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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo jul./set. 2017

 

RESENHAS

 

Literacura: psicanálise como forma literária

 

 

Maria Lucia Castilho Romera

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e docente do Instituto Durval Marcondes, membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos (Cetec), professora colaboradora do curso de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), doutora em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)

Correspondência

 

 

Autora: Fernanda Sofio
Editora: FapUnifesp, São Paulo, 2015, 312 p.
Resenhado por: Maria Lucia Castilho Romera

 

 

Com qual linguagem se escreve um texto, um texto psicanalítico, uma resenha? Talvez... com a quase (im)possível linguagem interpretante.

A língua da literacura de Fernanda Sofio é aquela por descobrir-se e a ser descoberta. E. língua em fogo,1 como convém ao enigma que está sempre, por via crítica, a enredar o ato de criar ou reinventar.

A leitura dessa língua há de ser uma experiência lúdica, em que escrever se atrita com rir, e pensar se coaduna com amor e humor, ao modo do nosso poeta “moderquista” Oswald de Andrade:

LITERA (T) URA

C

O T sumiu da palavra
E o mapa desencarnou
Mas...
Ele já lá
Não estava;
Quem é que o inventou?

 

Ninguém...
Ou então todos!
E nessa ele voltou!?
Todos, também,
É só um
E o gigante acreditou!

 

As brechas estavam abertas
Nos encaixes invisíveis
Andaimes??!!
Até que por vir dizíveis
Entrelaçam
Novas eras.

 

Adão...
Em tantas vogais
Engendrou as consoantes
Herr mann
Não germânico,
Ser á... dâmico!?

 

As ligas vêm bem ao léu
... bele... léu
Ao literar, ficção
Cura... da fixação!
Acordam-se em assonâncias
E despertas... lá vão longe
Seguindo outras entrâncias
Errâncias... vazâncias...
Invenções!

 

Plágios não entendidos
Em crise
Inter preta
A branca ação.

 

O avesso
Do verso
É
Seu direito...
Fazendo dele um

 

Não pacato cidadão
Um escritor estético
Desapercebido
Que queira
Em beira
Sem eira
Inventa!

A prosa ou a poesia? Nem uma nem a outra, mas ambas poderão advir. A autora pretende explorar, nas pegadas de Fabio Herrmann, que “a literatura de ficção pode ser pensada como o análogo da psicanálise, mas o contrário não acontece, nem é a psicanálise uma 'matéria-prima' necessária da literatura” (pp. 26-27).

Trata-se de um livro que trata ou... se trata, pois é feito de busca. Trata de uma jovem investigadora e de uma não tão jovem investigação que a psicanálise é. Ao tratar-se, acompanha, dá um trato, sacode, envolve, intriga e cutuca.

O livro de Sofio tem que ser lido de forma inventiva, aceitando o desafio ou os desafios propostos. Ou, como já aventei em outros momentos, através da postura interrogante-interpretante (Romera, 2002), procurando desvendar o mistério dos personagens-conceitos em ficção, desinventados por ela, que habitam o mundo literário e psicanalítico. Mais particularmente, a incrível Infância de Adão, de Fabio Herrmann, e a infância, não mais ou não menos crível, construída na relação da autora com seus pacientes da clínica de seu consultorio que se estende.

E... abre caminho para a viagem do leitor com algo desafiante: “Minha hipótese implica, em relação à interpretação de Herrmann, tão somente dar um passo que o autor não deu: seria possível considerar a forma literária das psicanálises, que possivelmente engendra unidade estética” (p. 27).

Ao introduzir a questão do engendramento de uma unidade estética na escrita psicanalítica, é como se tentasse ampliar os elementos da natureza da interpretação reeditando um estilo, mas buscando descobri-lo mesmo que lá ele já pudesse estar. Mas um estilo do quê? Um estilo de investigação ou... de um método de investigação? A interpretação surge e faz surgir distintas modalidades de criação estética. Seria como se a pesquisadora pudesse ter montado, a partir de outro modelo de vivência, a seguinte indagação: existe água nos salares... mares do deserto de Atacama? Tal água, por já ter estado lá, persiste no cenário estético de miragens que insistem em confundir o espectador extasiado com aquilo que não é, por um dia ter sido.

A tentativa da autora “é construir uma leitura da leitura da ideia psicanalítica freudiana a partir de Herrmann” (p. 28). Busca produzir uma interpretação acerca dos des-caminhos que conduzem a uma literacura, que pode até ser feita ou construída a partir de citações pelo avesso e plágios críticos.2 Introduz os pontos e contrapontos dos meandros da condensação de tal neologismo. Para o leitor, deixa as marcas de que para a psicanálise a literatura de ficção é imprescindível, e para a literatura de ficção a psicanálise pode realizar os andaimes de sua estrutura.

Fernanda não concede quanto à complexidade da articulação entre literatura e psicanálise, assim como em relação à especificidade da escrita psicanalítica. Toma, além de Lévi-Strauss e Bastide, Candido e Rosenfeld como apoio para a sua “ideia de pensar a função, a estrutura e, portanto, o potencial estético da escrita em psicanálise, que a implicam também no campo literário” (p. 29). Como se fosse um são Tomé, ver para crer, insiste em saber o que já está sabido. Para que o seja, porém, haverá de ser descoberto! No entrelace desses conceitos, circunscreve a questão: “será possível contemplar os exemplares psicanalíticos analisados (as ficções freudianas) e os construídos (os relatos clínicos) da perspectiva de sua estrutura estética?” (p. 35).

Arrisca-se e ousa praticar o que chama de leitura torta da fala de Davi Arrigucci Jr., quando ele afirma que a psicanálise é literária por todos os lados. Denota saber que essa leitura torta é exatamente a leitura psicanalítica com a qual podemos contar quando nos fundamos e, por que não dizer, re-fundamos a gênese da descoberta psicanalítica. O espectro ou a alma que a literatura é habita pontualmente a invenção tão verdadeira que se faz nas lidas psicanalíticas.

Para a autora, as psicanálises são literatura e, simultaneamente, psicanálises. Elas têm uma estrutura comum, invariante: a interpretação psicanalítica. Têm também funções específicas e propõem estilos e técnicas diversas, em analogia ao que é próprio do campo literário.

Por caminhos de alinhavos muito oportunos e bem equilibrados entre os autores que toma como companheiros de investigação, conclui num estilo muito humano que “a psicanálise é o que 'é' por meio da literatura de ficção ... sua forma é literária embora o que a produza seja o método psicanalítico” (p. 34). Essas maravilhosas aspas no é trazem a ideia do tão necessário exercício de reflexão para a aquisição do saber; embelezam o texto, pois relativizam o saber peremptório imposto às grandes teses, e o fazem com um tom bem -humorado de crítica ao que é sabido.

Sofio mostra seu impacto com a leitura instigante e enigmática das ficções freudianas de A infância de Adão: o que seria aquilo? Como e de qual perspectiva seria possível analisá-las? Desse universo que lembra Alice através do espelho, vai desdobrando posições e disposições de um campo ou de outro, da literatura, da psicanálise, da filosofia, das artes, ou seja, do vasto uni-verso da interpretação. O lado direito da imagem refletida é o esquerdo de quem olha e outro direito do que é visto. Estranha-mente!

Ao selecionar cinco das ficções freudianas de Herrmann, poderiamos dizer enquanto interpretantes da proposição da sua pesquisa, a autora vai pensando os possiveis encadeamentos dessa sua escolha. Entende que todas elas se constroem a partir do método psicanalitico e deixa entrever que é por acontecer sob tal circunscrição que cada ficção alcança um lugar especifico.

Assim, “Bondade” chega ao narrador psicanalitico por testemunho. Mais do que sentimento, o que a escrita ficcional transmite é uma postura emocionada ou implicada. A análise da investigadora nos diz que “toda pesquisa do narrador se encaminha para dizer que o sentimento da mulher da barca, a bondade forte, é imprescindível ao trabalho analítico” (p. 100). Poderiamos acrescentar que mostra também que o psicanalista-narrador, pelas lentes do pesquisador-autor, recupera para si a simplicidade da bondade forte, deixando-se penetrar pela mulata senhora. “Bashô” chega a uma certa temporalidade do campo analitico. “O escorpião e a tartaruga” chega à episteme no seu avesso e direito, brincando na atemporalidade ou na intemporalidade da criação do conhecimento em análise. “Noticia de Limbia” chega ao avesso do avesso, do avesso, do avesso... da interpretação psicanalitica, cruzando uma esquina que possibilita vislumbrar uma espécie de ficção metafisica psicanalitica. Por fim, “A infância de Adão” chega ao homem psicanalitico, que talvez seja a mais inventiva e polêmica entrada, pois exibe o interior de uma ruptura de campo. Não é à toa que foi para a capa-titulo do livro de Herrmann e para o cerne da investigação de Sofio. Esta, através da captura-ruptura do signo literatura, lança-se na pro-cura da forma literária que pode chegar à escrita psicanalitica, inicialmente à escrita de Herrmann, e enfim... a toda e qualquer escrita do ser em condição de análise.

Ainda sobre seu impacto com o livro A infância de Adão, além de convocar Foucault e Nietzsche para falar da quebra dos absolutos e da reinvenção da forma da interpretação, nomeia Joyce, Kafka, Pessoa, Borges, Guimarães Rosa (citados no mundo adámico de Fabio Herrmann) como companheiros que a ajudaram a encontrar uma entrada. Ou... para abrir uma picada na sua travessia ou... experimentar perder-se no labirinto antes de encontrar sua saida e... só então... dedilhar as cordas entrelaçadas das palavras em ficções freudianas até extrair delas sua particular sonoridade. Ou melhor, inventar sua hipótese: “ser composto de psicanálises, porém literariamente construidas, como unidades estéticas particulares (cada uma das ficções freudianas) e como unidade estética mais ampla (o livro)” (p. 36).

Seu caminho investigativo se faz sempre em construção de possibilidades e transmite para o leitor a ideia de que nunca sabemos se nos lançamos ou se somos lançados na busca. Em franca descoberta, reabre completamente, com Herrmann, a questão de que “como forma literária a psicanálise é um caso de intimidade extrema com os atos que perfazem a análise, não apenas com o contato com o paciente” (p. 36). A partir daí, não é de estranhar que o item “Das escolhas e seus caminhos” termine com reticências: de quem são as ficções... desde as freudianas até as escritas por Herrmann e... por Sofio? A resposta que se torna ou entorna: do campo da literatura, esse campo pensado a partir do conceito de Herrmann do par campo-relação.

Sobre o título Literacura, a autora indica que aí “estão amalgamadas, literária e metaforicamente, tanto psicanálise - como método psicanalítico - quanto forma literária, inclusive, potencial estético”. Só um neologismo ou uma condensação de letras nascida de uma psicanálise em ficção literária - “é livre associação e fluxo de consciência” (p. 49) - poderia dar esse voo. Mas. haveria algum outro estado da psicanálise que não fosse em ficção?

A língua adámica pode nos salvar da fixação, mas ela mesma precisa ser reinventada ou manter-se sempre em estado de ser criada. Para isso vale muito um pouco de má criação, romper com a padronização.

Nessa trilha, irrompe a narrativa da clínica extensa do consultório em tránsitos da autora. Nela, percebe-se a postura em busca inventiva para salvar a pesquisadora da angústia da repetição. Essa repetição, necessária para a abertura dos possíveis, ou dos impossíveis, haverá de ser enfrentada com os recursos da escrita literária ou literacura.

Constrói, logo de início, um pensamento sob medida ou a abertura para o que virá a ser sua construção em devaneio e, por que não dizer, devolteios, contemplando desdobramentos de vórtices acometidos em sua experiência clínica. Reafirmando a não existência de um caso em si, mas a constituição da transformação do caso pela via interpretativa, interroga-se sobre a razão de o analista não buscar uma estrutura estética para seu relato que engendre, na sua particular escrita, a trama de sua clínica. Poderíamos pensar que Fernanda está apontando numa direção do analista escrevente para além ou aquém do escritor. Com isso, seria possível evocar a elaboração feita por Llansol (1990) sobre posição de legência, e não de leitor, de um texto no campo da literatura.

Assim, no capítulo 4, deixa claro seu objetivo, qual seja, a busca por resgatar o caráter lúdico da escrita da clínica psicanalítica. A grande surpresa logo se estampa para o leitor: uma ousadia quase sorrateira quando apresenta o seu “um paciente que são dois” (p. 276). Aí cria outra forma narrativa em que sua hipótese, da psicanálise como forma literária, é escancarada. Abre-se o texto em di-versos movimentos.

Na direção tomada pela escrita em postura inventiva, pode-se apreender, a partir da relação de forte dependência do paciente que é/são dois, a também forte dependência da psicanálise e da literatura. Ou seja, para a análise pela escrita, ou para a psicanálise não ser o que teima em quase ser - uma repetição de premissas já postas -, exige-se a presença da forma literária ou da literatura, que engendrada na experiência clínica já não é mais isso, mas cura... Literacura!

Com a leitura desse livro em ficção de Fernanda Sofio, durante e depois dela, ficamos um pouco mais psicanalistas e um pouco mais amantes da literatura - ou seja, um pouco mais em estado clínico-poiético, que é o estado mais indicado para o psicanalista, ou para quem se exerce na psicanálise.

À pergunta “O que o livro Literacura é, por não ser?”, poderiamos responder: “É uma ficção em prosa”. A pretexto de falar com o Fabio Herrmann adámico, fala com poetas, filósofos, críticos literários. A autora fala e é falada por sua clínica psicanalítica, uma fala em prosa sobre a poesia que vaga pelos hiatos da palavra escrita.

Que a leitura seja lúdica!

 

Referências

Bachelard, G. (1994). A psicanálise do fogo (P. Neves, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Herrmann, L. (2007). Introdução. In L. Herrmann, Andaimes do real: a construção de um pensamento (pp. 11-23). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Llansol, M. G. (1990). Amar um cão. Sintra: Colares.         [ Links ]

Romera, M. L. C. (2002). Postura interrogante-interpretante: por quem os sinos dobram??? In L. M. C Barone et al., O psicanalista hoje e amanhã (pp. 47-57). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Maria Lucia Castilho Romera
Avenida Floriano Peixoto, 615, sala 308
38400-102 Uberlândia, MG
Tel.: 34 3236-7985
mluciaro@terra.com.br

 

 

1 Aqui, o uso do termo fogo é inspirado em Gaston Bachelard (1994), com o sentido de zona intermediária entre a destruição e a renovação ou entre o bem e o mal.
2 Considerações de Fabio Herrmann acerca de sua forma de citação, em entrevista a Leda Herrmann (2007).

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