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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo jul/set. 2017

 

RESENHAS

 

Heidegger ou as vicissitudes da destruição

 

 

Susana Chinazzo

Doutora em Filosofia, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPDEPA)

Correspondência

 

 

Autor: Roberto B. Graña
Editora: age, Porto Alegre, 2016, 198 p.
Resenhado por: Susana Chinazzo

 

 

O escritor e psicanalista Roberto B. Graña lançou o livro Heidegger ou as vicissitudes da destruição, pela Editora age, como o primeiro volume da trilogia A psicanálise e a crítica filosófica. A obra é fruto da sua tese de pós-doutorado, orientada por Elisabeth Roudinesco, e aborda de forma profunda e complexa as ideias do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), contrapondo-as com a teoria psicanalítica de Freud. Em outras palavras, o autor realiza um paralelo entre a concepção de homem da filosofia ontológica e a da Psicanálise, e examina suas possíveis relações.

Martin Heidegger é considerado um dos filósofos mais importantes do século XX, embora suas ideias sejam reconhecidas como de difícil assimilação. Seu legado teórico influenciou significativamente filósofos posteriores, pós-modernistas, sobretudo os franceses - entre seus mais eminentes herdeiros, encontram-se Sartre, Merleau-Ponty, Deleuze, Foucault, Derrida, Blanchot, Badiou, Fédier, Beaufret e Jean-Luc Nancy. Apesar de sua importância para o pensamento filosófico, Heidegger pode ser considerado uma figura polêmica por conta de sua relação com o nazismo. Graña inicia o livro esclarecendo essa mancha que recai sobre o filósofo. Para isso, vale-se da análise de dados históricos, pessoais e teóricos de Heidegger, destacando a ausência de indícios antissemitas em seus mais importantes livros.

Heidegger não conhecia a teoria de Freud até ministrar os Seminários de Zollikon. Graña descreve esses seminários e acentua as diferenças entre as perspectivas teóricas. Os encontros aconteciam com psicólogos, psiquiatras e psicoterapeutas suíços, na década de 1950, a partir de um convite feito por Medard Boss a Heidegger. Os temas abordados englobavam a possibilidade de integrar a ontologia e a fenomenologia do filósofo com a teoria da prática médica, psicológica, psiquiátrica e psicoterápica. Desses encontros, editou-se o livro Seminários de Zollikon, que é o centro da reflexão crítica proposta por Graña ao longo dessa obra.

Para Heidegger a existência do homem é aberta (ser-no-mundo ou Dasein), não podendo ser reduzida a um eu, a um sujeito, a uma pessoa ou a um objeto. O termo Dasein significa “ser/aí”, designando a condição humana como um constante vir a ser, nunca estático ou passível de objetivação. A ontologia heideggeriana busca o conhecimento do ser em qualquer circunstância, isto é, quer conhecer não somente a existência do homem, mas a de todos os seres. A grande sacada de Heidegger, que trouxe uma enorme contribuição para a filosofia, foi ter distinguido ente de ser. Segundo Graña, os filósofos confundiam os dois conceitos, o que gerava uma distorção no pensamento, decorrente do esquecimento do ser. Ente é a existência, é a manifestação dos modos de ser. Ser é a essência do ente, é o que ilumina e fundamenta a existência e os modos de ser. Heidegger buscava o conhecimento do ser, rompendo com as questões epistemológicas de Descartes, o qual acreditava cegamente na razão e na capacidade do sujeito de conhecer a verdade, separando o sujeito do objeto. Na obra Discurso do método, Descartes afirma: “Todos nós possuímos a razão, ou seja, essa capacidade de bem julgar e de discernir o verdadeiro do falso” (citado por Graña, p. 44).

Freud é um pensador do período do imperativo da ciência racionalista, em que as ideias de Descartes e Kant predominavam. O método científico consistia em descobrir as causas e os efeitos dos fenômenos, medindo e controlando as variáveis. Atualmente, porém, no período pós-moderno, entende-se que essa forma de exercício da razão acabou se tornando um processo de opressão do homem, e não de libertação, levando a um progresso sem controle sobre a realidade econômica, social, ambiental e tecnológica global.

Heidegger entende como impossível apoderar-se da essência do humano e questiona a psicanálise quanto à busca da essência do ser. Freud compreende o homem como um objeto causalmente explicável. Enquadra a psicanálise como uma ciência empírica ou natural, e desenvolve um método em que é possível alcançar os elementos de origem, as causas, dos sintomas. Reforça, com isso, a presença intensa da ciência positivista na psicanálise, na psicologia e na psiquiatria, gerando a ideia de produtividade da técnica. O termo produtividade pressupõe que tudo - felicidade, bem-estar, sensações, experiências - é produzido dentro de uma dinâmica incessante de novas produções e de novos momentos. Assim, pode-se pensar que é possível produzir felicidade para quem está deprimido, por exemplo, pois é possível produzir momentos de exaltação. Essa concepção superficializa a existência humana, desconsidera a subjetividade e a desarticula de sua historicidade.

A filosofia ocidental, segundo Jacques Derrida, é marcada pelo logocetrismo - baseia-se em conceitos absolutos, como Deus, Verdade e Homem, e desconsidera outras formas de conhecimento, como a poesia, a arte e o mito. A proposta do filósofo pós-moderno Derrida é a de uma filosofia desconstrutivista, que não visa destruir no sentido de eliminar, mas sim desconstruir essas concepções para construir novas.

Heidegger ressaltará a necessidade de a psicanálise abandonar os princípios rígidos da ciência e do método científico para adequar-se como ciência do ser do homem, do Dasein. Segundo o filósofo, devemos escutar a linguagem do que é, deixando o fenômeno ocorrer, favorecendo à busca do ser sair da metafísica e da metapsicologia e entrar na ontologia. O desacordo entre Heidegger e Freud consiste na metapsicologia, a qual é vista como o núcleo duro da teoria freudiana, algo que impossibilita a abordagem fenomenológica. Na fenomenologia, não se tiram conclusões a priori nem são permitidas mediações dialéticas. Deve-se apenas manter aberto “o olhar que pensa” sobre o fenômeno, isto é, deixar o ser do ente surgir, aparecer, acontecer. Isso distingue o método fenomenológico do freudiano, pois o último determina o caráter do ser humano através da interpretação concebida como tradução.

A interpretação caminha no sentindo de justificar os motivos de determinado sintoma, do ato falho, do sonho, do acting out. Associa a narrativa e os fatos com a história pessoal do paciente através de uma lógica de causa e consequência. Ao revelar as motivações inconscientes, Freud acreditava na mitigação do sofrimento humano. Heidegger, no entanto, pensava a interpretação como a resposta da pergunta, ou seja, como algo que fecha, que define, o fenômeno. A dinamicidade do constante vir a ser do indivíduo é paralisada na interpretação que define o que de fato é.

Conforme Graña, Derrida e Roudinesco entendem o contexto histórico e a necessidade da conceitualização freudiana. Acreditam, entretanto, que o arcabouço conceitual construído - o isso, o eu, o supereu, o eu ideal, o ideal de eu, os processos primário e secundário do recalcamento etc. - seja uma arma provisória, que vai contra uma filosofia da consciência, da intencionalidade transparente e plenamente responsável.

Roberto B. Graña propõe-se a pensar Heidegger e o pensamento psicanalítico contemporâneo a partir das trocas e intercâmbios passíveis de serem realizados. Respeita as diferenças entre filosofia e psicanálise, não tem o intuito de misturá-las ou confundi-las entre si, porém, acredita que ambas não são ciências naturais nem ciências exatas. Como afirma em seu livro, ambas

são saberes além da ciência, se constroem através de ininterrupta repetição de questões/perguntas e de suas ressonâncias por lugares e tempos insuspeitados, que retornam, e muitas outras vezes retornam, a um lugar que é a cada retorno sempre outro, dirigindo-se a um centro que, à semelhança do centro da escrita ou do livro, não é fixo. (p. 188)

Em suma, propõe que se possa conceber uma psicanálise que flua na via da poiesis, mais que na da técnica..

 

 

Correspondência:
Susana Chinazzo
Rua Luciana de Abreu, 471, sala 307
90570-060 Porto Alegre, RS
Tel.: 51 99913-3717
ssrchinazzo@gmail.com

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