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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo jul/set. 2017

 

RESENHAS

 

Os paradoxos da repetição

 

 

Ronis Magdaleno Júnior

Psiquiatra e psicanalista. Doutor em Ciências Médicas

Correspondência

 

 

Organizadora: Dominique Fingermann
Editora: Annablume, São Paulo, 2014, 272 p.
Resenhado por: Ronis Magdaleno Júnior

 

 

O volume Os paradoxos da repetição é fruto de um ciclo de conferências ocorrido em 2013, sob a coordenação de Dominique Fingermann - as conferências, posteriormente, foram transcritas e transformadas em livro. Um seleto grupo de convidados proporcionou um aprofundamento consistente do conceito de repetição, desde suas primeiras aproximações pela filosofia até seu uso na clínica e na construção do corpo teórico psicanalítico. A contribuição central dessa obra para o psicanalista clínico é ajudá-lo a se desligar da ideia de que a repetição é apenas um fenômeno que se opõe à elaboração, que impõe algo do mesmo, portanto, patológico. A repetição carrega consigo o potencial para a abertura, para aquilo que sempre foi, mas não podia estar sendo, para o instante de revelação de uma verdade pessoal, particular e subjetiva que se apresenta como acontecimento no trabalho psicanalítico.

Uma conferência de Oswaldo Giacoia Junior abre o livro e trata da repetição em Nietzsche e Kierkegaard, com um recorte próprio voltado para a psicanálise e para a arte. Parte da fundamentação pessimista de Schopenhauer em direção ao pensamento de Nietzsche, que vai desembocar na questão da repetição e do eterno retorno, o que significa dizer que, “em todo instante da sua vida, há que se considerar a possibilidade de sua eterna repetição; não, porém, na chave teórica de uma cosmologia dogmática, mas numa perspectiva existencial de criação artística da própria vida integrada no mundo” (p. 23). Para Kierkegaard a repetição é regeneração, vivificação redentora, uma restauração do sentido do mundo e da vida: “Sim, sou outra vez eu mesmo” (p. 32). É nesse sentido que Giacoia o aproxima de Nietzsche, para quem a repetição também é a possibilidade de retomar aquilo que se é, de “se colocar de novo face a face com a própria singularidade, e de, nessa abertura, fazer a experiência do infinito e do eterno” (p. 33). Trata-se de uma repetição apropriadora, que rompe o sortilégio dos automatismos. Conclui que, tanto para Nietzsche como para Kierkegaard, “devir sujeito é um tornar-se o que se é” não sendo a repetição um mecânico eterno retorno do mesmo, mas “uma experiência de retomar, de re-aproximar-se prima facie de nosso verdadeiro si-próprio” (p. 36).

Juliano Garcia Pessanha retoma a questão da repetição em Nietzsche a partir de um texto em que se coloca como Nietzsche, discorre sobre eventos pessoais e se direciona para uma discussão do eterno retorno.

O eterno retorno é o desejo de que volte sempre o vivo! Eu não quero que volte o morto e o reativo, aquilo do que busco liberação. Eu quero que retorne o meu primeiro movimento, puramente afirmativo, no lugar aberto de um poder começar. (p. 51)

O eterno retorno aspira a esse gesto puro, um “santo dizer sim”, que remete à inocência e ao esquecimento, à criança e a um novo começo; que “aspira a uma ressurreição permanente no interior de uma imanência desimpedida” (p. 51).

Vladimir Safatle propõe uma discussão sobre a construção do conceito lacaniano de repetição a partir de sua fundamentação no pensamento de Aristóteles e Kierkegaard. Inicia retomando a questão da repetição em Freud, para quem a repetição é basicamente uma forma de esquecer, que deve ser transformada em rememoração através do trabalho com a transferência. Para o autor, Lacan se contrapõe a esse posicionamento, propondo mesmo elevar a repetição a conceito fundamental da psicanálise, enquanto peça central na compreensão do inconsciente, retirando-a da condição de limite aos processos de subjetivação, colocando-a como a própria essência da subjetivação analítica. Para fazer esse reposicionamento, Lacan parte de uma interlocução com Aristóteles, sobretudo de sua leitura singular do problema da causalidade acidental na Física, e com Kierkegaard, em seu ensaio de psicologia intitulado A repetição. A mudança na compreensão do fenômeno da repetição com base nesses pensadores, segundo Safatle, permitirá a Lacan definir a noção de acontecimento no interior de suas estratégias clínicas.

Manuel da Costa Pinto propõe uma discussão sobre o tema da repetição na literatura de Albert Camus. Nela encontra cenas que se repetem, quase obsessivamente, que a atravessam e que funcionam como elemento estruturante. Aponta para o fato de que as repetições e a circulação de imagens obedecem a uma dinâmica própria do criador de mitos, sendo o mito fundador o absurdo que recobre a cena traumática da execução de um homem a que o pai dele assiste, que lhe foi transmitida pela mãe na infância. Esse é o ponto zero da obra de Camus. O autor, ao ritualizar a cena nessa repetição, fornece a cifra para entendermos o círculo repetitivo de sua obra, em que

a tensão perpétua entre o absurdo e a revolta é sustentada ... pelo retorno incessante, obsessivo, à lei que a rege e ao veredicto formulado em O homem revoltado: o homem, afinal, não é inteiramente culpado, não foi ele que começou a história; nem totalmente inocente, já que a continua, (p. 91)

Luiz B. L. Orlandi nos apresenta uma profunda reflexão sobre a questão paradoxal da repetição em Deleuze. Referindo-se à obra Diferença e repetição, afirma que o “algo” estranho que se apresenta na repetição é da ordem de uma intensificação que transfigura a face repetitiva do encontro e abre nele dimensoes diferenciadas, criando, assim, a experiencia do paradoxismo da repetição. A repetição deleuziana seria paradoxal porque “o encontro repetitivo implica um diferencial que pode, repentinamente, transfigurá-lo num encontro intensivo”. Isso, contudo, não abarcaria todo o problema, restando de fora a repetição como diferenciação complexa: “a repetição nada muda do objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla” (p. 98). Assim, a mudança não pode ser ligada a um em-si da própria repetição, mas ao efeito da produção paradoxal de novas impressoes que ela suscita no espírito, na mente contemplativa. A repetição implica um em-si diferencial, “que a desfaz à medida que ela se faz” (p. 99), e uma mudança na mente contemplativa, que autoriza a falar num para-si da repetição, numa força de contração decorrente do processo de contemplação da repetição. Em cada nível de contemplação, de contração, a diferença é “transvasada” à repetição, o que faz desta uma repetição paradoxal.

A conferencia de José Miguel Wisnik nos é apresentada como gravação, não como leitura, para não perder as nuances de sua fala, seus ritmos e as experiencias sonoras que nos proporciona - sem dúvida, um recurso essencial para a apreensão da riqueza de seu material. Faz uma articulação do lugar e da função da repetição nas criaçoes poética e musical, ou seja, propoe que a repetição é o que dá acesso a algo único nessas experiencias. Tanto na música como na poesia a repetição se dá numa rítmica. Na poesia, trata-se de uma fala que “avança voltando”, repetindo palavras, sonoridades e padroes rítmicos - repetições que produzem diferenças. Aqui encontramos novamente o paradoxo da repetição, a repetição engendrando diferenças. Na música, o ritmo é a “busca de um objeto que não está”. Na música e na poesia, a repetição é um equipamento não patológico, pois é o que abre espaço para o novo.

Maria Rita Bicalho Kehl propõe uma discussão sobre história e repetição, apoiada em Walter Benjamin. Procura estabelecer uma relação entre o trauma histórico e a necessidade de alguma elaboração posterior, a fim de produzir sentido para a instituição de um tabu inviolável, como o tabu do incesto. Benjamin atribui grande importância à transmissão/repetição das narrativas como forma de preservar a experiencia histórica. Essa transmissão é aliada ao prazer da repetição. Aqui encontramos uma característica da repetição criadora, pois, a cada vez que a história é contada novamente, o narrador e sua plateia introduzem novos detalhes e soluções inesperadas na narrativa tantas vezes repetida. Desse modo, a repetição traz embutidas as condições para a sua própria ruptura, propiciando o surgimento do novo. Kehl conclui retomando a ideia benjaminiana da repetição como catástrofe, como mais do mesmo, e da repetição como interrupção, como revolução e redenção. A autora remete a três possibilidades de repetição no plano da História:

a repetição na forma do retorno do recalcado, isto é, como sintoma social; a repetição do movimento da pulsão de morte na forma de barbárie, da catástrofe; e, por fim, ... como redenção, como obra de um desejo que pode ter ficado para trás, mas que pode ser, mais uma vez, restaurado. (p. 129)

Christian Ingo Lenz Dunker faz uma interessante aproximação entre Freud e Darwin - mais especificamente, aborda o que, na obra de Freud, se refere à influência das ideias de Darwin sobre a evolução das espécies. Afirma que, dos conceitos freudianos, aquele que mais conflui com Darwin é a noção materialista de repetição, e que existiria nos dois autores espaço “para um conceito de repetição que não suponha a identidade primeira do repetido”, o que implicaria mostrar que há um tipo de repetição em Freud e em Darwin que “não é repetição do mesmo” (p. 135). Propõe três incidências conceituais de Darwin sobre Freud: relação de imitação ou de afinidade entre pessoas no interior dos fenômenos de simpatia, empatia e humor; repetição como crítica da unidade entre o acontecimento e sua reconstrução simbólica; repetição que acontece na distinção entre unidade e não unidade. A primeira concepção de repetição, como mesmidade, é psicológica; a segunda acepção, como ipseida-de, é antropológica; e a terceira é de natureza ontológica. Nos três casos, tratase da repetição como algo que impõe uma espécie de coerção, de necessidade ou de força natural.

Seguem dois textos de Dominique Fingermann. No primeiro, a autora aponta para uma suspeição original de que a repetição, apesar de seu caráter não criativo, faz ressoar algo da identidade, abre uma passagem para o que é único. Após uma retomada do percurso freudiano na construção do conceito, a autora nos remete à obra de Lacan. Lacan eleva o fenômeno da repetição “à dignidade de estrutura, retirando pouco a pouco o seu invólucro demoníaco e patológico para valorizá-lo como necessidade lógica que condiciona o humano” (p. 173), indo desde a repetição como insistência da cadeia significante, como repetição do automaton simbólico, até a repetição como encontro com aquilo que está fora de cogitação, da espera e da antecipação, algo da ordem da tiquê, notícia do Real. A repetição deixa de ser empecilho e passa a ter papel central na análise: “proporcionar um encontro com algo imemorável que excede a volta dos signos, o retorno do recalcado e os encadeamentos inesgotáveis do significante” (p. 177). A repetição, como encontro falho com o Real (tiquê), passa a ser causa do sujeito. A repetição, nesse sentido, é paradoxalmente única, porém, necessária. O manejo da transferência não mais será o lugar da cura, mas pode conduzir ao âmago da repetição. Para Lacan, no final de sua obra, a repetição se patenteia como o próprio incurável, necessidade de repetição, o que, contudo, não exime o psicanalista de sua responsabilidade; “ela vem a nosso encargo” (p. 190).

No segundo texto, Fingermann focaliza sua atenção na articulação entre desejo e repetição, e o faz pensando a questão a partir de três vértices: como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud como para Lacan; como Lacan retomou a articulação dos dois, o desejo como efeito da repetição e a repetição como efeito do Dizer; como Marguerite Duras, pelo efeito e afeto de sua “prática da letra”, despertou o interesse para o enodamento do acontecimento, da repetição e do desejo. Para a autora, foi a elaboração do fenômeno clínico da repetição que ocasionou tanto a virada freudiana de 1920, quando propõe a pulsão de morte, como a virada lacaniana de 1964, quando propõe que o que orienta a práxis psicanalítica é o Real, sendo a repetição um encontro falho com o Real. Inicialmente, para Lacan, seguindo os passos de Freud, o desejo se deduz do inconsciente-linguagem, é consequência da linguagem. A partir de 1964, a repetição não é mais a “volta dos signos”, algo que decorre do inconsciente-linguagem, mas sim do inconsciente-real. No que tange à repetição, a dimensão do Real vai descentrar o desejo e abrir o campo lacaniano do gozo. A repetição passa a não ser mais apenas uma manifestação, mas “a estrutura do sujeito, o seu ponto de partida e de partição real: ela repete o encontro que 'não há' com o Outro suposto responder”.

A repetição, nesse sentido, é sempre diferente, porque “topar com o encontro falho do Real é sempre imprevisível, incalculável” (p. 205), um encontro sempre novo. Seguindo os passos de Kierkegaard, Lacan afirma que a repetição tem uma implicação ontológica, pois revela algo do ser do sujeito. Por fim, Marguerite Duras é convocada para exemplificar o lugar do encore -“En-corps - Encore! - Encore?!” (No corpo - Outra vez! - Mais, ainda?!).

O final do livro apresenta um adendo com três trabalhos. O primeiro, de Vinícius de Castro Soares, retoma o problema da repetição em Kierkegaard, e aponta para a diferença entre repetição e retomada, sendo esta a capacidade de “trazer o novo na constância do que se tornou passado” (p. 215). Kierkegaard propõe uma retomada do passado para um devir futuro, nisso consistindo a liberdade e a esperança. Para ele o que é retomado é “o que foi reflexionado interiormente na liberdade subjetiva” (p. 216), algo da ordem de uma regeneração espiritual sem a qual não se vive. Soares termina fazendo uma aproximação entre Kierkegaard e Lacan quanto à questão da retomada. O segundo adendo é um denso trabalho de Michel Bousseyroux, que trata da repetição final. Para tanto, passa por Nietzsche, Freud, Kierkegaard, Blanchot, sempre com a teoria lacaniana como esteio e lastro. Ao se referir a Blanchot, “o maior escritor do desser” (p. 254), remete à experiência deste de ter sido salvo de ser fuzilado por um pelotão de execução nazista. Trata-se de uma “cena autobiográfica traumática, tiquê de seu encontro falho com o Real”. Essa tiquê com o pelotão de fuzilamento “foi o fim da demanda de morte, o instante de sua repetição final” (p. 255). Depois desse fato, Blanchot entra num estado de demourance (neologismo que mistura permanecer e morrer) e passa a escrever “para estar à altura de sua própria morte ... A escrita do desser para a morte” (p. 258). Esse corte transforma a relação de Blanchot com o tempo, sendo esse instante a “mudança radical de relação com o tempo que o corte produz . corte libertador do repisar eterno” (p. 259). O fim de uma análise teria a ver com essa “libertação do ser do desejo pelo fantasma e seu Deus obscuro” (p. 260). Para finalizar, o artista plástico Sérgio Fingermann apresenta de modo poético sua aproximação do campo da repetição como artista: como transmitir essa experiência pela arte? O que a arte cria entre a imagem e o artista? Onde se dá a arte? Claude Monet é convocado para situar o campo da repetição e do novo, que se cria ao executar suas 28 telas que retratam a Catedral de Rouen.

 

 

Correspondência:
Ronis Magdaleno Júnior
Rua Padre Almeida, 515, sala 14
13025-250 Campinas, SP
ronism@uol.com.br

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