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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo jul/set. 2017

 

RESENHAS

 

Sociedade, cultura, psicanálise

 

 

C. Lucia M. Valladares de Oliveira

Psicanalista, doutora pela Universidade de Paris 7, com pós-doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora e cocoordenadora do curso de especialização em Teoria Psicanalítica (Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão [Cogeae], PUC-SP)

Correspondência

 

 

Autor: Renato Mezan
Editora: Blucher; Karnac, Londres, 2017, 356 p.
Resenhado por: C. Lucia M. Valladares de Oliveira

 

 

Uma psicanálise aplicada, os ramos que crescem

Dois anos após a publicação do livro que lhe valeu o Prêmio Jabuti em 2015, Renato Mezan nos apresenta um novo filho imaginário. Fiel às suas raízes, mais uma vez ele coloca a psicanálise em interlocução com diversos campos do saber, articulando-a magistralmente com temáticas da cultura e da sociedade, para enfrentar problemáticas metapsicológicas e contemporâneas. São 26 escritos, quase todos publicados nesse início de século XXI, sendo dois para fóruns internacionais e quatro inéditos - informações que o leitor pode conferir em “Notas sobre a origem dos textos”.

Distribuídas em quatro partes de tênues fronteiras, que se entrelaçam em diversos momentos, as claras e precisas narrativas são fruto do diálogo maduro que o autor entretém com essa dimensão da produção freudiana por muito tempo deixada de lado, considerada menor, “desprezada”. No seu conjunto, elas podem ser apreciadas como um resgate daquele Freud que, desde os tempos da Sociedade das Quartas-Feiras, se lançava em animadas discussões de psicanálise aplicada.

Mas essa não é a única “extensão” dessa obra. Em diversos momentos, o leitor depara com questões de filiação, homenagem e reverência às origens do autor, aos seus filhos, fonte de inspiração, assim como aos seus mestres - e eles foram muitos, desde os tempos da Congregação Israelita Paulista (CIP), depois na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), passando pela estada em Paris. Tem também a “intensão” explícita de dialogar com compagnons de route, colegas e ex-alunos dessas quatro décadas de frequentação da filosofia e da psicanálise. Sob esse enfoque, o livro pode ser igualmente apreciado como uma manifestação de gratidão, que, como Mezan bem diz, “consiste em saber receber do outro aquilo que ele pode nos dar, e gozar com isso” (p. 234).

Dessa articulação da história pessoal e familiar com a história social, política e cultural, emergem diferentes facetas desse intelectual excepcional, cuja produção poderiamos chamar, seguindo Pierre Nora, de ego-história. Em todo caso, as referências intelectuais e afetivas que o alimentam podem ser medidas pelos dois cuidadosos índices remissivos que enobrecem ainda mais este que já se anuncia como um grande livro.

“Os que não foram heróis: sobre a submissão dos judeus ao terror nazista” abre os cinco ensaios da primeira parte, “Sociedade”. Mezan começa com um testemunho de gratidão para com seu mestre, David Sztulman. Este o levou a interessar-se pelos valores do judaísmo, a encontrar-se com sua história, com seu passado. Trata-se de entender os aspectos inconscientes que fizeram os judeus aceitarem o destino final. O autor esboça uma resposta aproximando a tese de autoengano de Hannah Arendt ao conceito de alienação de Piera Aulagnier.

A incursão pelo político-social e psicológico continua em “Nasrah e seus irmãos: sobre os limites da tolerância”. Mezan faz um rápido mergulho pela longa história do multiculturalismo para refletir sobre os efeitos identitários provocados tanto pelo desenraizamento da cultura de origem como pela intolerância em face do diferente. Por outro lado, através de considerações que se desdobram em questões essenciais sobre os limites da tolerância na contemporaneidade, no que tange à liberdade e à laicidade, valores caros às democracias ocidentais, em “Intolerância, um olhar psicanalítico”, ele recupera as determinações históricas e políticas que permitem compreender esse fenômeno.

Em seguida, a temática social toma o rumo de uma interrogação, “Existe um erotismo contemporâneo?”, que, para ser respondida, exige antes uma retomada dos principais elementos da evolução da sexualidade e do erotismo, tanto no corpo quanto na psique; exige pensar como se constituiu uma cultura do corpo, notadamente no século XX, quando assistimos a uma invasão do erótico, com efeitos significativos na estruturação da subjetividade.

De maneira bem-humorada, a conversa continua em “Casamento sem sexo”. Trata-se de recentrar o lugar preponderante da sexualidade nas relações amorosas, principalmente na questão da atração, ligada a fantasias e frustrações, tanto em sua dimensão narcísica quanto na objetal.

Por esses caminhos chegamos à segunda parte, “Cultura”, que reúne seis textos instigantes e diversificados. Começa por “Um psicanalista no bosque de Clio”, feliz título para o prefácio de um livro de David Levisky, autor que foi buscar na história social medieval um resgate da noção de adolescência. Para arar esse terreno, Mezan avança como gosta, por “tronco e ramos”, acompanhado de historiadores do porte de Georges Duby e Paul Veyne, para localizar o que separa e o que aproxima deles o arbusto de onde germinou Um monge no divã: a trajetória de um adolescer na Idade Média Central.

Como num túnel do tempo, o leitor é transportado da Idade Média para “O amor romântico no século XXI”. Essa temática, já explorada na primeira parte, retorna agora, enquanto atualidade dos “tempos de cólera”. Da recuperação histórica da noção de romantismo, inspirada em exemplos literários, o autor chama a atenção para o caráter opaco do mundo atual, para o peso da alienação - seja pelo declínio dos princípios da autoridade e das instituições, seja pelos apelos incessantes e eficazes aos imperativos do mais-gozar -, ao mesmo tempo que devolve para cada um a responsabilidade de distinguir, “em meio às brumas da ideologia, os meios pelos quais esta nos captura” (p. 122).

Em seguida, o leitor é levado para outro gênero de ficção literária, e a partir de outra interrogação: “Por que lemos romances policiais?”. Para o deleite dos amantes da mystery story, entre os quais me incluo, Mezan assertivamente responde que é pelo prazer, pela surpresa e também para satisfazer o narcisismo de resolver o enigma proposto pelo autor. Que satisfação revisitar essa história dos grandes nomes que marcaram a literatura policial! Mas não para aí. Ainda na lógica das emoções, a ficção literária chega ao cinema, através de uma magnífica leitura do filme de Visconti Vaghe stelle dellOrsa..., de 1965. A interpretação dessa obra-prima, com um cenário etrusco em ruínas, repleto de metáforas, tem por referência, entre outros, Cena incestuosa, de Renata Cromberg, e a leitura que Flávio Ferraz faz de Robert Stoller sobre a perversão.

Do cinema para a realidade da vida: “Mudou o Natal, e mudei eu”. Com esse título tomado de empréstimo de Machado de Assis, Mezan celebra a amizade com Scarlett Marton, que ele preza “como uma das coisas belas da minha vida”. Homenagem em grande estilo! O leitor acompanha a trajetória acadêmica e institucional que forjou a identidade dessa intelectual, desde os tempos dos barracos da Filosofia, nos anos 1970.

“Um rabino tolerante”, escrito para prefaciar o livro de Alexandre Leone Mística e razão: dialética no pensamento judaico, segue no ramo da homenagem. Dessa vez, às teses do rabino, teólogo e filósofo de origem polonesa Abraham Y. Heschel, que, “com sutileza e erudição”, soube articular dois eixos da herança deixada pelos sábios - a Halakhá e a Agadá - para mostrar a importância de “ver com os dois olhos”, sob o risco de tornar-se como o “caolho da Guemará”, ao mesmo tempo que defendeu “a tolerância e o diálogo entre as várias correntes do judaísmo” (p. 186). Em tempos de fundamentalismo e intolerância, essas reflexões, brilhantemente apresentadas e comentadas por Leone, como bem lembra Mezan, são atuais e reconfortantes.

Adentramos agora a terceira parte, “Psicanálise”, composta de três textos, que vão da inveja à gratidão. O primeiro, “A inveja”, nos remete à época dos excelentes ciclos de conferências da Funarte, nos anos 1980. Quando a primeira versão desse texto foi publicada em Os sentidos da paixão, livro organizado por Adauto Novaes, nosso autor ainda era jovem na profissão, “um aprendiz”, como se nomeava, porém, reconhecido pelo seu já clássico Freud, pensador da cultura. A fina narrativa, entre a psicanálise e a literatura, atualizada para este livro, trata da natureza dessa emoção articulando obras de Clarice Lispector e Dante Alighieri com conceitos de Freud, além de dialogar com Klein e até mesmo Lacan, para explorar a inveja na sua relação com o narcisismo, sobretudo pelo seu aspecto mortífero.

Nada mais intrínseco ao saber psicanalítico que o trabalho de elaboração, que possibilita passar dessa emoção tão arcaica para o sentimento de gratidão, como podemos ler nos dois textos dedicados ao psicanalista francês Conrad Stein, que representou, segundo Mezan, “uma das relações mais importantes da minha vida” (p. 212). Essa história começa em Paris, em 1978, quando, ainda um jovem estudante de Filosofia preparando seu doutoramento, ele foi acolhido pelo célebre psicanalista. Anos mais tarde, será sua vez de acolhê-lo no Instituto Sedes Sapientiae, para uma série de conferências e supervisões, em 1988. Em “Conrad Stein no Brasil”, escrito para um colóquio de homenagem realizado em Paris, em 2011, um ano após a morte do mestre, Mezan testemunha os efeitos dessa visita - a introdução dos analistas franceses e a abertura de novos laços transferenciais, num tempo em que a psicanálise era majoritariamente inglesa e a produção local incipiente.

Nessas idas e vindas, ele já havia escrito antes “Prazer de criança: sobre o vínculo entre sublimação e identificação”, em 2004, para festejar os 80 anos do autor de L'enfant imaginaire. Que bela demonstração de gratidão! Uma pena o leitor não poder compartilhar do cd que acompanhou o texto: um presente “de um menino para outro menino”. Quase 40 anos depois do primeiro encontro, esse filho imaginário pôde dizer: Écoutez, M. Stein... aussi, je vous aime bien!

Assim, chegamos à última parte da obra: “Leituras, diálogos”. Um primor de erudição e generosidade é o que extraímos dos comentários respeitosos para 12 publicações sobre as mais variadas temáticas, de autores de diferentes horizontes, expressivos da produção psicanalítica paulista deste século.

O primeiro, “Um analista em seu trabalho”, traz uma análise meticulosa dos 23 artigos que Luís Carlos Menezes reuniu em Fundamentos de uma clínica freudiana. Cabe destacar o lugar desse autor de orientação francesa, que de certa forma revolucionou a ipa paulista quando, nos anos 1980, propôs um retorno a Freud, introduzindo novos temas e autores desconhecidos nessa instituição, habituada então a uma leitura de Klein e Bion - não raro, vale acrescentar, sob a regência de Frank Philips.

Para Renata Cromberg, ele dedica “Um destino para o ódio: a paranoia”. De “ótima qualidade”, “excelente”, “indispensável” são alguns dos adjetivos que Mezan utiliza para avaliar Paranoia, esse “monumental trabalho de síntese” sobre a psicopatologia, ao mesmo tempo assentado na clínica e em reflexões pessoais, além de útil para compreender a função do ódio na atualidade.

Nessa mesma entonação, em “As espirais de Decio Gurfinkel”, sobre Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções, o autor chama a atenção para a “sensibilidade” e “qualidade do pensamento” dos 12 escritos que formam esse “livro admirável”.

As espirais também caracterizam o pensamento de Luís Claudio Figueiredo, contemplado com duas resenhas. Na primeira, “Lições de ontem para a clínica de hoje”, Mezan assinala que o que faz de Psicanálise: elementos para uma clínica contemporânea um dos livros “mais inteligentes, instigantes e coerentes que já tive a oportunidade de resenhar é o seu sólido enraizamento na história da psicanálise” (p. 255). Já na segunda resenha, “Uma visão binocular de Bion”, as espirais sucessivas de Figueiredo são inspiradas em trechos de Transformations. Nessa leitura, o autor destaca as aproximações e os distanciamentos com as teses de Bion e Lacan, ou ainda com as de Aulagnier.

Em seguida temos “Conversa de louco: razão e sensibilidade na prática da psicanálise”, um diálogo com Sergio Telles sobre Fragmentos clínicos de psicanálise. Aqui a ênfase está no prazer de desfrutar do “vasto repertório de cultura geral” e psicanalítica desse autor, que vai construindo o seu raciocínio clínico à medida que comenta sessões de análise, acrescidas de “substanciosos capítulos argumentativos”, em uma leitura refinada que circula por Freud, Klein, Lacan e Winnicott.

À pergunta de Roberto Girola, A psicanálise cura?, Mezan propõe um “Três em um”. Isso porque, além de abordar o processo que historicamente fez dessa disciplina um campo autônomo de conhecimento, ele também vê emergir ali uma introdução à metapsicologia e à psicopatologia psicanalítica à maneira de Freud e Klein, Winnicott e Bion, que se completa com a perspectiva histórica da evolução da rede de conceitos que fundamenta a prática desses autores.

Passemos agora à narrativa mais densa dessa série de diálogos eruditos. “Redescobrir, refletir, problematizar: a fina botânica de Luiz Meyer” trata da coletânea Rumor na escuta. O autor comenta 19 ensaios inspirados notadamente em Klein e Meltzer, para deles extrair: a “clareza” na conceituação do funcionamento psíquico; as “fontes teóricas” com as quais o autor busca dialogar; a “originalidade” das questões formuladas; o “rigor” e a “imaginação”, principalmente no uso de duas categorias centrais, “especificidade e expressão”. Para ficarmos apenas no último eixo, vale destacar as críticas contundentes à formação do analista, à vida institucional, à concepção monolítica, bioniana, que por anos imperou na ipa paulista - críticas que Meyer sempre fez, mantendo uma postura ética e de “imperativos categóricos” precisos, o que torna esses artigos documentos para a história da psicanálise.

A seguir, encontram-se três belíssimos prefácios para textos que, sendo originalmente dissertações de mestrado orquestradas por Mezan, foram transformados em livros. O primeiro é “A gata borralheira da psicanálise”, escrito para Crise pseudoepiléptica, de Berta Hoffmann Azevedo, que convida para um encontro com as histéricas de Freud que atualmente frequentam o Departamento de Psicologia do Hospital das Clínicas da usp. Já “Maternidade impossível” apresenta o trabalho A sombra da mãe: psicanálise e Vara de Família, de Claudia Suannes, como uma fina leitura sobre a posição do analista que atua em instituição, notadamente no que se refere às relações entre feminilidade e maternidade. O último prefácio é destinado a Tornar-se mulher, de Lusimar de Melo Pontes, e intitula-se “Marcia e seus fantasmas: relato de uma análise”. Renato Mezan nos chama a atenção para a reflexão sobre esse tema tão delicado que é o da construção e publicação de caso, pelas suas dificuldades éticas, como a de proteger o anonimato do paciente, e pelas implicações de conteúdo que disso decorrem para a narrativa e para os seus entrelaçamentos teóricos.

Evidentemente, dessa série de diálogos não poderia ficar de fora o encontro com “Silvia Alonso e a clínica do singular”, em O tempo, a escuta, o feminino. O autor passa em revista as reflexões sobre os tempos psíquicos e as lembranças através das quais a autora traça a complexa trama da memória; menciona as questões essenciais sobre a formação e a transmissão da prática analítica e da vida institucional; enfatiza as pesquisas sobre o feminino que formam a “delicada tapeçaria que ela tece nos capítulos centrais do livro” (p. 315); por fim, centra-se nos artigos sobre a histeria, assinalando os que tratam de suas formas contemporâneas.

Assim, com esse extraordinário conjunto de obras vivamente recomendadas, chegamos ao fim dos 26 ramos que formam esse novo filho imaginário, que veio para ampliar ainda mais a espessura da frondosa árvore, assentada em raízes sólidas e cultivada ao longo de uma carreira cujos traços são a erudição, o diálogo, a amizade, a gratidão e a generosidade.

Só resta então dizer: Merci, Renato!

 

 

Correspondência:
C. Lucia M. Valladares de Oliveira
Rua Caetés, 646
05016-081 São Paulo, SP
Tel.: 11 96973-5023
luciavalladares1@gmail.com

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