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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo jul/set. 2017

 

KEYNOTE PAPERS
50.º CONGRESSO IPA, BUENOS AIRES 2017

 

Intimidade impedida e estabelecida: acompanhando uma menina desde a primeira infância até a psicoterapia infantil1

 

Intimacy thwarted and established: Following a girl from infancy to child psychotherapy

 

Intimidad impedida y establecida: siguiendo a una niña desde el inicio de la vida hasta la psicoterapia infantil

 

L'intimité entravé et établie: la suivie d'une petite fille depuis la première enfance jusqu'à la psychothérapie infantile

 

 

Bjorn SalomonssonI; Majlis Winberg SalomonssonI; Tradução Imyra Bardelotti

IAnalista didata e analista de crianças. Membro da Associação Sueca de Psicanálise

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo é baseado em um único estudo de caso de uma mãe e sua filha, dos 5 meses aos 7 anos e meio desta. Elas participaram de um ensaio clínico aleatório durante o tratamento psicanalítico mãe-criança, o que incluiu um estudo de acompanhamento após 4 anos e meio. A menina fazia, então, psicoterapia infantil dos 6 aos 7 anos e meio. A mistura de contextos levou em conta entrevistas de pesquisa, gravações em vídeo das interações da dupla, outras avaliações, e anotações das sessões terapêuticas. Isto permitiu aos autores estabelecerem ligações conceituais entre as observações feitas por eles durante o início da infância da criança e o tratamento de uma neurose durante o período de latência, marcada por ansiedade, compulsões e prepotência. Eles argumentam que características de rispidez e imediatismo no relacionamento mãe-criança impediram o desenvolvimento da intimidade da menina. Com o propósito de compreender como tais aspectos do relacionamento se internalizaram na criança, os autores combinam várias fontes de dados das duas. O valor heurístico de cada é logicamente limitado e, deste modo, os autores defendem que são necessários tanto o entendimento psicanalítico quanto a pesquisa empírica para chegar-se a um entendimento mais profundo das relações entre influência externa e desenvolvimento interno.

Palavras-chave: estudo longitudinal, ensaio clínico aleatório, apego, psicoterapia infantil


ABSTRACT

The paper is based on a single case study of a mother and her daughter, from 5 months to 7½ years. They participated in an rct on mother-infant psychoanalytic treatment, including a follow-up study at 4½ years. The girl was then in child psychotherapy from 6 to 7½ years. The mix of settings allowed for research interviews, video-recordings of the dyad's interactions, other assessments, and notes from therapeutic sessions. This enabled the authors to forge conceptual links between the observations they made during infancy and the treatment of a neurosis during latency, marked by anxiety, compulsions, and bossiness. They argue that the mother-infant relationship's brusque and speedy qualities thwarted the girl's development of intimacy. To understand how such components of the relationship became internalised in her, the authors combine their various data sources. The heuristic value of each are necessarily limited and therefore, the authors argue, both psychoanalytic understanding and empirical research are needed to gain a deeper understanding of the relations between external influence and internal development.

Keywords: longitudinal study, rct, attachment, child psychotherapy


RESUMEN

El artículo se basa en un único estudio de caso de una madre y su hija, desde los 5 meses hasta los 7 años y medio. Ellas participaron en un ensayo clínico aleatorio durante el tratamiento psicoanalítico madre-hija, lo que incluyó un estudio de seguimiento después de 4 años y medio. La niña recibió psicoterapia infantil desde los 6 hasta los 7 años y medio. La mezcla de los contextos tuvo en cuenta entrevistas de investigación, grabaciones en vídeo de las interacciones del dúo, otras evaluaciones, y notas de las sesiones terapéuticas. Esto permitió que los autores establecieran conexiones conceptuales entre las observaciones realizadas por ellos durante el inicio de la infancia de la niña y el tratamiento de una neurosis durante el período de latencia, marcada por ansiedad, compulsiones y prepotencia. Ellos argumentan que características de rispidez e inmediatismo en la relación madre-hija impidieron el desarrollo de la intimidad de la niña. Con el propósito de comprender como tales aspectos de la relación se internalizaron en la niña, los autores combinan varias fuentes de datos de ambas. El valor heurístico de cada uno es lógicamente limitado y, de esta forma, los autores defienden que son necesarias tanto la comprensión psicoanalítica como la investigación empírica para llegar a un conocimiento más profundo de las relaciones entre influencia externa y desarrollo interno.

Palabras clave: estudio longitudinal, ensayo clínico aleatorio, apego, psicoterapia infantil


RÉSUMÉ

Le document est basé sur une seule étude de cas d'une mère et sa fille, de 5 mois à 7 ans et demi. Elles ont participé à un ecr (essai randomisé contrôlé) sur le traitement psychanalytique mère-enfant, y compris une étude de suivi à 4 ans et demi. La jeune fille était alors en psychothérapie d'enfants de 6 à 7 ans et demi. Le mélange des paramètres des entretiens de recherche a permis les enregistrements vidéo des interactions des deux, d'autres évaluations et des notes provenant de séances thérapeutiques. Cela a donné aux auteurs la possibilité de forger des liens conceptuels entre les observations qu'ils ont faites pendant la petite enfance et le traitement d'une névrose au cours d'un état latent, marquée par l'anxiété, les compulsions et la tyrannie. Ils démontrent que la relation mère-enfant étant brusque et rapide compromettait le développement de l'intimité de la petite fille. Pour comprendre comment ces composantes de la relation se sont intériorisées, les auteurs combinent leurs différentes sources de données. La valeur heuristique de chacune est nécessairement limitée et les auteurs considèrent donc que la compréhension psychanalytique aussi bien que la recherche empirique sont nécessaires pour mieux comprendre les relations entre l'influence extérieure et le développement interne.

Mots-clés: étude longitudinale, ecr, attachement, psychothérapie infantile


 

 

Introdução2

A camada mais interna de um vaso sanguíneo é chamada de túnica íntima. Intimidade, então, significa alcançar a parte mais profunda de outro ser? É um “processo pelo qual uma díade - na expressão de pensamento, afeto e comportamento - faz uma tentativa de movimento rumo a uma comunicação completa [itálico nosso] em todos os níveis” (Hatfield, 1982, p. 271)? Klein afirma que isso é uma quimera: de fato, “uma relação inicial satisfatória com a mãe ... implica um contato próximo entre o inconsciente da mãe e o da criança” (1963/1975b, p. 301), mas isso não quer dizer que exista uma comunicação completa. Depois, ao longo da vida, adoramos

expressar nossos pensamentos e sentimentos a uma pessoa próxima, [mas] ainda resta um anseio insatisfeito [itálico nosso] por um entendimento sem palavras -em suma, pela relação primeira com a mãe. Esse anseio contribui para a sensação de solidão e vem do sentimento de depressão proveniente de uma perda irremediável. (p. 301)

Intimidade envolve unir-se em entendimento e amor - e aceitar perda e solidão. Sem essa combinação, a intimidade será impedida. Nós a imaginamos como um movimento, e não um estado; como uma dança, e não uma fusão. Assim como Klein, entendemos que é desenvolvida na infância. O que acontece então se a dança da intimidade entre mãe e bebê é descontínua e sem ritmo? Como isso poderia alterar o desenvolvimento afetivo, o entendimento e outras habilidades da criança? Enquanto pesquisadores e analistas de crianças, pudemos estudar essa questão acompanhando Annie e sua mãe, dos 5 meses aos 7 anos e meio de idade. Nossa apresentação é, portanto, o “estudo de um único caso” psicanalítico, no qual a “variável é observada em diversas condições” (Kãchele, Schachter & Thomã, 2009, p. 10), que aqui correspondem a quatro pontos no tempo. Antes de apresentar o caso, vamos propor algumas reflexões gerais sobre intimidade.

Quando concebidos, somos todos frutos da intimidade, em um ato de amor e esperança - ainda que não seja sempre assim. Uma vez realizada a concepção, ameaças à intimidade dos futuros pais sorrateiramente começam a pairar sobre o leito conjugal. Sementes de ciúme, medo da responsabilidade e temor da perda do feto se misturam às alegres expectativas compartilhadas. O habitante anônimo está, portanto, desestabilizando o mundo interno dos pais. Eles precisam manter o equilíbrio entre narcisismo e amor libidinal, autonomia e dependência, amor pela vida e medo da morte. A mãe grávida ainda tem de se adaptar à imagem de um corpo que se comporta de maneira misteriosa e, algumas vezes, dolorosa e instável. O equilíbrio narcisista do pai é também ameaçado, mas ele talvez tente negar o fato enquanto o bebê estiver “apenas dentro dela”. Depois, tal ilusão irá desmoronar, quando o bebê chorar noite adentro, quando a amamentação não der certo e quando ele tiver de trocar as fraldas.

A ameaça à intimidade é também apresentada no despertar da sexualidade na primeira infância. Durante a gravidez, as alterações no corpo da mãe desafiam sua autonomia (“Quem é que manda na minha vida, eu ou 'isso' dentro de mim?”) e sua sexualidade (“O que 'isso' faz com o meu corpo e com as minhas paixões?”). Então, o recém-nascido chega engatinhando no corpo dela: cheirando, lambendo, sugando, fazendo xixi e cocô. Há pouco espaço para a sexualidade do adulto, agora que um pequeno, mas insistente, amante apareceu e seu companheiro se tornou um cara de olheiras que passa a noite procurando no Google informações sobre brotoejas em bebês. Se a intimidade nasce de um contato próximo entre o inconsciente da mãe e o da criança, ela implica a sexualidade infantil de ambas as partes. Embora “o cuidado sintonizado e seguro gere o contexto interpessoal para uma relação com fantasias eróticas adequadas, seu conteúdo [itálicos nossos] surge da falta de sintonia da mãe e do bebê em adaptação” (Fonagy, 2008, p. 26).3 Tal falta de sintonia ocorre porque a sexualidade da mãe e a do bebê, como sugeriu Laplanche (1989; 1999; 2007), são veladas ou enigmáticas tanto mutuamente como para cada um. Nessa relação, as mensagens facilmente se tornam “opacas tanto para o destinatário quanto para o emissor” (Laplanche, 1995, p. 665). Para que seja desenvolvida a intimidade, a mãe precisa interagir com a criança com tolerância, humor, afeto e transparência (Bydlowski, 2001) para com suas fantasias sexuais infantis inconscientes.

Esse processo pode ser comprometido na depressão pós-parto; a fértil lacuna intersubjetiva na falta de sintonia entre a sexualidade da mãe e a do bebê pode se expandir e se tornar uma insuperável ruptura. Essas mães são, às vezes, fechadas ou ansiosas em relação ao bem-estar do bebê. Existem muitas questões narcisistas; elas se sentem sem valor, incapazes de amar ou de se sentirem íntimas da criança. A culpa está sempre presente. Elas tendem a se desligar ou a ser invasivas nas interações com o bebê (Cohn & Tronick, 1989), que talvez proteste ou desvie o olhar. Muitos estudos confirmam a ligação entre depressão materna e problemas comportamentais infantis (Field, 2010; Grace & Sansom, 2003; Murray & Cooper, 1997; Tronick, 2007).

A depressão pós-parto não tem recebido muita atenção específica da comunidade psicanalítica (Blum, 2007). Portanto, o senso comum de que é causada pelos hormônios, assim como a visão psiquiátrica de que se trata de mais uma forma da depressão comum, tem permanecido incontestado. De acordo com nossa perspectiva, é mais proveitoso, heurística e terapeuticamente, vê-la como uma crise existencial. Poucos eventos na vida podem perturbar tão fortemente o armistício diário entre pulsão e defesa do que a chegada de uma criança. “Estou vivendo para mim ou para o bebê? Eu sou filho dos meus pais ou mãe/pai do meu filho? O que é importante na vida? O que eu quero e não quero transmitir da minha infância para meu bebê?” Um dia, essas questões são arremessadas na cara dos pais pelo menor dos profetas: o bebê.

Ninguém permanece inabalado com a chegada do bebê. Algumas pessoas chegam a ficar esgotadas e, como acontece com uma a cada seis mães, deprimidas. Não são poucas as que intuem a dimensão existencial por trás do seu sofrimento. Gostaríamos de associar essa observação com o conceito de Winnicott (1956/1982) de preocupação materna primária, uma condição psiquiátrica muito especial, um estado organizado marcado pelo aumento da sensibilidade em relação à criança e a ela mesma. Nesse estado tão desestabilizado, um encontro com um psicanalista pode ser proveitoso e vital. Há poucos momentos na vida em que a janela para o interior é tão facilmente aberta. Portanto, a obtenção de efeitos rápidos e de profundo alcance nas consultas terapêuticas é surpreendentemente comum. Esperamos inspirar nossos colegas a embarcar em um trabalho assim.

Para tratar do tema do congresso, escolhemos uma díade de um estudo clínico randomizado controlado, que posteriormente se tornou um caso de terapia infantil. Outro objetivo nosso é mostrar que estudos quantitativos podem informar a respeito da eficácia terapêutica e oferecer uma leitura psicanalítica de dados relevantes. Em outras palavras, a partir do modelo extensivo (Jacobs, Heim & Chassan, 1966) usado em um grande estudo por amostra, podem-se extrair estudos de caso individuais com base no modelo intensivo para promover hipóteses e teorização psicanalíticas. As observações que fizemos ao longo de sete anos indicam como as interações diádicas durante a primeira infância podem se tornar internalizadas na criança e, por meio da terapia, ser abordadas em uma fase posterior.

 

O caso

Na entrevista de pesquisa que realizei com Donna, de 30 anos, e sua filha Annie, de 5 meses, ela começou afirmando:

Não sou boa com essa coisa de pais e filhos. Não gosto de ficar sem trabalhar, apenas empurrando o carrinho. Acho que sinto culpa. Sei que não sou politicamente correta. Essa é uma experiência nova, não poder compensar trabalhando mais ainda. Eu não me senti bem no final da gravidez. O médico recomendou que eu tirasse licença. Eu disse a ele que não tinha tempo. “Isso é problema seu”, ele respondeu. O parto não começava. Então, fiz uma cesárea de emergência. Os pontos infeccionaram. Eu fiquei bastante ausente nas primeiras seis semanas [risos]. Aquele contato imediato entre mãe e bebê nunca aconteceu. A menina nunca gostou da amamentação: ela se jogava para trás como uma estrela-do-mar furiosa. Eu fantasiava que a jogava pela janela. Todos estão defendendo a amamentação, mas não há nenhuma prova científica de que seja melhor do que a mamadeira. Entrei em pânico quando meu marido retomou o trabalho, por ter de ficar sozinha com a bebê...

Donna afirma então que seu real problema é não conseguir corresponder às expectativas da sociedade quanto à felicidade materna. Ela oscila entre percepções depressivas transitórias sobre sua relação angustiante com Annie e períodos mais longos em que ela, em um estado mais esquizoparanoide (Klein, 1946/1975a), acusa a sociedade de forçar atitudes erradas nas mães. Contudo, ela se dá conta de que, “em alguma fase da vida, a pessoa tem de passar por essa coisa de existir alguém que é totalmente dependente de você”

A relação de Donna com Annie é “funcional: sou eu quem entende as necessidades dela”. Pergunto: “Qual você acha que seria a resposta de Annie se eu perguntasse a ela?” “Acho que ela diria: 'Mamãe tem muito pouca paciência, é estourada e distraída'” Ela então imita a menina: “Mamãe, eu quero atenção o tempo todo” Apenas quando pergunto sobre o seu marido ela fica chorosa: confirma a afeição que tem por ele e anseia ter os mesmos sentimentos por Annie.

Donna tem sido ambivalente em relação à maternidade desde o começo da gravidez. Seu amor por Annie somente aparece com dificuldade. Seus sentimentos negativos são mais evidentes. Ela se desconecta dos aspectos sensoriais da maternidade, que ela restringe a um dever social - o que provavelmente é um esforço para se libertar da culpa. Quando o peso passa a ser muito grande, ela o projeta na sociedade: é a sociedade, e não ela própria, que é severa e demasiado exigente.

Annie foi uma criança planejada e esperada, mas a gravidez foi um choque para Donna. Sua recusa a tirar licença reflete: “Eu sou uma workaholic” Se, como diz Gentile, uma mãe precisa negar sua própria mente e dar ao bebê sua “subjetividade não impositiva” (2007, p. 556), isso é algo que entra em conflito com a visão de mundo de Donna. Como toda mãe (Harris, 1997), Donna está bem brava com o seu “habitante”, mas não consegue integrar tais sentimentos. Em vez disso, ela se torna irritada e irônica com Annie.

Donna também fala da própria mãe:

Somos muito próximas e estamos sempre em contato. ... Bem, tenho uma formação acadêmica, mas meus pais não são exatamente leitores de Strindberg. ... Minha mãe é afobada e não pensa antes de fazer as coisas. Perguntei se ela teve algum pensamento em especial quando eu nasci. Ela olhou para mim como se eu fosse de Marte: “Eu deveria pensar em alguma coisa? Eu apenas fiz o que fiz”.

Para Donna, a atitude despreocupada da mãe alegra sua própria natureza, mais sombria. Contudo, sinto que sua linguagem verborrágica e perspicaz mergulha em sentimentos dolorosos apenas por breves momentos.

 

Cinco meses: primeira entrevista

A entrevista foi parte de um estudo clínico randomizado lançado em Estocolmo. Oitenta díades mãe-bebê foram encaminhadas para 25 sessões com um psicanalista especializado em pais-bebê ou para um tratamento regular em centros de saúde infantil locais. Na Escandinávia, esse é um sistema ambicioso, com frequentes check-ups feitos por enfermeiras especializadas e pediatras, que também são instruídos a observar sinais de depressão pós-parto e, se necessário, sugerir tratamento. Os resultados do estudo (Salomonsson & Sandell, 2011a, 2011b) recomendaram o tratamento analítico para depressão (Cox, Holden & Sagovsky, 1987) e stress (Ostberg, Hagekull & Wettergren, 1997) maternos, bem como relações diádicas (Zero to Three, 2005) e interações (Biringen, Robinson & Emde, 1998) avaliadas por observadores. As últimas foram filmadas em vídeos de 10 minutos. Vamos acompanhar uma gravação feita aos 5 meses. A instrução que dei para Donna foi simplesmente: “Faça com Annie como se estivesse em casa”.

O vídeo mostra a sensibilidade limitada da mãe. Seu ritmo é muito rápido para um bebê. Diante do crescente incômodo da menina, a mãe decide que deve ser “pum ou cocô” Minha interpretação é de que essa é umas das muitas identificações intrusivas por meio das quais Donna busca colocar para fora aspectos desagradáveis e repulsivos de si mesma. Outros exemplos semelhantes são o fato de ela chamar Annie de “cara de joelho” e perguntar: “Você é uma havaiana que só conhece as vogais, ouayah?” A menina quer o colo da mãe, mas esta entende que se trata de apelos para que ela cante ou troque a fralda. A linguagem verborrágica e acelerada que Donna utilizou ao falar comigo também fica evidente quando ela está com sua filha bebê. Isso deixa uma dúvida sobre como ela pode conter o incômodo do bebê.

Na minha contratransferência, Annie parecia envelhecida e preocupada, além de ter um olhar triste. De vez em quando, ela saltava para cima e para baixo no colo da mãe. Após a gravação do vídeo, Annie começou a chorar e a mãe a imitá-la de um jeito irônico. Conforme seus gritos aumentavam, crescia também a inabilidade da mãe para acalmá-la. Ao mesmo tempo, Donna relatou que a amamentação deu “meio que” certo até a filha completar 2 meses e meio, quando Annie “recusou o peito feito louca” O sono era um problema constante, pois Annie se agitava com facilidade e não era possível ficar com ela em um café. “Todo tempo há algo aqui que não dá certo.”

 

Onze meses: a segunda entrevista

Donna e Annie foram selecionadas para o tratamento no centro de saúde infantil. Seis meses depois elas retornaram para uma segunda entrevista, conforme estabelecido pela pesquisa, a ser realizada quando a criança completasse 11 meses. Donna disse:

O filtro entre nós desapareceu. O tipo de troca que tenho com meu marido, eu posso ter com ela também. Tive a oportunidade de me distanciar um pouco. Então, entrei em uma espiral positiva. Não entendia que estava deprimida. Eu me sentia uma merda. Agora sou uma mãe que trabalha, e não uma profissional que tem uma filha.

Annie havia acabado de aprender a andar. Ela busca contato e me oferece um brinquedo com blocos para montar. Donna diz que a menina também sofreu durante sua depressão,

mas isso não a prejudicou. Ela ainda tem problema com a alimentação, mas, agora que não mama mais no peito, eu não levo para o lado pessoal. Não há mais problemas de sono. Ela é agitada, curiosa, vivaz. Nunca gostou de ficar parada por muito tempo, mas isso não importa agora que ela pode se mover sozinha por aí.

No vídeo, observa-se melhora na sensibilidade da mãe. Quando eu saio da sala com o início da gravação, Annie procura por mim e a mãe percebe: “ Você ficou chateada que ele saiu. Não se preocupe. Ele vai voltar'. Donna aponta e fala o nome de diversos objetos para a menina, mas não percebe quando Annie procura pelo seu seio. Ela pega um livro e tenta chamar a atenção da garotinha, mas não percebe que Annie não está interessada. O ritmo ainda é um pouco acelerado.

Em suma, Donna sabe que estava deprimida no início da vida de Annie. Agora ela se sente melhor e está agradecida pelo apoio do marido, além de relatar que o contato que ele tem com Annie é melhor do que o dela. Ela gosta mais de ser mãe e começa a sonhar com um segundo filho. Ela diz a si mesma que Annie não foi prejudicada, mas também relata problemas com a alimentação e uma grande agitação.

Retomemos o tópico da intimidade. Se a intimidade implica dançar junto, ela então pressupõe um senso de ritmo, uma habilidade de ouvir e compreender os sinais do outro, além de um amor por si e pelo outro. Até que ponto a intimidade amadurece quando uma mãe não gosta de empurrar o carrinho em que está o seu bebê cara de joelho e sente que tem de passar por essa coisa de ter alguém que depende dela? E se o bebê se joga para trás como uma estrela-do-mar furiosa diante do seio materno, dorme mal e não consegue ficar com a mãe em um café? Sugerimos que essas observações iniciais demonstram os problemas de Donna e Annie para manter uma relação de intimidade. Seis meses depois, o filtro da mãe desaparece, ou porque a depressão melhorou, ou porque Annie se tornou mais independente e sua rotina mais bem definida. Mas é claro que nos perguntamos se Donna estava certa ao afirmar que Annie não foi prejudicada. Como Majlis W. S. vai relatar agora, obtivemos algumas respostas anos mais tarde.

 

Quatro anos e meio: a terceira entrevista4

Eu me encontrei com Annie quando ela tinha 4 anos e meio, para uma entrevista que fazia parte do acompanhamento do estudo clínico randomiza-do. O objetivo era comparar a eficácia a longo prazo dos dois tratamentos aos quais Bjorn acabou de se referir. Optamos por uma idade em que as crianças podem usar palavras, participar de testes verbais e ficar sozinhas comigo em uma entrevista. De um total de 80 crianças na primeira infância, hoje reunimos os dados de 66 delas com 4 anos e meio, 33 de cada grupo. A taxa de resposta foi, portanto, de 83%. Nas entrevistas, eu não sabia nada a respeito do histórico e do encaminhamento das crianças.

As entrevistas gravadas em vídeo começavam com nossa recepção à mãe e à criança, que eram posteriormente separadas e colocadas em salas adjacentes. Enquanto Bjorn entrevistava a mãe a respeito de suas representações internas do filho (Zeanah, Benoit & Barton, 1986), eu testava o funcionamento cognitivo da criança (Wechsler, 2005). Dava-lhe um Lego e dizia: “Você pode montar o brinquedo com a sua mãe”. Em seguida, mãe e criança eram reunidas, brincavam com o Lego e, ao final, ganhavam biscoitos e limonada. Essa sequência durava 20 minutos, e então eram separadas novamente. Dessa vez, Bjorn perguntava à mãe sobre a saúde e os acontecimentos da vida desde o estudo da primeira infância, bem como sobre o comportamento da criança, suas relações em casa e na pré-escola. Enquanto isso, eu avaliava o funcionamento global da criança (Shaffer et al., 1983) e lhe fazia perguntas como: “O que você faz em casa, na escola, com seus colegas?'. Depois, mãe e criança eram reunidas de novo, e nós nos despedíamos.

Eu juntei minhas impressões a respeito das crianças em palavras inventadas por mim. Os chamados tipos ideais (Wachholz & Stuhr, 1999) não atribuíam números aos níveis de funcionamento, mas descreviam cada criança por meio de palavras idiossincráticas, como curiosa, comportada, encrenqueira, assustada etc. Em uma segunda etapa, agrupava essas palavras em quatro tipos: a criança aberta parecia vivaz, confiante e aberta; a criança ordeira era eficiente e gentil, mas um tanto contida ou inibida (esses dois tipos correspondiam às crianças o.k.); a criança ansiosa era preocupada, inibida ou tímida; a criança provocadora era irritante, maldosa ou agressiva demais (as duas últimas eram as crianças problemáticas).

Os resultados do estudo (Winberg Salomonsson, Sorjonen & Salomonsson, 2015a, 2015b) demonstraram que as crianças no grupo de análise apresentaram um melhor funcionamento global - havia mais crianças o.k. e menos crianças problemáticas. Além disso, os efeitos iniciais superiores dos questionários sobre depressão para as mães em análise se mantiveram ao longo dos anos. Isso provavelmente deu a elas uma vantagem, quando comparadas com as do grupo que não foi tratado em análise, ao lidar com os filhos ou responder a eles.

Agora, voltemos a Annie: na entrevista, ela olhou para mim um pouco tensa e tímida e não disse nada. Não teve problemas para deixar a mãe e se concentrou em suas tarefas. De vez em quando, ela me olhava atentamente e, então, sorria para mim. As tarefas eram resolvidas rápida e facilmente. Ela parecia satisfeita de maneira reservada. Depois ficou mais vivaz e relaxada: “Uau, isso não foi nada difícil”. Quando lhe foi solicitado fazer o desenho de uma pessoa, ela desenhou uma bruxa cozinhando uma sopa com moscas e mosquitos. De repente, ela disse que precisava fazer cocô, acrescentando: “Eu sei me limpar”.

No teste que consistia em dar um final para histórias (Hodges, Steele, Hillman, Henderson & Kaniuk, 2003), suas histórias frequentemente tratavam de crianças que se viravam sozinhas. Havia uma negação dos perigos, como na história sobre um porquinho que se perdeu na floresta. Ele conseguiu voltar para casa sozinho: ninguém o ajudou e nenhum dos animais selvagens ao seu redor apresentou alguma ameaça.

No vídeo com mãe e filha, Annie falava sobre mim. A mãe perguntou a meu respeito e fez comentários um tanto jocosos sobre as respostas dadas por Annie: “Sobre o que vocês conversaram lá?”; “Sobre o que uma pessoa precisa quando chove”; “Qual foi a sua resposta, um maiô?” (a mãe riu); “Não, eu disse um chapéu de chuva, uma capa de chuva e galochas”; “Mas um maiô também não cairia como uma luva?”.

Donna contou a Bjorn que Annie não gostava de situações novas, a não ser que fosse informada com antecedência; que ela tinha dificuldade em brincar só e que queria controlar quais seriam os jogos para brincar com seus colegas. Outra questão era o medo de perder. Ela gostava da pré-escola, com suas regras e rotinas. Sempre foi birrenta quando o assunto era comida. A mãe disse: “Eu me pergunto se ela ainda busca aquele amor que não lhe dei incondicionalmente naquele primeiro ano”.

Para mim, Annie era uma menina inteligente, contida, inibida e concentrada. Ela parecia automotivada e usava a defesa do eu-posso-dar-conta-de-mim contra ansiedades cujo conteúdo eu poderia, nessa situação, apenas imaginar. Eu a avaliei como uma criança ordeira e, portanto, pertencente ao grupo o.k., apesar de seu funcionamento global ser um pouco abaixo do ponto de corte clínico. Também pensei sobre os olhares compridos, oblíquos, que ela me lançava. Na contratransferência, fiquei curiosa e bastante afetada por esses olhares. Entendi melhor meus sentimentos ao trabalhar com minhas avaliações do seu nível geral de funcionamento. Quando, como de costume, eu conversava sobre elas com uma especialista independente, ela apontou que eu, às vezes, avaliava Annie com uma nota alta demais. Percebi como eu me reconhecia naquela menina aplicada e concentrada. Ela me parecia solitária e não confiava em outras pessoas quando os perigos a ameaçavam. Por meio do contato com experiências semelhantes pelas quais passei na minha infância, eu pude me identificar com sua dor de não ser entendida e com sua solidão.

Olhando para trás, acredito que Annie tenha se interessado por mim porque ela identificou minha empatia com o seu dilema. Esse interesse ficou claro durante a conversa gravada que ela teve com a mãe sobre mim. Ela tentava evitar as perguntas curiosas da mãe, que em geral aumentavam quando a menina repetia: “Eu quero ir de novo na Majlis”. Aqui se nota na criança um embrião da transferência positiva em relação a mim e, provavelmente, também da transferência negativa da mãe.

 

Seis anos: a psicoterapia infantil

Um ano e meio depois, a mãe ligou. Donna descreveu uma situação caótica em casa: Annie frequentemente fazia birra, e cada membro da família, até mesmo o irmão mais novo, de 3 anos e meio, tinha de se adaptar. Annie mencionou que gostaria de encontrar “aquela moça”. Em dado momento, Donna acabou por entender que era de mim que ela falava.

Na primeira entrevista que fiz com os pais, eles acrescentaram que Annie não podia ficar sozinha e evitava contato físico. Ela tinha medo de cachorro e de elevador, além de ranger os dentes. Mas ela também era inteligente e bem-comportada na pré-escola. Chorosa, a mãe relembrou que sempre sentiu certa distância entre ela e Annie: “No começo, eu não tinha contato com ela. Parece que eu fiquei grávida e dei à luz apenas uma vez” referindo-se ao filho mais novo.

Alguns dias depois, eu me encontrei com Annie, que sorriu para mim, demonstrando timidamente que havia me reconhecido. Ela quis desenhar e fez uma flor e uma cadeira “para sentar” Entendi que esse era o seu jeito de estabelecer um lugar para si mesma no meu consultório. Esse foi o fato que marcou o início da análise, que consistia em encontros semanais, de uma hora e meia, com Annie e encontros mensais com os pais. Annie ficava ansiosa para ir e raramente faltava a uma sessão.

Logo Annie deixou de lado suas boas maneiras e sua amabilidade. Ela passou a se comportar de maneira desrespeitosa, a roubar nos jogos e a escrever bilhetes para mim como: “Majlis é uma bosta, uma salsicha de pum, uma salsicha de cocô”. Ela fez um desenho meu no qual todos riem de mim. Meu comentário foi o de como deve ser difícil ser tratada dessa forma e se sentir tão sem valor. A reação dela foi ficar ainda mais desdenhosa e tirar sarro de mim, me chamando de “perdedora fracote” Rosenfeld descreve uma organização narcisista patológica pela qual o paciente busca “conter as partes de si que querem depender do analista enquanto pessoa que o ajuda” (1971, p. 173). Ela tinha raiva tanto dessas partes contidas no seu ser como das partes da analista que estavam dispostas a oferecer ajuda. Inconscientemente, Annie imaginava que nós duas fôssemos salsichas de pum. Seu desdém e sua atitude independente podem ser entendidos como desdobramentos das estratégias que ela desenvolveu desde cedo, em resposta à forma como a mãe a tratava na primeira infância, e como uma identificação com traços de caráter parecidos com os da mãe.

Na contratransferência, eu me senti ao mesmo tempo propensa a me odiar e a querer dar o troco, o que corresponderia ao conceito de identificação complementar, de Racker (1968). Nele, “o paciente trata o analista como um objeto interno (projetado) e, consequentemente, o analista se sente tratado como tal; ou seja, ele se identifica com esse objeto” (p. 135). Em suma, eu teria me sentido que nem merda. Contudo, consegui alcançar uma identificação concordante com a dor subjacente de Annie e com seu desdém pelo seu eu-cocô. Eu poderia, portanto, me manter em contenção e reflexão ou, nas palavras de Racker, atingir uma empatia que de fato refletisse e reproduzisse seus conteúdos

Bjorn Salomonsson e Majlis Winberg Salomonsson psicológicos. Disse a ela que não era fácil se sentir de fora e ter medo de que os outros fossem maus e dessem risada. Minha identificação com essa criança depreciada me ajudou a ter um gostinho de como é ser Annie. E doeu.

Os ataques de Annie contra mim diminuíram aos poucos. Um dia, ela sugeriu que fizéssemos um livro juntas: “O conto da perca que não sabia nadar'. Ela ditava, eu escrevia, e ela fazia os desenhos.

Era uma vez uma perca que não sabia nadar. Os outros peixes a provocavam. Ela deslizou para baixo da pedra e ficou muito, muito triste. Outro peixe perguntou: “Você quer brincar?”; “Mas eu não sei nadar. Então, não posso ir até aí brincar. Você me ensina a nadar?”; “Sim”.

Annie imagina um peixe que está só e é anormal, pois não sabe nadar. Um objeto de ajuda é, então, introduzido: o professor de natação. No último desenho, reconhecemos uma formação semelhante à cadeira feita anteriormente, num dos seus primeiros desenhos. Na época, ela apenas indicou a esperança por uma estrutura futura para lidar com suas ansiedades. Dessa vez, o desenho é muito mais vivaz e espontâneo.

As origens das estratégias de defesa projetiva entre essa mãe e essa filha já podiam ser observadas no estudo da primeira infância. No vídeo, vimos como identificações projetivas tomaram a forma de evacuações (Rosenfeld, 1987). Relembrando o que Donna disse em relação ao bebê que chorava -“pum ou cocô” -, vemos como um comentário descuidado e desagradável talvez comece a ser introjetado como um objeto interno mau, que depois, na análise, é “exportado”. Primeiro, quando Annie precisa fazer cocô; mais tarde, quando transfere isso para mim como projeção: “Majlis é uma salsicha de cocô”. Devido à contenção da paciente, esse tráfego diminuiu e um humor depressivo (no sentido kleiniano) veio à tona.

Eu e os pais nos reuníamos regularmente para compartilhar informações e tratar da autoconfiança flutuante de Donna enquanto mãe. Na época da história da perca, a mãe relatou uma mudança significativa em Annie e um aumento de contato. Na hora de dormir, ela caiu no choro, dizendo que não conseguia ser legal com sua família. A mãe ficou surpresa e agradecida por essa abertura na comunicação das duas: “Há tanta coisa se passando na cabeça da Annie que eu não tinha nem ideia. Ela sempre guardou tudo para si” Agora Annie poderia se abrir, e a mãe poderia receber e conter a autodepreciação da filha e seu medo de não ser amada.

Ao mesmo tempo, nosso contato se aprofundou. Annie se tornou mais aberta em relação a mim, me mostrou as tarefas de casa e parou de me atacar. Além disso, sua tristeza era demonstrada mais abertamente. Ela se perguntava o que poderia fazer para não destruir uma iminente viagem em família com seus costumeiros comentários raivosos e explosões.

Após um ano e meio de terapia, Annie quis finalizar e passar mais tempo com seus colegas. “Antes eu achava que eu era raivosa e má, mas agora penso que dentro de mim tem alguém que às vezes está feliz e às vezes triste.” Suas últimas palavras foram: “Eu posso voltar se eu quiser?”

 

Conclusão5

Em um primeiro momento, sugerimos que intimidade é uma dança na qual duas pessoas desenvolvem uma relação mais próxima e, ao mesmo tempo, mantêm respeito pela integridade do outro. Essa habilidade é desenvolvida na troca mãe-bebê. Se ocasionalmente as duas imaginam que estão unidas, na realidade sua troca muda constantemente, variando entre encontro e desencontro, como Tronick (2007) sugere em seu modelo de regulação mútua dos afetos nas interações. A partir de outra perspectiva, propomos que a intimidade é consequência essencial da dinâmica PS ↔ D (Bion, 1970) e só pode ser alcançada em momentos de posição depressiva. Às vezes, é possível imaginar-se íntimo de alguém, mas isso pode se revelar uma ilusão construída em projeções idealizadas no outro e em si mesmo. Se tal descoberta dá início a um luto bem-sucedido, ela pode resultar em respeito e interesse pelo outro. Acreditamos que essa posição abra caminho para - ou, expressando ainda mais claramente, seja - a verdadeira intimidade.

Seguimos uma díade na qual a intimidade foi impedida desde o início. A gravidez foi desejada, mas depois considerada um incômodo. Um vídeo e uma entrevista aos 5 meses demonstraram diversos obstáculos à intimidade. A sensibilidade de Donna não foi a ideal, sua linguagem verborrágica revelou dificuldade de contato com as próprias emoções e o modo como ela projetava características negativas em Annie era evidente. A relação de Donna com a própria mãe era prática, benevolente, e não íntima, o que a deixou desamparada e incapaz de conversar com a mãe sobre suas questões maternas relativas a Annie. A bebê se tornou uma menina inteligente e aplicada, mas mandona e com uma ansiedade latente.

Descrevemos aqui uma trajetória do desenvolvimento, desde as interações mãe-bebê e as entrevistas até a psicoterapia infantil. Uma grande questão ainda permanece: como as interações que nós observamos foram internalizadas na menina? Deveríamos entender seus sintomas como Klein, de acordo com os conflitos instintivos? De fato, entendemos seu mundo interno conforme

Klein e seus seguidores - usamos, por exemplo, termos como identificação projetiva e intrusiva. Contudo, Klein tendia a minimizar o impacto externo da mãe sobre o bebê, além de não ter apresentado uma teoria sólida sobre como mãe e bebê interagem e influenciam o mundo interno um do outro, o que resultou em justificadas críticas feitas por Bowlby (1958) e outros - a respeito da base empírica insuficiente das especulações psicanalíticas sobre o mundo interno do bebê - e em estudos relevantes sobre o apego. Em nossa visão, também resultou na diminuição do foco no mundo interno inconsciente do bebê e na invenção de uma metapsicologia por vezes intrincada e original.

Sugerimos que nenhuma abordagem para entender o mundo interior de uma criança pode abarcar tudo, nem nossas observações da interação entre Donna e Annie, as entrevistas ou a terapia infantil podem explicar inteiramente por que Annie se tornou uma menina enraivecida, fóbica, inteligente e com uma ansiedade latente. Acreditamos, porém, ter dados empíricos suficientes para concluir o seguinte: a instável contenção de Donna, conforme observado nos vídeos e no modo como ela falava de seu bebê, impediu que as projeções de Annie fossem recebidas e processadas. Suas emoções permaneceram em um estado não metabolizado, e ela se tornou agitada e irritável. Mais tarde, ao buscar aconchego, ela encontrou uma mãe menos deprimida e ambivalente, mas ainda animada e culpada. A contenção passou a ajudar mais, sem no entanto ser ideal. Apesar dos esforços conscientes e da boa vontade, Donna não poderia curar as cicatrizes da primeira infância de Annie. A intimidade foi impedida no berço. Contudo, foi possível estabelecê-la razoavelmente bem por meio da contenção da paciente em um setting clássico de psicoterapia infantil.

É com enorme gratidão que reconhecemos a cooperação dos pais de Annie, que nos deram permissão de apresentar o caso e o vídeo. Nomes e outros detalhes foram modificados.

 

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Correspondência:
Bjorn Salomonsson
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Recebido em 03.08.2017
Aceito em 17.08.2017

 

 

1 Os autores detêm os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrantes do Congresso Buenos Aires ipa, sob o título Intimacy, que ocorreu de 25 a 29 de julho de 2017.
2 Bjõrn Salomonsson.
3 NT: tradução livre da citação: “attuned secure parenting generates the interpersonal context for an erotically imaginative intercourse its content arises out of the adaptive mother-infant misattunement”.
4 Majlis Winberg Salomonsson.
5 Björn Salomonsson.

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