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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo July/Sept. 2017

 

TÉDIO

 

Tédio, luto e melancolia

 

Boredom, mourning, and melancholia

 

Tedio, luto y melancolía

 

Ennui, deuil et mélancolie

 

 

Vera L. C. Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas, GEPCampinas, e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

Para caracterizar o tédio, tanto uma paciente como o filósofo norueguês Lars Svendsen recorreram a um mesmo poema de Fernando Pessoa. Essa curiosa coincidência estimulou a autora a entender o tédio no campo da psicanálise e esboçar suas principais características. As formulações de Freud sobre luto e melancolia e o conceito de Bion sobre clivagem forçada fundamentam a investigação.

Palavras-chave: tédio, luto, melancolia, clivagem forçada


ABSTRACT

In order to characterize boredom, both a patient and a philosopher - the Norwegian philosopher Lars Svendsen - have used the same poem by Fernando Pessoa. This curious coincidence has encouraged the author to understand boredom in the psychoanalytic field and to summarize the main aspects of this state. Freud's formulations on mourning and melancholia, and Bion's concept of enforced cleavage are the foundations of this study.

Keywords: boredom, mourning, melancholia, enforced cleavage


RESUMEN

Para caracterizar el tedio, tanto una paciente como el filósofo noruego Lars Svendsen recurrieron a un mismo poema de Fernando Pessoa. Esta curiosa coincidencia llevó a la autora a comprender el tedio en el campo del psicoanálisis y a describir sus principales características. Las formulaciones de Freud sobre luto y melancolía y el concepto de Bion sobre escisión forzada fundamentan la investigación.

Palabras clave: tedio, luto, melancolía, escisión forzada.


RÉSUMÉ

Pour caractériser l'ennui, une patiente, aussi bien que le philosophe norvégien Lars Svendsen ont eu recours à un même poème de Fernando Pessoa. Cette curieuse coïncidence a stimulé l'auteur à comprendre l'ennui dans le domaine de la psychanalyse et à ébaucher ses caractéristiques principales. Les formulations de Freud concernant le deuil et la mélancolie et le concept de Bion à propos du clivage forcé fondent la recherche.

Mots-clés: ennui, deuil, mélancolie, clivage forcé


 

 

Ela se deitou no divã e ficou em silêncio como de hábito, eu não disse nada, esperei. Então relatou que teve um final de semana difícil, só queria dormir. Um torpor, frisou. Durante a noite, lá pelas tantas, disse: “eu peguei o Livro do desassossego de Fernando Pessoa e abri em qualquer página, e me dei com a página 78, e era eu, fiquei perplexa, ele falava de mim”.

Pegou o livro e leu para mim em voz alta:

há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor de sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem.

Fazia já alguns anos que estávamos às voltas com essas sensações que a habitavam. Naquele dia ela trouxe Fernando Pessoa para nos ajudar a entender melhor esse seu estado de torpor, inércia, vazio e inutilidade.

Buscou análise porque há anos fora diagnosticada com depressão e vinha sendo medicada, sem alcançar nenhuma melhora. Queixava-se basicamente de estados de letargia e apatia que a impediam de concentrar-se no trabalho, cuidar da casa e das filhas. Dizia que, nos finais de semana, ficava feito barata tonta, sem conseguir fazer nada do que havia planejado. Esses estados fundamentavam uma limitação da originalidade e criatividade, um sentimento difuso de irrealidade e um sentimento difuso de não realização de seus projetos.

Geralmente, nossos encontros eram marcados por uma dificuldade nossa em alcançar um campo reflexivo em que não imperasse um tom lógico demais, simplista em demasia. Ela tinha uma tendência exagerada a relatar fatos concretos: problemas no trabalho, aborrecimentos com o marido, tornando quase inviável criar, nas sessões, um campo onírico capaz de nos aproximar de sua realidade psíquica.

Minhas tentativas de tecer uma narrativa a respeito de suas dores eram recebidas ora com um “É”, ora com a afirmativa “É, é mesmo, tão óbvio”.

Certa vez, quando em um dos raros momentos da análise ela me falou da falta que seu pai lhe fazia e me contou como seu pai havia falecido, tentei criar um entendimento sobre o trabalho de luto que a acometia, ela disse: “é isso, é óbvio”.

Essa experiência analítica faz parte de uma série de outras que venho vivenciando desde meados dos anos 1990. O estado de apatia, indiferença, insensibilidade, o sentimento de vazio e a ausência de significado na existência, não têm sido um fenômeno raro em minha clínica.

Em algum momento, conforme esses pacientes manifestavam esses estados, percebi que evocavam em mim um fastio, um enfado, um intenso sentimento de tédio.

A partir daí, quis saber mais sobre esta experiência emocional e encontrei o livro Filosofia do tédio, do filósofo norueguês Lars Svendsen (1999).

Para minha surpresa, logo no início do livro, Svendsen diz que a fe-nomenologia do tédio diz respeito a um eu que perde sua identidade na escuridão. Para descrever esse estado, quando não alcançamos o sono com sonhos e acabamos numa terra de ninguém, esse estado de adormecimento entre a vigília e o sono, Svendsen recorre a Fernando Pessoa para descrevê-lo. Recorre ao mesmo trecho do Livro do desassossego utilizado, na sessão, por minha paciente:

Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser... uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem. (citado por Svendsen, 1999, p. 14)

Curiosa coincidência, essa. Para caracterizar o tédio, tanto minha paciente como o filósofo recorreram ao mesmo poema de Fernando Pessoa. Isso me levou a querer entender esse estado emocional em sua especificidade e sob o vértice da psicanálise.

Numa tentativa de investigar o tédio no campo da psicanálise e esboçar suas principais características, é preciso, primeiramente, distingui-lo da melancolia.

 

Tédio e melancolia

No texto “Luto e melancolia”, Freud (1915/2006) introduz o termo “melancolia” para denominar uma forma patológica do luto. Para ele, no trabalho de luto o sujeito consegue desligar-se progressivamente do objeto perdido. Na melancolia, ao contrário, o sujeito supõe-se culpado pela morte acontecida, nega-se e julga-se possuído pelo morto ou pela doença que acarretou sua morte. O eu identifica-se com o objeto perdido, a ponto de ele mesmo se perder no desespero infinito de um nada irremediável. “O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido” (Freud, 1915/2006, p. 251).

Na melancolia, o sentimento inconsciente de culpa, o lamento associado à experiência da perda do objeto amoroso, a percepção da importância do objeto e o desejo de reavê-lo, assim como a consequente incriminação e culpabilização voltada para a perda, é o que permanece invariante.

A identificação do eu com o objeto perdido acaba gerando também apatia, torpor e a sensação de ausência de sentido da própria existência, assim como ocorre com um eu dominado pelo tédio. No entanto, no tédio não encontramos lamentos, incriminação e culpabilização. Sob o domínio do tédio o eu vê esvaziado o significado pessoal dado à existência.

O tédio diz respeito à perda do significado pessoal diante da vida, do mundo e da realidade: resultam dessa perda sentimentos de vazio, desânimo, falta de vontade de realizar atividades rotineiras, desinteresse pela realidade vivida. O tédio exala o tempo que nos arrasta para um mundo desprovido de significações e esvaziado de sentidos (Svendsen, 1999).

No entanto, alcançar um significado pessoal da existência implica poder contar para uma testemunha viva uma história sobre si mesmo, sobre quem se foi, quem se quer vir a ser e quem se é agora, entre passado e futuro. Uma via de mão dupla em que o processo interior de um é capaz de mobilizar o processo interior do outro, de forma que se alcance um fio narrativo de vida.

O relato de fatos concretos utilizado pela minha paciente, os problemas no trabalho, o aborrecimento com o marido, numa busca de soluções prestava-se mais como uma forma de livrar-se da experiência emocional em curso, uma forma de não deixar nenhum traço, do que como uma possibilidade de alcançar um significado pessoal da experiência. Em vez de possibilitar um registro significativo, acabava fazendo com que não restasse quase nada da experiência vivida.

Nessas circunstâncias, o trabalho analítico perde valor de significação e ganha valor de mercadoria. Uma espécie de cirurgia estética, obtida com base na obliteração do Outro como possuidor de qualidades de testemunha viva. Isto é, uma testemunha que consegue ouvir a narração da experiência insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como em um revezamento, a história deste outro (Gagnebin, 2009).

Que funcionamento psíquico faz com que o Outro ganhe valor de mercadoria e perca valor de significação? Que funcionamento mental é esse, caracterizado por relações estereotipadas e estáticas? E o que determina tal funcionamento?

Klein (1946), ao descrever os fenômenos de clivagem do self e do objeto, esclareceu os resultados desse processo, salientando como nessas circunstâncias o indivíduo fica aprisionado no mundo do tudo ou nada, dominado por idealizações e ansiedade persecutória, por pulsões sádicas e pulsões masoquistas.

Bion (1962) expande as noções de Klein e propõe uma clivagem forçada, para descrever uma clivagem não entre seio-bom e seio-mau, mas entre animado e inanimado, uma clivagem entre satisfação material e satisfação psíquica.

Nessa circunstância, satisfação material e satisfação psíquica já não são mais vividas como elementos interligados e capazes de promover uma relação íntima através da qual a experiência emocional possa ser aprendida, ganhando em sentido e significado. A vivência com objetos vistos, vivos e em contínua combinação e interação fica reduzida à sua concretude material.

A clivagem forçada tem por meta capacitar o indivíduo a obter conforto material sem que precise reconhecer os objetos vivos dos quais depende para tal ganho. A complexidade emocional proporcionada pelo objeto que oferece amor, compreensão e experiência é solucionada transformando a si e ao objeto em seres inanimados.

Resulta daí um indivíduo desconectado da experiência emocional que é a base da vida mental e aquilo que lhe dá significado. Um indivíduo movimentando-se no vácuo, em um tempo sem tempo, dominado, de um lado, por um senso de entupimento e excesso e, de outro, por um senso de vazio e existência insignificante.

Essa clivagem, forçada por penúria e medo da morte por inanição de um lado, e por amor e medo de inveja assassina e ódio de outro lado, produz um estado mental no qual o paciente persegue avidamente toda forma de conforto; ele é a um só tempo insaciável e implacável em sua busca de satisfação. Como esse estado se originou numa necessidade de se livrar das complicações emocionais ligadas à consciência da vida e da relação com objetos vivos, o paciente parece ser incapaz de gratidão ou solicitude, tanto consigo próprio quanto para os outros. Esse estado envolve destruição de seu interesse pela verdade. Uma vez que esses mecanismos fracassam em livrar o paciente de seu sofrimento, que, segundo sente, se deve à falta de alguma coisa, sua busca por uma cura toma a forma de uma procura pelo objeto perdido e acaba por aumentar sua dependência de conforto material; a consideração que o governa tem que ser quantidade, e não qualidade. (Bion, 1962, p. 31)

A tentativa de obstruir a experiência de relação com objetos vivos deixa o indivíduo impossibilitado de ter uma interação com qualquer aspecto seu e do Outro que não se assemelhe a um autômato. Está assim pavimentada uma vida mental povoada por objetos inanimados, tendo como um dos efeitos colaterais o sentimento de tédio: “um mundo que se tornou totalmente objetivado e desprovido de todas as qualidades não pode ser senão entediante” (Svendsen, 1999, p. 89).

Vou me valer de Black Mirror para detalhar um pouco mais a dinâmica do tédio. Trata-se de um seriado em exibição, criado pelo inglês Charlie Brooker. Cada episódio tem um elenco diferente, um set diferente e um aspecto diferente da realidade, apresentando, por meio de ficção especulativa, temas sombrios e às vezes satíricos que examinam a sociedade moderna, especialmente no que diz respeito às consequências imprevistas das novas tecnologias. As histórias se passam quase todas em um futuro não muito distante e quase todas elas mostram, de forma assustadora, aonde a tecnologia - ou nosso vício em tecnologia, redes sociais e afins - pode nos levar.

Black Mirror explora as sensações do mal-estar contemporâneo, mostrando o lado negro da vida atrelada à tecnologia. Mas, ao fazer isso, vai além. Mostra, sobretudo, o lado obscuro do ser humano, o dark side, sombrio e perturbador. O segundo episódio da primeira temporada, intitulado Fifteen Million Merits, aborda com primor a vida e as relações de indivíduos sob a égide do tédio.

 

Quinze milhões de méritos

Ambientado em um futuro high-tech, o episódio traz como protagonista o jovem Bing (Daniel Kaluuya), apenas mais um entre milhões de indivíduos autômatos que habitam uma colônia onde nada fazem além de pedalar bicicletas geradoras de energia. Energia consumida pela sociedade e pelos próprios “pedaladores”. A única maneira de se distrair é assistindo a infindáveis programas de TV ou adquirindo novos aplicativos para serem utilizados em seus avatares. Quanto mais pedalam, mais merits conseguem em troca. Todos brigam para ter mais merits, para assim terem a chance de dar um upgrade em seus avatares, comprar aplicativos diferentes, e também para ignorar anúncios que aparecem a qualquer momento em seus quartos.

O contato interpessoal é praticamente nulo. No entanto, um dia chega ao local a bela Abi (Jessica Brown Findlay), que, de imediato, chama a atenção de Bing. Ele se sente atraído por ela, mas não chegam a conversar, até o dia em que ele a ouve cantar e fica impressionado com sua voz. Então, cria coragem e vai ao seu encontro.

Bing estimula Abi a participar do show de calouros para que mostre seu talento, mas ela não tem merits suficientes para comprar sua participação. Ele oferece os seus a ela, dando lhe de presente 15 mil merits.

Ser bem-sucedido em um reality show é a única maneira de sair da colônia, ou seja, parar de pedalar para gerar energia e morar em um quarto maior e mais bem equipado com black mirrors.

Abi consegue ir ao show de talentos, o programa de calouros Hot Shots, que faz lembrar os realities American Idol ou The Voice. Após uma brilhante apresentação, os jurados dizem sarcasticamente que, embora seja muito bonita e capaz de gerar pensamentos maliciosos, sua voz é mediana. Propõem que ela trabalhe no canal erótico ou volte para a colônia. Ela decide aceitar, já que não sabe se terá outra oportunidade de sair de lá um dia.

Bing fica inconformado com o destino de Abi e começa a trabalhar na bicicleta e reduzir seus gastos para também ir ao show de calouros. Faz inicialmente uma apresentação de dança e então, aos berros, saca um pedaço de vidro que conseguiu quando quebrou uma das telas de LCD de seu quarto, após um ataque de raiva. Diante do jurado e da plateia, Bing ameaça cortar-se caso não o escutem.

Após discursar de forma incisiva e forte sobre a falta de intimidade, privacidade e a vida controlada da colônia, os jurados oferecem a ele um programa próprio. Bing torna-se uma espécie de herói que expõe críticas sobre o sistema, sempre com o pedaço de vidro nas mãos. Mas o seu discurso, programa após programa, a sua fala estridente e violenta torna-se uma performance. Não promove reflexão e pensamento. É uma espécie de válvula de escape para a colônia.

Esse episódio retrata claramente os perigos da modernidade, mas, mais do que isso, retrata um sistema que promove e mantém a blindagem do sonho, da imaginação e do pensamento, campo fértil para a proliferação do tédio e de ferramentas poderosas para livrar-se dele: extremismo e excitabilidade.

Numa cultura determinada por pura funcionalidade e eficiência, o tédio dominará, porque a qualidade do mundo desaparece na pantransparência, na visibilidade extrema que tudo engloba. Numa cultura assim, experimentos com sexo e drogas - ou fugas para o nevoeiro de uma nova religião - parecerão tentadores, porque parecem oferecer uma maneira de escapar de uma vida cotidiana penosamente entediante e de descobrir novos horizontes bem mais excitantes. O triste é que esses excessos nunca conseguem satisfazer o anseio de que se originaram. (Svendsen, 1999, p. 96)

No entanto, o tédio, apesar de ser uma característica do sofrimento do homem moderno, não tem sua origem na modernidade, é um fenômeno tipicamente humano, pois incorpora a noção de subjetividade enquanto manifestação da consciência de si, demandando sentido à vida e significado pessoal à existência. O tédio representa a realidade subjetiva que desordena o mundo e põe o homem diante de um tipo de morte, a morte da significação (Svendsen, 1999). Perante a sensação de vacuidade, o tédio estimula a busca de sentidos e significados para a própria existência.

Quinze milhões de méritos evidencia um circuito vicioso. Engendra uma ética contrária ao sofrimento pavimentada por constante clivagem forçada. Esse mecanismo gera relações estáticas e estereotipadas que não promovem experiências significativas acumuladas. Decorrem daí usos e abusos de formas substitutivas de significado pessoal atribuído à existência, numa tentativa desesperada de livrar-se do sofrimento colateral que esse funcionamento promove: esgotamento dos sentidos e indiferença perante a vida. O imperativo constante de superação imediata do sofrimento que esse funcionamento provoca acirra a clivagem forçada que, por sua vez, leva a uma proliferação dos usos e abusos de formas substitutivas de significado pessoal dado à existência, e assim por diante.

É fundamental, entretanto, entender no tédio a ausência de significado e, ao mesmo tempo, a presença em potencial do próprio trabalho de engendrar significado singular à existência: “se o sono é o ponto mais alto de distensão do físico, o tédio é o ponto mais alto de distensão do psíquico. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta” (Benjamin, 2008, p. 204).

A ideia pode ser assim formulada: o tédio é ele mesmo o problema e a solução. Permitir a presença do tédio instiga a alcançar significações que possibilitem o enfrentamento da solidão, do desamparo, da dor e do sofrimento. Reconhecer o tédio como uma presença não necessariamente insuportável possibilita que o transformemos em fonte de sentido para a vida. Ao tentar anulá-lo, corremos o risco de uma existência insignificante (Svendsen, 1999).

Enfrentar o tédio, contudo, requer um trabalho de luto, isto é, o luto pela perda do ideal de um significado pleno e absoluto à existência.

 

Tédio e luto

Em “Luto e melancolia”, Freud (1915/2006) tem a concepção de que, durante o doloroso trabalho do luto, o objeto perdido deve ser acessado em todas as suas variadas representações, ocorrendo durante esse tempo uma verdadeira “devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses” (Freud, 1915/2006, p. 276). O sujeito vive um processo que poderia ser considerado adoecimento, caso não fosse tão corriqueiro e natural, pois grande parte da energia psíquica disponível fica ocupada nessa devoção ao objeto perdido.

O modo de desligar-se desse objeto, liberando a energia psíquica que está investida nele, é o que Freud chamou de trabalho do luto: o teste da realidade revela que o objeto não mais existe, exigindo que a libido investida nele seja retirada. Essa exigência gera uma forte oposição, pois uma posição libidinal nunca é abandonada de bom grado, sendo tão forte, que provoca um desvio da realidade em direção ao investimento das representações do objeto perdido. Em função disso, o desinvestimento do objeto é feito pouco a pouco e com grande dispêndio de energia psíquica, o que, por sua vez, prolonga a existência do objeto perdido. Nessa travessia o indivíduo experimenta profundo desânimo, perda de interesse pelo mundo externo, ambiguidade de sentimentos (amor e ódio), inibição da atividade em geral, perda de interesse pelo mundo externo, incapacidade para amar, episódios maníacos. Essas vivências remetem o indivíduo a estados de desamparo, solidão e aridez.

Ao final do trabalho de luto, para Freud, o eu fica outra vez livre e desinibido, podendo reinvestir libidinalmente em novos objetos.

Freud referia-se às reações do indivíduo não só diante de uma perda real, mas também de uma decepção vinda de uma pessoa amada ou da perda de um ideal.

Alcançar significado pessoal atribuído à existência é um trabalho permanente e contínuo. Assim, a queda do ideal de um significado que oferece um sentido pleno, ininterrupto, sem qualquer intermitência, um sentido completo e imutável à vida, é irremediável. A queda desse ideal ocorre, contudo, com forte oposição, com apego fanático ao “não mais”, até que novos significados possam ser alcançados.

Tenta-se salvaguardar o máximo possível “O significado”, pois sem isso o mundo parece reduzir-se a ruínas e tédio. Para anular o sentimento de vazio que advém dessa perda, o indivíduo pode-se transformar em um “pedalador”, um autômato gerador de energia, buscando avidamente todos os tipos de “diversões” substitutivas. Para escapar de uma vida cotidiana penosamente entediante busca-se o excessivamente excitante.

Gradativa e penosamente o tédio pode ser suportado e em função disso ocorrer um reinvestimento no seu par antitético: a curiosidade. Isto é, curiosidade pela busca de ressignificações e novas significações que possibilitem o enfrentamento e elaboração da solidão, do desamparo, da dor e do sofrimento.

Nessa perspectiva, a sessão com o poema de Fernando Pessoa, citado no início deste texto, é emblemática. Após longa estada no tédio, nessa sessão vivenciamos o despertar da curiosidade, minha e dela. Por muitos meses me sentia entediada e desvitalizada com a constante fala da paciente: “é. é isso... é óbvio”. Quando introduziu, na sessão, o poema de Fernando Pessoa, evidenciou que foi possível enfrentar e buscar algum sentido para o que estava vivenciando.

O conteúdo do poema gerou curiosidade a respeito do que se passava com ela e a estimulou introduzi-lo na sessão. Depois de ter lido o poema para mim, salientou que foi um final de semana difícil, que só queria dormir, tinha torpor, frisou: “fiquei num dorme e acorda, acorda e dorme, até ler o poema, e ele falava de mim, sabe aquela música do Milton Nascimento? Cabe tão bem em mim que não sei como não foi feita por mim?”.

Foi uma sessão distinta das demais, ela não me buscou para exterminar o seu estado de desânimo e letargia, não me procurou para funcionar como uma espécie de antídoto para o seu sofrimento. Ela me buscou como uma testemunha viva, isto é, para eu ouvir o que descobriu a respeito de si naquele final de semana, e o que poderíamos juntas saber mais a respeito.

Conversamos, nessa ocasião, sobre o seu estado de torpor, esse estado lusco-fusco, que não lhe permitia nem descansar, nem ficar acordada, nem viva, nem morta, presa na superfície estagnada dos sentidos. Seguindo as palavras de Fernando Pessoa: uma bebedeira de não ser nada, o desejo como uma coisa inútil, despejado e esquecido num canto qualquer de sua alma. Um sofrer sem sofrimento, um querer sem vontade, um raciocínio sem pensamento.

Em algum momento ela disse: “fico pensando que, se eu comprasse uma casa com um belo quintal, piscina, churrasqueira, eu poderia curtir tudo dentro, meus filhos, meu marido, convidar minha mãe, minha irmã, alguma amiga”. Ela que desde o início da análise se apresentava nas sessões mergulhada em torpor e apatia, numa espécie de sono sem sonho, manifestava o desejo de se relacionar com outros, de mantê-los todos dentro de si, de mantê-los dentro de sua casa - seu espaço mental -, de mantê-los vivos e reais. Evidencia, assim, a descoberta de outras maneiras de se relacionar com o Outro, diferentemente de um autômato/pedalador.

A necessidade de se livrar da complexidade emocional - amor, ódio, desamparo, solidão e tédio - ligada à consciência da vida e da relação com objetos vivos impedia a evolução de uma narrativa coerente sobre si mesma, sobre quem era e quem queria vir a ser. Resultava daí uma impossibilidade continuada de interagir com o Outro como testemunha viva para construir uma história sobre si mesma, sobre quem era e gostaria de ser.

Narrar é uma prática ética, afirma Svendsen (1999), e um narrador desse tipo é um contador da verdade, fundamentalmente um contador da verdade sobre si mesmo. Mas, para se contar tal história, precisamos nos relacionar com outros.

Essa mesma concepção vem sendo amplamente desenvolvida pela psicanálise. A experiência emocional em estado bruto alcança sentido e significado num contexto relacional, com combinações de vínculos de amor, ódio e desejo de conhecimento (Bion, 1962). Um contexto relacional em que o Outro é participante e testemunha na construção de uma história.

Testemunha não só porque vê com os próprios olhos, mas também como aquele que não vai embora, alguém que consegue ouvir e sonhar a narração insuportável do Outro, seu silêncio, sua agonia, seu terror, seu vazio, e que também aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro. Experiências cumulativas desse tipo constroem e fazem crescer funções mentais receptoras - transformadoras -, criativas, essenciais para o sonho, imaginação e pensamento. A falta dessas funções mentais acarreta um crescente circuito vicioso de esvaziamento, terror, solidão, desamparo e tédio.

 

Referências

Benjamim, W. (2008). O narrador. In W. Benjamin, Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política (Vol. 1). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Bion, W. R. (1962). Aprendendo com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1988.         [ Links ]

Freud, S. (2006). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 249-263). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Gagnebin, J. M. (2009). Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Klein, M. (1946). Notes on some schizoid mechanisms. Int. J. Psychoanal. 27,99-110.         [ Links ]

Svendsen, L. (1999). Filosofia do tédio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

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Recebido em 05.04.2017
Aceito em 28.08.2017

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