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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo jul/set. 2017

 

TÉDIO

 

Tédio: três formas de manifestação na clínica psicanalítica1

 

Boredom: three ways of manifestation in the psychoanalytic practice

 

El tedio: tres formas de manifestación en la clínica psicoanalítica

 

L'ennui: trois voies de manifestation dans la clinique psychanalytique

 

 

Adriana Meyer B. GradinI; Luís Claudio FigueiredoII

IPsicanalista, mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia Clínica da PUC-SP, Núcleo de Método Psicanalítico e Formações de Cultura
IIPsicanalista, professor da PUC-SP e professor aposentado da USP

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, defende-se que o tédio é uma entidade nosológica autônoma e que, apesar de existirem certas similaridades nas manifestações do tédio e da melancolia em alguns casos clínicos, há diferenças relevantes entre os dois. Sugere-se, ademais, que o tédio expressa-se sob diversas formas na clínica psicanalítica, propondo-se no artigo três modalidades de manifestação do tédio, que requerem diferentes manejos clínicos por parte do analista. Por fim, sustenta-se que estas modalidades de tédio fazem parte de um campo maior, sendo exteriorizações de adoecimentos psíquicos por passivação.

Palavras-chave: tédio, melancolia, tédio-defesa, tédio-branco, tédio-protesto


ABSTRACT

In this article, the authors advocate that boredom be considered an autonomous nosological entity. They suggest that there be relevant differences between the manifestations of boredom and melancholia, even though some similarities in their manifestations may be noticed in some clinical cases. The authors also suggest that boredom may be expressed in different ways in the psychoanalytic practice. They specifically study three ways of expressing boredom which require different techniques to be used by the psychoanalyst in his clinical practice. Finally, authors understand that these forms of boredom belong to a larger field, as they are externalizations of psychic illnesses by passivation.

Keywords: boredom, melancholy (melancholia), defensive boredom (protective boredom), white boredom, “protestive” boredom


RESUMEN

En este artículo, se defiende que el aburrimiento es una entidad nosológica autónoma y que, a pesar de existir ciertas similitudes en las manifestaciones del aburrimiento y de la melancolía en algunos casos clínicos, hay diferencias relevantes entre los dos. Se sugiere, además, que el aburrimiento se manifiesta bajo diversas formas en la clínica psicoanalítica, proponiéndose en el artículo tres modalidades de manifestación del aburrimiento, que requieren diferentes manejos clínicos por parte del analista. Por último, se sostiene que estas modalidades de aburrimiento forman parte de un campo mayor, siendo exteriorizaciones de adicciones psíquicas por pasivación.

Palabras clave: aburrimiento, melancolía, aburrimiento-defensa, aburrimiento-blanco, aburrimiento-protesta


RÉSUMÉ

Dans cet article, on soutient que l'ennui est une entité autonome de la nosologie et que, bien qu'il existe des similitudes dans les manifestations de l'ennui et de la mélancolie dans certains cas cliniques, des différences notables sont constatées entre les deux. En outre, il est suggéré que l'ennui se présente dans la clinique psychanalytique sous différentes formes. L'article en propose donc trois modalités requérant manipulations différentes de la part de l'analyste. Enfin, on défend que ces modalités de l'ennui, extériorisations de maladies psychiques par passivation, appartiennent à un domaine plus large de l'étude psychanalytique.

Mots-clés: ennui, mélancolie, ennui-défense, ennui-blanc, ennui-protestation


 

 

Introdução

No Livro do desassossego, Fernando Pessoa manifesta de forma sintética e desvitalizada o seu tédio, ao assim declarar: “A ideia de viajar nauseia-me/Já vi tudo o que tinha visto/Já vi tudo que ainda não vi” (Pessoa, 2011, p. 143). Pela via literária, ele retrata essa espécie de náusea psíquica que aparece na clínica psicanalítica atual de forma bastante significativa, como um sintoma relatado cotidianamente em nossos consultórios sob as mais diversas formas, tais como ausência de prazer em viver, enfado, crítica, sensação de anestesia ou falta de energia para concretizar escolhas; o tédio é experimentado por um número crescente de jovens, adultos e, também por crianças muito novas, que traduzem tal forma sintomática como um desânimo em se engajar em suas atividades rotineiras.

O tédio ocupou diversos lugares simbólicos - e, quiçá, paradoxais - ao longo do tempo: sob a forma da acidia, já teve um lugar irrelevante na sociedade grega e já foi considerado o maior de todos os pecados na Idade Média; foi tido como uma grande ofensa a Deus e também como uma grande prova de devoção católica (um tempo de espera e desgosto vivido como um sacrifício antes da conversão); teve o estatuto pejorativo de “doença burguesa” de uma sociedade industrial emergente e, também, de uma grande prova de interioridade no romantismo; e, com o passar do tempo, deixou de ter um caráter moral para ter um caráter psicológico. No campo da psicanálise, o tédio vem sendo abordado, muitas vezes, associado aos estados de apatia e padecimentos da ordem do negativo, havendo certa confusão conceitual, na medida em que o tédio é tomado como similar a estados depressivos crônicos ou melancolias.

O tédio revela-se, assim, como um tema complexo, como um mal-estar individual que há de ser apreendido como o sofrimento de cada sujeito que dele padece em seu aspecto mais singular. Phillips (1996, p. 110) chamou o tédio de uma condensação vazia da vida psíquica, destacando: “Nitidamente, deveríamos falar não de tédio, mas sim de tédios, porque a noção em si mesma abrange uma multiplicidade de estados de ânimo e sentimentos que resistem à análise...”.

Por outra via, sustentando paradoxos de forma positiva, há de se apreciar o tédio também como um sintoma que pode ser ressignificado, como um estado transitório potencialmente condutor a uma nova construção subjetiva, já que o tédio proporciona um tempo de avaliação que pode possibilitar ao indivíduo entediado, em função de seus questionamentos, uma experiência de vida mais potente; espera-se que ele possa, enfim, via processo analítico, sustentar ritmos intensos e estados de vazio como partes integrantes do seu psiquismo sem viver fraturas e interrupções dos seus processos de saúde.

Neste artigo, o tema do tédio passará a ser apreciado com base em três vertentes: 1) a noção de que o tédio é um ente nosológico autônomo e de que, apesar de existirem certas similaridades nas manifestações do tédio e da melancolia em alguns casos clínicos, há diferenças relevantes entre os dois; 2) a tese de que há três formas distintas de manifestação de tédio que requerem diferentes manejos clínicos por parte do analista; 3) o tédio, sob essas modalidades, exterioriza-se em quadros clínicos marcados pelo que Figueiredo e Coelho Jr. (no prelo) denominam adoecimentos psíquicos por passivação.

 

Diferenças entre o tédio e a melancolia

Nos casos clínicos alusivos à clínica do vazio, o tédio configura-se como uma exteriorização da interrupção dos processos de saúde, decorrente de processos de clivagem, desinvestimentos por defesa ou processos maciços de empobrecimento do ego.

Ogden (2013, p. 34) define a psicopatologia como uma “autolimitação inconsciente da capacidade de vivenciar o estar vivo enquanto ser humano”, cuja manifestação pode se dar de várias formas: constrição da amplitude e da profundidade dos sentimentos, pensamentos e sensações corporais, restrição da vida onírica e de rêverie, um senso de irrealidade nas relações consigo próprio e com outras pessoas, ou com o comprometimento da capacidade de brincar, de imaginar, de usar símbolos verbais e não verbais para criar ou representar a própria experiência. Fica bastante marcante, em face desta definição, o caráter sintomático do tédio na clínica psicanalítica atual, por associar-se a indivíduos cujo sintoma traz à cena a forte marca dessa autolimitação da capacidade de estarem vivos enquanto seres humanos.

Na clínica, o tédio aparece sob diversas formas, ora referido a um caráter marcadamente defensivo, vinculado a situações de traumatismos precoces dos analisandos; ora, por vezes, emerge de forma mais próxima à zona do mortífero, trazendo indagações sobre o sentido da vida; ora, ainda, como uma resistência dos analisandos em ingressar na vida adulta, sob a forma de enraizamento em uma posição estática e de recuo. A expressão “anorexia de viver” (Green, 1998, p. 24) pode ser usada como uma diretriz para a apreciação das mais variadas formas de tédio, sobretudo se enfocarmos em duas vias: o escoamento da vontade de viver e o desinvestimento no aspecto prazeroso da vida, presentes em todos esses casos.

Ao falarmos em tédio, referindo-o à “anorexia de viver”, aparece desde logo a indagação sobre a possibilidade de considerá-lo sob um manto de maior cobertura - a melancolia. Seria o tédio um sintoma acessório dos quadros melancólicos ou teria ele contornos próprios? A rigor, o que aparece na clínica é, em diversos casos marcados pelo tédio, a falta de alguns requisitos para a configuração da melancolia nos termos definidos por Freud (1915/2006): não aparecem de forma relevante, por exemplo, a autorrecriminação, a autocrítica, a autodepreciação e a autopunição, mas outras formas de manifestação desse sintoma, tais como a neutralização das relações objetais, o congelamento e o entorpecimento, como defesas decorrentes da clivagem psíquica, atuando para impedir o retorno do clivado. Há diferenças significativas, pois, no que se refere à questão do rebaixamento do sentimento de autoestima, ponto central na definição de melancolia: para o sujeito entediado, não há uma autocrítica revertida para o ego; o mundo e as pessoas à sua volta são desinteressantes e enfadonhos, e a crítica é projetada para o externo.

Diferente da melancolia também é o aspecto relacionado à dor e à angústia: Freud (1915/2006) refere-se aos melancólicos como aqueles que carregam um desânimo profundamente doloroso, sendo digno de nota que, na maior parte dos casos clínicos de analisandos entediados, apesar do desânimo constante, não há o relato de dor e angústia, mas sim uma demanda de que eles possam sair da anestesia e “aprender a sentir, a amar e a sofrer”. Pontalis (2005, pp. 272-275) narra um caso clínico no qual esse ponto é ressaltado, dizendo que ali “faltava a dor psíquica de maneira singular - e até as formas mais habituais da angústia”.

Nos casos de tédio, aplica-se, em substituição à ideia de angústia, a noção de agonia psíquica, termo de inspiração winnicottiana que Figueiredo e Coelho Jr. (no prelo) correlacionam a “uma vivência do que antecede e antecipa a experiência da morte no moribundo prestes a render-se à não existência”. Nestes casos, haveria “um processo de passivação” do indivíduo, que, paradoxalmente, entrega o psiquismo traumatizado ao desamparo mais extremo, à condição extrema de ser e estar indefensável.

A forma de acolhimento das demandas primitivas de um bebê, tanto em relação às suas necessidades básicas, quanto à construção imaginária e simbólica do seu espaço psíquico, pode deixar marcas profundas e indeléveis transportadas para o psiquismo adulto. A mãe que acolhe esse bebê poderá ser técnica e fria, excessiva ou “suficientemente boa”; seu olhar poderá ser constitutivo, mas também invasivo ou ausente; seu abraço poderá ser desinvestido, desesperado ou acolhedor sob a forma de um holding; suas palavras poderão ser restauradoras, esvaziadas de vitalidade ou afoitas e apressadas. Há diversas formas de maternagem, incluindo mães que não conseguem conceber no filho um sujeito, quer por questões patológicas, quer por dificuldades em sua própria origem ou em suas relações objetais.

Um ambiente familiar que traumatiza nos faz supor um bebê em estado de defesa; uma mãe ausente e fria nos faz vislumbrar uma circulação do mortífero na vida desse bebê; já uma mãe invasiva nos traz à mente um bebê em constante reação à intrusão, recuando, sem possibilidades de encontrar apelos e encantos no mundo. O tédio manifesta-se como um sintoma relacionado a essas questões ambientais, como um estado de passivação em face daquilo com que o psiquismo incipiente da criança não consegue lidar.

As noções freudianas de buraco na esfera psíquica e de retorno da libido ao próprio ego (Freud, 1915/2006), porém, próprias da melancolia, aplicam-se também aos casos de tédio, ficando evidenciado que um importante trabalho de luto - que funcionaria como ritual para a simbolização de uma dor primitiva - não teve condições de ser efetivado. A bem da verdade, desde o nascimento, a criança enfrenta, com o corte do cordão umbilical, a perda de um ambiente totalmente protegido, seguindo-se a essa perda diversas outras, como o desmame, a separação da díade mãe-bebê e a inserção no universo cultural da família. Esses pequenos trabalhos de luto, se elaborados, darão sentido a essas perdas; mas, acaso não superados, podem ensejar uma experimentação de vazio e de falta de sentido.

Em Luto e melancolia, Freud (1915/2006) fala do luto como um afeto “normal” de reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que ocupe o seu lugar; como um sofrimento que pode ter como saída o investimento em outros objetos. Qualifica-o como um trabalho psíquico que empobrece o ego por determinado período, mas que fica situado dentro do conceito de saúde psíquica. Segundo Freud (1915/2006), “normalmente prevalece o respeito pela realidade” (p. 250). No luto, pois, o ego vai constatando a ausência do objeto, e a própria realidade impõe que o desligamento se faça aos poucos, havendo um processo doloroso, mas que vem a deixar o ego do enlutado livre e desimpedido.

Em contraposição, a melancolia é tratada como uma disposição patológica, sendo o melancólico alguém que perde não somente o objeto, mas também o lugar que ele próprio ocupava para o objeto. Nesse caso, quando a libido finalmente vai se desligando do objeto, ela reverte para o ego do melancólico como um segundo destino pulsional, porque o investimento inicial teve uma base narcísica, que gerou uma identificação entre o ego precoce do melancólico e o objeto perdido. O ego vence a batalha, mas esse triunfo carrega um paradoxo: como o objeto e o ego se encontravam mesclados em razão dessa escolha narcísica e da identificação prévia entre ambos, uma parte do ego (que submeteria o objeto) triunfa sobre outra parte do próprio ego (assemelhada ao objeto por identificação). Daí decorre a conhecida expressão: “a sombra do objeto caiu sobre o ego” (Freud, 1915/2006, p. 254). A perda do objeto de amor, que seria uma chance de sustentar a ambivalência dos vínculos, caso efetivado o trabalho de luto, forma uma “ferida aberta, atraindo para si, de toda parte, energias de investimento”, “uma ferida a sangrar-lhe a alma” (Peres, 2011, p. 101).

O melancólico alardeia suas qualidades negativas, em autoacusações incessantes que se dirigem, a rigor, não a ele mesmo, mas ao objeto perdido, e a melancolia traz à cena

um desânimo profundamente penoso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade e um rebaixamento dos sentimentos de autoestima, a ponto de encontrar expressões em autorrecriminação e autoenvilecimento. (Freud, 1915/2006, p. 250)

Nos casos clínicos marcados pelo tédio ocorre também a suspensão do interesse pelo mundo externo, mas não, como dito, a exteriorização de um desânimo profundamente doloroso e um rebaixamento do sentimento de autoestima, sob a forma de autorrecriminação e autoenvilecimento. Quando o sintoma do tédio decorre de um impacto traumático precoce, a consequência é a adaptação e a submissão do indivíduo às exigências do meio, além da neutralização das suas relações objetais, sem que, necessariamente, haja um ataque direto ao próprio ego do entediado, como na melancolia. Quando o tédio decorre da circulação do mortífero em casos de uma maternagem não suficientemente boa, também não se encontra presente esse rebaixamento de autoestima, já que a falta de apelo é atribuída pelo indivíduo entediado ao mundo desinteressante e “sem graça”. Igualmente em relação àqueles indivíduos que, na vivência do tédio, recuam para não ingressar na vida adulta, não há um impacto direto na autoestima, visto que eles acreditam que seus feitos serão um dia validados e reconhecidos.

Há, portanto, diversas formas de manifestação do tédio que assumem contornos próprios e que o fazem figurar como um ente nosológico autônomo.

Trata-se de um sintoma que traduz passivação e neutralização das relações objetais decorrentes de uma falha de base na constituição egoica desses indivíduos, como se tivessem sido formulados por eles reclames precoces que não puderam ser escutados, fazendo com que eles passassem a sentir, em todos os seus vínculos, ecos do trauma, do vazio ou do excesso que lhes foi oferecido. Por outro lado, observa-se na análise de pacientes entediados, também, que um trabalho essencial de luto não pôde realizar-se, vedando o acesso a uma condição desejante. Para Pontalis (2005), haveria a ausência de um trabalho de luto do objeto primordial, que faria com que o indivíduo reproduzisse sua ausência em uma renúncia sem vida. A própria relação analítica apontará para a escuta desse silêncio, daquilo que não teve lugar para existir na vida psíquica do analisando, sendo esse vazio uma forma de comunicação do que o analisando experimentou passivamente em seu estágio precoce de desenvolvimento.

 

Modalidades de tédio e seus manejos clínicos

Com base nas três expressões do tédio acima referidas - trauma, morte e recuo -, pensamos em uma classificação desse sintoma como proposta não exaustiva, mas circunscrita à busca de manejos psicanalíticos mais eficazes quanto a cada uma dessas manifestações desses sujeitos que parecem anestesiados e sem a apreensão do sentir e do sofrer. Quanto às três vertentes referidas, passaremos a nomeá-las tédio-defesa, tédio-branco e tédio-protesto.

A escolha da nomenclatura tédio-defesa decorreu de uma fala significativa de um desses indivíduos, que iniciou a análise afirmando: “há muito tempo, ando pela vida como se eu estivesse 'camuflado'. Vivo na defesa e sinto um profundo tédio a maior parte do tempo”.

O tédio-defesa relaciona-se a alguns conceitos basilares de Freud, sobretudo à sua noção de representação psíquica, memória, e de partes não decodificadas pelo psiquismo, além do seu construto de trauma como resultante de um transbordamento pulsional, tal qual narrado no texto “Além do princípio do prazer”. O “modelo de vesícula viva” foi esboçado por Freud (1920/2006) neste texto como uma barreira de proteção reguladora das excitações do aparelho psíquico, estando o trauma diretamente relacionado a um rompimento ou quebra do equilíbrio dessa barreira em face de um excesso excitatório inesperado, sem que o indivíduo tivesse condições de representação e narrativa para o evento. Os fueros haviam sido definidos por Freud na Carta 52 a Fliess (1887-1904/1986) como uma “presença de sobrevivencias”, como arquivos de memórias traumáticas não integrados ao psiquismo - como se fossem cidades isoladas sem pontes de comunicação. O novo paradigma de aparelho psíquico freudiano trouxe a lume, assim, um campo do material não-simbolizado -ou das pulsões desligadas das representações. Por isso, a vivência traumática, como um evento não decodificável, ficaria submetida à compulsão à repetição em busca de uma ligação ao psiquismo organizado. Em termos tópicos, cabe a precisa definição de que o trauma “advém de uma quebra do Reizschutz (pa-ra-excitação), provocada por um susto (Schreck) que não foi amparado pela nossa Angstbereitschaft (estado de prevenção à angústia)” (Selligmann-Silva, 2000, pp. 84-85).

A neutralização das relações objetais, a anestesia e a passivação - aí inserido o sintoma do tédio - seriam defesas contra o retorno desse material traumático. Nos casos que ora chamamos de tédio-defesa, interessam sobremaneira duas formas de lidar com essa acolhida traumática do ambiente, sendo a primeira a entrega do indivíduo a um estado anestesiado, desvitalizado e, a segunda, a da autotomia, psiquicamente representada como engendrar o indivíduo processos de divisão, de cisão de partes psíquicas.

Ferenczi (1924/2011, p. 301) toma de empréstimo o que os zoologistas observaram quanto à autotomia - a reação de alguns animais, que desprendem de seu corpo partes que estiveram submetidas a uma irritação intensa ou causadora de sofrimento - e estende essa reação a todo ser vivo consubstanciado em uma “fuga psíquica diante dos sentimentos demasiado intensos de desprazer”. Diante do impacto do trauma precoce, essa fuga psíquica será efetivada mediante cisão, deixando o indivíduo uma parte psíquica semimor-ta, envolta em uma crosta de proteção, e a outra parte cindida, como guardiã, permanecerá atuando em estado adaptativo no mundo das relações externas, carregando o indivíduo, contudo, um sentimento de inautenticidade ao longo da vida, dado o amadurecimento adquirido às pressas em face da progressão traumática. Não havendo a possibilidade de autodestruição do corpo humano ou de partes dele, há uma destruição da integridade do eu consciente.

Sobre a noção ferencziana de desmentido (negação, pelo adulto, do evento traumático), Figueiredo (2008a) propõe sua tradução como “desau-torização”, por se tratar de negar a autorização para que algo se converta em experiência de alguém e para que alguém se converta em sujeito (autor) de uma experiência. Resta um “acontecimento” sem autoria, uma “experiência” sem sujeito, e o principal fator traumático não residiria exatamente no ato abusivo em si, mas nessa afirmação do adulto de que nada aconteceu ou de que a criança teria entendido errado o que vivenciou em termos de excesso pulsional: traumático seria esse vazio de sentido que a criança tem de carregar psiquicamente.

Baseando-se nos ensinamentos de Freud (1920/2006), Figueiredo (1999) afirma que a membrana protetiva é eficaz até certo limite, contra a estimulação externa, mas que esta vesícula viva não está protegida contra a estimulação interna, razão pela qual haverá, nesses casos, um mecanismo de projetar para fora o desconforto interno, atribuindo as noções de prazer e desprazer às coisas do mundo exterior. O indivíduo, então, passa a manter perante o mundo uma conduta imunológica, de evitação do contágio. Para alguns, o mundo se torna entediante.

Esses mecanismos defensivos da neutralização e das chamadas defesas paradoxais (Roussillon, 2014) explicam a forma de esses analisandos do tédio-defesa construírem seus laços afetivos: eles se protegem de altas intensidades, evitando, com isso, fazerem grandes investimentos nos objetos amorosos, para não serem retraumatizados, como se houvesse um sistema de alerta inconsciente - do qual simbolicamente não teriam como saber -, mas que funciona subterraneamente, modulando as temperaturas anestesiadas da superfície.

Sobre essa “escolha” anestesiada também fala Winnicott (1990) ao tratar das personalidades falso self como uma eficiente construção defensiva para o enfrentamento de traumas precoces, o que deixa o indivíduo sem acesso ao seu self verdadeiro, construindo um self subalterno às exigências do meio, a exemplo do analisando Simon (Pontalis, 2005, pp. 272-275). Aos 35 anos e abandonado por sua mulher havia meses, ele tentara suicídio, mas não trazia à análise grandes dramas sobre esses fatos. Contou que bebia muito e que “não funcionava” como deveria sexualmente, mas isso também era narrado de forma desafetada e “sorridente”. Seu pai e sua mãe haviam morrido em seus primeiros anos de vida, mas Simon se dizia atingido por uma “amnésia infantil” e não conseguia lembrar-se de nada da sua infância por ter ficado “órfão tão cedo”. Pontalis percebeu, então, que a criança viva saíra também de cena com a morte dos seus pais e que ao paciente restara apenas sobreviver. Montara para si um sistema fechado e agia, em análise, como uma máquina de produzir sonhos (não de sonhar). O analisando era bem articulado, engenheiro brilhante e inventivo, mas parecia não esperar nada do analista, a não ser o reforço de sua “barreira protetora”. Pontalis começa a pensar em uma personalidade falso self e verifica que essas medidas de proteção eram uma forma de manter preservado o vínculo materno com a criança mortificada. Após um evento de dor física, Simon passa a trazer à análise questões referentes à sua mãe, a qual passou a poder ser abordada como uma mãe idealizada, mas também como um objeto de raiva e de ciúmes. Simon havia lutado profundamente contra a sua dor originária, usando vários mecanismos - defesas maníacas, neutralização de afetos, alternância entre arrogância e depreciação de si, medo de qualquer dependência e procura compulsiva de parceiras, infatigável produção de textos de sonhos etc. O trabalho foi sendo feito para permitir que Simon pudesse “ir ao encontro da mãe, encontrar um vínculo com ela no presente sem morrer por isso” e pudesse apreender que não precisava carregar para sempre o seu próprio luto. O falso self, portanto, era uma construção necessária para a sobrevivência desse indivíduo traumatizado, atingido no âmago do seu mundo psíquico com poucas possibilidades de recursos elaborativos no momento do impacto.

Destacava Freud (1913/2006) que deveria ser afastada, pelos analistas, qualquer mecanização da técnica, não tendo produzido, todavia, escritos técnicos específicos sobre a questão da escuta do traumático, como aquilo que escapa à representação do sujeito. Dentro da ótica ferencziana, tentando preencher essa lacuna, o analista terá como via possível para auxiliar o analisando na simbolização do material “expurgado” do seu psiquismo escutar empaticamente a situação traumática, sem negá-la, desmenti-la ou desautorizá-la, permitindo que ele possa vivenciar o que não foi possível na época em que experimentou o trauma (Ferenczi, 1920/2011). Seria uma forma de reprodução da experiência traumática em um ambiente propício para aproximar as partes psíquicas cindidas de alguma simbolização. Como essa modalidade de tédio está vinculada ao trauma, nessas hipóteses, entendemos que o analista deverá se afastar de uma psicanálise fundada nos referentes da neurose, na interpretação demasiada e no levantamento de recalques - o que não teria aplicabilidade nesses casos, nos quais o conflito não se encontra recalcado, mas clivado. O analista deverá atuar como potencial ligação ou ponte entre a área isolada do traumático e o psiquismo organizado, sobretudo em termos de viabilizar o acesso à narrativa de um campo marcado pelo mortífero.

A segunda modalidade ora proposta é a do tédio-branco, que se relaciona diretamente à noção de tédio existencial e à experimentação do vazio do viver em si. Encontra-se aqui conectado ao significante morte e redunda, muitas vezes, nas perguntas mais complexas e profundas: Para que viver? Por que viver?

Como manifestação sintomática desses analisandos, aparece uma relação enigmática com o tempo: eles sentem que este demora demais para passar e que nada acontece, mas, em retrospecto, o tempo parece curto demais, como se décadas houvessem passado, e nada de significativo tivesse sido feito de suas vidas. No discurso, escutam-se menções à velocidade desenfreada do mundo, em contraposição à lentidão interna que carregam psiquicamente. O tédio-branco consiste em algum tipo de ação/omissão crítica do sujeito entediado dirigida ao mundo externo, que se afigura “sem apelo”, “desprovido de coisas e pessoas interessantes”. Este sintoma nos põe, muitas vezes, em face da constante ameaça do suicídio e da necessidade de buscar um manejo analítico que convoque formas de revitalização. Em contratransferência, experimentamos essa corrente mortífera e um campo constrito, além da restrição ao brincar e ao humor, trazendo à cena analítica fortes doses de desvitalização, mas, além dela, no próprio pedido de ajuda formulado, uma centelha de Eros que pulsa enfraquecida. Nesses casos, pois, a psicanálise deve ser apreendida dentro de uma ótica que não expurgue o branco e o vazio, mas que possa viabilizar a sua integração. Que o analisando possa ir encontrando meios de nomear a ausência, simbolizá-la, regredir em ambiente maleável e confiável, em um trabalho de constituição da capacidade de ficar sozinho.

Diante de pacientes que manifestam o tédio-branco, não raro estará o analista face a face com quadros depressivos, melancolias ou pacientes borderline. Há um inequívoco comprometimento na instauração do tempo psíquico desses pacientes, o que se dá pela problemática relação com o outro como um espelho da constituição do eu.

Segundo entendemos, esses pacientes do tédio-branco têm comprometida a construção mais rudimentar do tempo subjetivo - que se refere a uma organização da dupla mãe-bebê dentro de determinado ritmo e que dá ao recém-nascido a noção de duração, com base em sensações gustativas, táteis e sonoras. Dada essa falta, resta uma pesada angústia sem decodificação na separação da díade e a consequente dificuldade de o bebê se ligar com o tempo do Outro (Safra, 2015). Desse modo, fica prejudicada a aquisição seguinte, do tempo compartilhado, assim como do tempo transicional, no qual a imaginação e o faz-de-conta poderiam fazer face às sensações desorganizadoras do tempo eterno ou longo demais para as próprias capacidades de tolerância da criança. Isto justifica o empobrecimento de tais analisandos em suas construções imaginárias e na criatividade, requerendo do analista uma atuação paciente e ativa de construção, no sentido de mostrar-se vivo e de prontidão para uma escuta que não seguirá pela via da interpretação, do confronto, mas sim da integração de vazios e extensões de tempo com algum material do paciente que possa redundar em pulsão de vida.

No poema Reflexão n° 1, o poeta mineiro Murilo Mendes (1945, p. 195) afirma que “Ainda não estamos habituados com o mundo” e que “Nascer é muito comprido”, versos que ilustram quão estendida no tempo deve ser a constituição de um self verdadeiro, entre idas e vindas, entre presenças e ausências, até que se aprenda de que forma é possível sobreviver criativamente à ausência do outro, sem se fragmentar ou angustiar severamente.

De forma objetiva, Fédida (1999) invoca que, nesses casos, o que ocorre é uma deficiência na simbolização da ausência e a escuta analítica se dará para fundar essa relação que o indivíduo desconhece. Será uma possibilidade de fazer algo com a tela em branco que se apresenta no presente e também como futuro para esses analisandos, com base em uma vivência de tempo marcada pela inclusão de suas experiências internas.

Fédida (1999, p. 19) oferece um exemplo clínico de um paciente de 50 anos, afetado por um tédio que o aprisionava em sua própria vida desde que a mulher o deixara. Ele sentia-se inferior, “como se tivesse sido esvaziado”, relatando a sua impressão cotidiana do tédio, “onde aquilo que se vê não lhe diz nada”, assim afirmando: “Não sinto mais angústia, mas tampouco tenho mais pensamentos. Só tenho vontade de dormir... sinto-me um monte de cinzas frias”.

Nos quadros de melancolia e depressões, apesar de o tédio aparecer no discurso desses pacientes sob a forma de desânimo e desinvestimento no mundo, ele aparecerá como exteriorização de superfície sobre uma base patológica bastante específica, relacionada à perda fenomenológica de um objeto amoroso ou de um ideal, associada ao já citado rebaixamento da autoestima. Nos casos de patologia borderline, todavia, o tédio-branco aparecerá como sintoma com contornos próprios, como sinal da problemática da própria constituição das fronteiras do self, da separação entre eu e não-eu: nestes casos, haverá uma contração das fronteiras do eu, e o indivíduo se afastará dos objetos, deixando o eu estático, paralisado, encolhido. A coesão do self estará ameaçada, por isso a manutenção do desligamento e das baixas intensidades fará sentido, como se houvesse uma área menor a ser vigiada por uma sentinela sem muitas forças.

O espaço analítico vem sendo qualificado como espaço transicional (Safra, 2015), equiparado ao espaço existente entre o corpo da mãe e o do seu bebê, dada a sua potencialidade em agrupar objetos internos e externos. Em se tratando de manejo com o conteúdo do núcleo frio, defendemos que, nesses casos, o analista deve ter por diretriz a ação de construir com o analisando novas temporalidades e novos espaços potenciais, visando criar alguma repercussão em termos pulsionais e na ordem do desejo desse sujeito na vivência de um tédio imobilizador.

A terceira modalidade de exteriorização do sintoma do tédio, aqui proposta como tédio-protesto, aproxima-se da noção de resistência ao ingresso na vida adulta, aliada a uma afirmação de que não haverá rendição ao que a sociedade espera desses indivíduos, como se eles protestassem no seu recuo e escolhessem viver uma vida entorpecida. Eles chegam em análise, muitas vezes, após longos períodos imersos em um torpor circular, mediante o engajamento em horas a fio ou dias assistindo a seriados, filmes repetidos, envolvidos em games, festas de longa duração, uso abusivo de drogas “mais anestésicas” ou ingestão estendida de alimentos e álcool. Seus vínculos são de baixa intensidade, e, normalmente, os inimigos que comprometem sua arrumação estratégica costumam ser oriundos da pressão interna, em casos de apaixonamento inesperado ou marcos decisórios da vida, iniciando a análise geralmente após um colapso afetivo ou profissional ou por mandato de outrem. É comum que passem anos envolvidos em planos e projetos que reforçam a sensação do vazio - concursos públicos para os quais ainda não estão preparados, sonhos de ingressar no mundo das artes plásticas, do teatro, da televisão, sem prévia formação, expectativa de promoções pouco prováveis -, e a consequência desse (des)engajamento acaba por acirrar ainda mais a sensação de inadequação ao “mundo adulto” e o correlato desejo de entorpecer e neutralizar qualquer possibilidade de desejo e atividade. Portam um escudo imaginário e formas manifestas de empobrecimento simbólico.

Um desses analisandos, ora batizado de Peter, assim narra um sonho: ele está vestindo uma roupa de guerreiro, como se fosse o personagem principal de uma peça teatral. Está em uma multidão, muito atrás da primeira fila dos que assistem a um enorme cortejo passando em uma avenida, separados por uma corda. Apesar de muito distante, tem a certeza de que será escolhido para entrar no grupo como destaque e fica na expectativa de que o “diretor do espetáculo” levante a corda e o pegue pela mão, convocando-o. Acorda sobressaltado, angustiado, sem que o desfecho se dê. Conta em análise que tem vivido assim: sempre esperando. Fora da cena.

A sensação de tédio e a vontade de nada fazer são constantemente narrados por esses analisandos; ao mesmo tempo, há uma fantasia de que seus grandes talentos estão escondidos e que um dia serão descobertos, ou seja, há um discurso sobre o cansaço, a preguiça e a crítica, sempre contraposto a uma fala idealizada sobre projetos futuros eivados de expectativas grandiosas e metas idealizadas quase sempre com baixa possibilidade de concretização, visto que o esforço para se atingir tais metas é objeto de desdém, assim como a necessidade de dedicação e preparação para tais projetos, quadro que se agrava em face da inserção desses indivíduos em um contexto social no qual há a primazia do desempenho, da eficácia e do ritmo acelerado. Diante dessas premissas, eles optam pelo recuo entediado.

A tese que ora nos propomos a estender aos casos de tédio-protesto -levantada por Kehl (2009) em relação aos estados depressivos - é no sentido de que, nessas hipóteses, não estamos falando em ausência do ente materno, mas sim de excesso, de superoferta, de uma mãe solícita demais, que, ao atender tão apressadamente às demandas do recém-nascido - sempre as considerando urgentes ou, em outra hipótese, precisando confirmar a sua própria “eficiência” como mãe -, teria impedido que a elaboração do processo psíquico de representação da presença/ausência ocorresse de modo satisfatório a ponto de dar uma cobertura à angústia decorrente da vivência da ausência em si. A figura, nesses casos, não é a da mãe ausente - como ocorre nos casos citados do tédio-branco -, mas sim a da mãe “ansiosa, insegura, hiperativa, amorosa demais - uma que atropela, com sua pressa e solicitude, ou seja, com sua própria demanda, a delicada constituição do tempo psíquico de seu bebê” (p. 241). Estes pacientes, portanto, assim como o depressivo, estariam tentando proteger-se do excesso.

Em determinado momento de sua obra, questiona Winnicott (1990): há um ego desde o início? O ego é forte ou fraco? A essas perguntas ele responde dizendo que, no estágio da dependência absoluta, a mãe funciona como ego auxiliar do bebê, o qual, com esse suporte, passa a se relacionar com objetos subjetivos, assimilando, aos poucos, o princípio da realidade. Nos casos do tédio-protesto estamos diante de indivíduos em manifesta reação à intrusão, em um recuo adotado para proteger-se de um ambiente invasivo, não apto a decodificar suas necessidades para que acessassem a condição de pessoas inteiras. Submetem-se, assim, a situações de recolhimento ou de mero acesso a calmantes, objetos pacificadores (“pacifiers”, como chupetas tranquilizadoras do bebê) - e vivem “dormentes” e entediados. Se a ausência do Outro autoriza a criança a acessar a sua capacidade de fantasiar, formulando elaborações possíveis sobre essa experiência, há de ser visto esse indivíduo marcado pelo tédio -protesto como um sujeito que foi protegido demais dessas vivências de perda e experimentação da ausência. Por isso, na análise dos casos de tédio-protesto em um primeiro momento, o analista será convocado a desalojar certezas, funcionando como alguém que escuta a dificuldade quanto à representação da ausência, da perda e do desprazer.

Deverá funcionar como continente e agente metabolizador de afetos, mas também formular algum confronto capaz de fazer o indivíduo se questionar quanto à sua paralisação e sua “anorexia de viver”.

 

Discussão final

Em face do exposto, pensamos que o tédio assume características autônomas na clínica psicanalítica atual, além de possuir também diferenciações internas, manifestando-se de formas bastante variadas, entre as quais as modalidades acima referidas.

O tédio, como visto na descrição de suas modalidades, pode ser entendido como exteriorização de adoecimentos psíquicos por passivação, definição proposta por Figueiredo e Coelho Jr. (no prelo) ao tratar de interrupções de processos de saúde que acontecem de forma ainda mais incisiva e radical, como “experiências de ruptura que produzem a ultrapassagem e uma verdadeira aniquilação das capacidades de defesa e resistência” do indivíduo. Tais adoecimentos estariam inseridos na matrizferencziana, suplementar à matriz freudo-kleiniana, relacionando-se a casos clínicos nos quais algumas áreas do psiquismo, como forma de defesa, “morrem, ou melhor, deixam-se morrer” (Figueiredo & Coelho Jr., no prelo).

Na matriz freudo-kleiniana, a problemática dos adoecimentos psíquicos fica centrada nas experiências das angústias e nas formas ativas de o psiquis-mo delas se defender: quanto mais intensificadas as angústias, mais ativadas as defesas. Nos adoecimentos psíquicos por passivação, as angústias não chegam a se formar e alguma sobrevivência acaba sendo obtida pela via de estados de semimorte psíquica, o que aparece de forma costumeira na escuta dos anali-sandos marcados pelo tédio.

Pontalis (2005, p.237) contesta a fórmula reiteradamente usada para qualificar a contratransferência, que ocorreria “quando nos sentimos vivamente tocados”, defendendo que ocorrem casos de dominação da contratransferência, na verdade, quando “nos sentimos mortalmente tocados”. Para ele, tais afetos indicam a “morte da realidade psíquica” do analisando, levando a surgir um desejo de fazer o outro nascer para si mesmo. É como se a desvitalização da relação transferencial, asséptica e sem a inclusão do humor e do jogo, fosse um tipo de fotografia da patologia do vazio do analisando, o que reproduz em análise a falha de origem que o analisando experimentara em um período arcaico.

Nos casos de tédio ora apreciados nos sentiremos, muitas vezes, mortalmente tocados, mas também igualmente compelidos a compreender o desafio, entender as dificuldades a serem transpostas, para acessar novas formas de construção de uma ética do cuidado, tão necessária nesses casos que clamam por reanimação psíquica e vitalização.

 

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Correspondência:
Adriana Meyer B. Gradin
Rua Pedroso Alvarenga, 691, sala 1304
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Luís Claudio Figueiredo
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Recebido em 21.08.2017
Aceito em 04.09.2017

 

 

1 Agradecimentos ao CNPq, pela bolsa de mestrado concedida, que vem auxiliando o estudo desta matéria. Este artigo integra a pesquisa de mestrado intitulada provisoriamente Tédio e apatia como sintomas: manejos na clínica psicanalítica, em desenvolvimento sob orientação do Prof. Dr. Luís Claudio Figueiredo.

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