de futuro é interrompido.

Segundo Green (1985), ao falar de uma espera X + Y + Z insuportável, Winnicott tenta quantificar o acontecimento que produzirá a interrupção do espaço potencial, apontando para uma ausência intolerável que instala a desesperança. A perspicácia de Winnicott, porém, permitiu-lhe descrever o fenômeno inverso, que parecia produzir desastres igualmente assoladores, os quais não surgiam, no entanto, como efeito da ausência, mas sim de uma presença excessivamente invasiva - uma impossibilidade de espera do lado da mãe e que mutila qualquer possibilidade de desejar na criança. A própria capacidade de espera se vê, também aqui, boicotada pela mãe, impedindo a criança de apossar-se de seus próprios desejos. A presença excessiva deixa a criança entrever cedo demais o rosto de uma mãe invasiva, no qual ela não pode se espelhar. Nesse caso, a resposta do objeto será vivida como uma intrusão intolerável e detonará uma destrutividade e um masoquismo que impossibilitarão a produção de novas experiências.

A ausência prolongada demais será vivida como angústia de abandono, ao passo que a presença próxima demais se tornará uma angústia de intrusividade (ou de claustrofobia).

De fato, essas situações de excesso, que podem ser figuradas tanto pela falta de presença ou de estímulo quanto pelo excesso, acionam um tipo de angústia devastadora para o psiquismo, deixando o sujeito num mundo em que predominam a paralisia (o tempo que não passa, o tempo da repetição e do tédio benigno) e a fragmentação e a impossibilidade (a ruminação interminável, o tédio maligno).

 

Intervalo clínico

Caso clínico 1: o tédio benigno

Jorge é um jovem médico que veio me procurar por se sentir completamente desmotivado com o trabalho. Ele foi abandonado pela namorada, que não tolerava sua dedicação à vida profissional. A fala de Jorge é quase sempre entrecortada e vagarosa, como se no meio das frases ele esquecesse onde estava ou se esquecesse de mim, ou ainda como se tivesse muito medo de me contar e de se/me decepcionar. Assim, valeria mais ficar em silêncio. Isso produz em mim uma mistura de irritação, desligamento e tédio. Eu perco a atenção e acabo pensando em outras coisas. Às vezes, acho que ele está me provocando para me fazer perder a calma. Com o tempo, a impaciência e o tédio acabam tornando-se mais fortes. Para não deixar transparecer minha impaciência, percebo-me respirando lentamente. Um dia, depois de uma sessão particularmente difícil, consigo transformar o meu esforço para não explodir numa imagem. Vejo-me dentro de uma piscina, brincando com meu irmão de um jogo no qual ganha quem segurar a respiração por mais tempo, sem sair da água. Participo da brincadeira contando lentamente de um a dez, e finalmente me vejo sair da água gritando de alegria, tendo conseguido reter minha respiração por bastante tempo. Na minha rêverie, a minha excitação murcha rapidamente quando percebo que meu oponente ainda se encontra dentro da água.

Depois de um tempo, comunico a Jorge o meu sentimento de estar brincando de segurar a respiração. Digo que talvez ele precise me testar para ver se eu aguentaria a pressão para me manter viva e acordada durante nossos encontros. Jorge responde rindo e diz que, quando era adolescente, gostava bastante dessa brincadeira e que era “bem bom nesse jogo”, já que sempre conseguia desmontar o adversário. Essa rêverie foi determinante para dar representação ao que estava sendo encenado na análise. Para Jorge, a possibilidade de entregar-se e expor-se na relação analítica permanece entremeada de ambivalências intensas, nas quais se aproxima e se distancia, num movimento que oscila entre confiança e desconfiança quanto à possibilidade de relação comigo. Confiar em mim e entregar-se à analise é vivido violentamente como um assassinato ou uma morte, pela renúncia das relações narcisistas idealizadas.

Caso clínico 2: o tédio maligno

Bia é uma mulher de meia-idade, agradável e inteligente. Ela é promotora no Ministério Público, divorciada e tem um filho do qual cuida sozinha. Ao longo das sessões, Bia me faz deparar com uma situação surpreendente. Ela fala sem parar de coisas que, a priori, poderiam me interessar, acontecimentos diversos que poderiam capturar a minha atenção, mas que acabam me deixando entorpecida e com sono. Passados dois anos, essa experiência subjetiva continua. Meu sofrimento se manifesta através da sensação de um tempo que não passa e de uma sessão que não acaba. Percebo-me olhando repetidamente para o relógio, que parece estar parado. Um minuto, outro minuto, mais um minuto... No final, sinto que a sessão durou uma eternidade. Experimento uma agonia que não consigo transformar em imagem e pôr em palavras, o que provoca em mim uma terrível vivência de tédio. Às vezes, sinto-me completamente entorpecida e luto arduamente contra o sono. Por outro lado, noto que ela é uma pessoa agradável, inteligente e que, se consigo acompanhar o relato, ele se mostra interessante. Essa percepção consciente torna muito enigmáticos a minha falta de paciência e o meu tédio. Minha luta interna para me manter interessada desperta sentimentos paradoxais e confusos: culpa por não conseguir me interessar pela vida de Bia, agonia de sair rapidamente da sessão, vontade de me livrar dela.

Ao tentar colocar o meu sofrimento em palavras, finalmente me lembro de uma cena da minha infância: eu, criança, em pé junto à janela da casa dos meus pais, de noite, esperando a minha mãe voltar do trabalho. Recordo que costumava esperar olhando pela janela, imersa na escuridão. Contando os minutos, brincava de adivinhar o número de carros que passaria pela nossa rua até a chegada do carro da minha mãe, que poderia finalmente me salvar da agonia. Essa lembrança estava marcada por uma sensação de vida ou morte: e se a mãe não voltasse para casa? O vazio da sua ausência se perpetuaria para sempre? O que aconteceria com a nossa casa, comigo e com os meus irmãos?

Durante algum tempo, essa evocação/rêverie me foi muito útil para sustentar a atenção e aguentar ficar acordada nas sessões de Bia. Numa sessão na qual me sinto particularmente inundada pelo fluxo ininterrupto de sua fala e imersa num sentimento de solidão, consigo falar sobre o desespero e a escuridão. Digo que ela usa sua fala ininterrupta para anestesiar a agonia, para adormecer o seu sentimento de solidão e o seu medo de não ter ninguém. Bia chora em silêncio por alguns minutos, mas rapidamente recupera o fôlego e continua sua fala solitária, prosseguindo seu percurso agónico. Por enquanto, a dor não parece ter consolo.

 

Do tédio à rêverie: a evocação de um objeto morto

A partir da introdução da noção de campo dinâmico pelo casal Baranger (1961-1962/2008), começou-se a ter um consenso na psicanálise contemporânea de que o trabalho consciente e inconsciente do analista com o seu paciente se desenvolve dentro de um contexto bipessoal intersubjetivo complexo, em que ambos os participantes se definem mutuamente, o que implica que tudo o que acontece na situação analítica deve ser compreendido nesse contexto bipessoal criado pelas duas subjetividades que participam da situação analítica. Segundo esses autores, a situação analítica é um campo de força que mobiliza uma tensão dinâmica entre o paciente e o analista, a qual, por sua vez, induz o desenvolvimento psíquico. Nessa configuração, a subjetividade do analista e seu inconsciente participam inevitavelmente na estruturação da matriz intersubjetiva do campo analítico. O funcionamento mental do analista, a sua maneira muito particular de acolher e escutar o paciente e o seu trabalho imaginativo serão determinantes. É por meio da minuciosa elaboração da contratransferência que o analista terá acesso à natureza do campo intersubjetivo criado pelo paciente.

Percebemos, assim, que a noção de campo tornou ainda mais complexo o trabalho do analista, o qual precisa agora descentrar a sua pesquisa da psicopatologia do paciente para focalizar o campo criado pela relação analítica, o processo analítico e a sua dinâmica. A tarefa não é desembaraçar os elementos constitutivos do campo, num esforço para determinar que qualidades pertencem a cada indivíduo que participa dela. Pelo contrário: do ponto de vista do campo dinâmico, a tarefa analítica envolve uma tentativa de nomear e descrever o mais completamente possível a natureza específica da experiência do interjogo e dos jogos que se formam entre o plano da subjetividade individual do paciente e o plano da intersubjetividade. Isso se dá por via de um mútuo reconhecimento, que muitas vezes é mediado pela compreensão do analista, mas que também pode surgir inesperadamente a partir da abertura de novos caminhos associativos do paciente. Esse trabalho de elaboração leva a um aprofundamento da dinâmica transferência-contratransferência e a um aumento da intimidade do paciente consigo mesmo. O conceito de campo dinâmico nos permite pensar que as dificuldades encontradas numa análise não se devem à resistência do paciente ou, eventualmente, à do analista, mas são fruto de transferências e identificações projetivas cruzadas, que geram um curto-circuito das forças e paralisam o interjogo entre projeção e introjeção.

A relação entre analista e analisando, enquanto sujeitos separados, ocorre em vários níveis: corporal, sensorial, verbal consciente e inconsciente. Nesse contexto, Elias e Elizabeth da Rocha Barros (2012) ressaltam a questão da evocação, que é segundo eles o veículo da identificação projetiva. A evocação é também uma forma de apreensão não discursiva de complexas redes de relação entre afetos inconscientes e ideias que atravessam a interação entre as duas subjetividades presentes no campo. Ela se expressa, no mais das vezes, em imagens, numa captação figurativa (mas inclui também sensações corporais, sinestésicas, gestualidades expressivas, melodias) dos sentimentos envolvidos na dupla que permeiam o processo de constituição das representações mentais do paciente. É essa produção - que depois será objeto de sucessivas transformações de caráter simbólico, até tornar-se uma interpretação que poderá ser verbalizada para o paciente - que precisa ser examinada como constitutiva da contratransferência e que Bion, segundo E. e E. da Rocha Barros, denominou de rêverie. A rêverie, nesse contexto, é algo que pode outorgar representabilidade às forças em jogo no campo e, assim, viabilizar a construção de um processo de simbolização na relação intersubjetiva. Ogden (2013), porém, adverte-nos de que não é possível fazer traduções imediatas das rêveries para uma compreensão do que se passa na relação analítica; se esse procedimento for rapidamente incluído em interpretações, levará a uma compreensão muito superficial. Para esse autor, o analista precisa poder conviver com as sensações e emoções presentes na sessão durante um tempo às vezes muito longo, como aconteceu no caso da Bia, para finalmente tomá-las em consideração e usá-las numa interpretação.

Nos dois casos clínicos apresentados, vemos como as evocações produzidas na mente da analista são maneiras de conter as sensações de entorpecimento e de morte e organizar os afetos, através do estabelecimento de conexões mais ou menos inusitadas, transformando o sofrimento psíquico ligado à impaciência e ao tédio em algo mais suportável para ser pensado. Essas evocações tornaram-se conscientes somente depois de um processo de elaboração, que permitiu conter sensações de afogamento, agonia, abandono e desesperança e ligá-las a lembranças dispersas, numa forma passível de ser comunicada tanto para a própria analista quanto para o paciente. Segundo E. e E. da Rocha Barros (2012), para que essas evocações sejam objeto de reflexão, elas necessitam ser colocadas em palavras, que constituem o instrumento concomitantemente mais abstrato e mais plástico para o pensamento. A evocação é um protopensamento que tem a característica de captar diversos conteúdos sem representação, possibilitando uma movimentação interna que insufla vida no processo analítico.

 

Reflexões finais

Ao propor que um paciente que desperta tédio no interlocutor precisaria ser encaminhado para um psicanalista, Winnicott sugere que o tédio encobre um sofrimento psíquico não representado. Trata-se de um sofrimento que não encontraria alívio numa conversa com um padre e que exigiria o trabalho psíquico de um analista que consiga transformar o cinza do tédio numa narrativa que possa outorgar representação e insuflar vida.

O enquadre psicanalítico tem a peculiaridade de ser um espaço de evocação e de sonho, tanto para o paciente quanto para o analista.

 

Referências

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Recebido em 21.08.2017
Aceito em 04.09.2017

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