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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.3 São Paulo jul/set. 2017

 

RESENHAS

 

A grande estrangeira: sobre literatura

 

 

Autor: Michel Foucault
Tradutor: Fernando Scheibe
Editora: Autêntica, Belo Horizonte, 2016, 205 p.
Resenhado por: Tiago da Silva Porto

 

 

O belo perigo: conversa com Claude Bonnefoy

 

 

Autor: Michel Foucault
Tradutor: Fernando Scheibe
Editora: Autêntica, Belo Horizonte, 2016, 79 p.
Resenhado por: Tiago da Silva Porto

 

 

 

Tiago da Silva Porto

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
(SBPSP). Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 

A grande estrangeira e O belo perigo são duas publicações póstumas com a transcrição de falas, entrevistas e discursos de Michel Foucault - todos ocorridos na década de 1960, na esteira da publicação de História da loucura (1961) e As palavras e as coisas (1966), época de intensa produção, que consolidou o reconhecimento desse pensador que marcou o século XX. Foram anos estratégicos que reposicionaram a reflexão de Foucault sobre a loucura, a linguagem, os discursos e, como não poderia deixar de ser, a literatura. Nesses dois livros, a literatura ora é o objeto central do pensamento do autor, ora é o veículo principal para a elaboração de suas teses. Aqui vemos o reposicionamento feito não só em seu pensamento, mas também em sua forma. Para Foucault, falar era algo que ia além da comunicação: era uma maneira de se inscrever na ordem dos discursos. Ao problematizar esse gesto, colocou essa prática como um vivo ato político. Essas transcrições mostram a força de seu investimento no discurso oral, apresentando-nos com vivacidade o ato ao qual o autor se referiu em O uso dos prazeres (1984), em que o pensamento é um exercício, é pura experiência modificadora de si, que ocorre dentro do corpo vivo da filosofia.

Ambos os títulos escolhidos para as obras pelos editores foram palavras proferidas por Foucault, retiradas de trechos de entrevistas, e marcam uma bela diferenciação entre os dois livros. No primeiro, Foucault se refere à literatura como a grande estrangeira ao estabelecer entre ele e ela certo distanciamento. É a partir dessa geografia tensa que ele a trabalhará nas falas escolhidas para esse livro. O segundo volume, por sua vez, traz a transcrição de uma entrevista concedida a Claude Bonnefoy, na qual ele foi convidado a falar de si na primeira pessoa. Agora, desse lugar de dentro, o Foucault escritor nos adverte sobre o belo perigo, isto é, o risco de que sua obra se comprometa com o autor.

A grande estrangeira contém a transcrição de três eventos distintos. A primeira parte apresenta dois episódios de um programa de rádio chamado O uso da palavra, que foi ao ar em 1963; a segunda parte, uma conferência sobre linguagem e literatura ocorrida em Bruxelas, em dezembro de 1964; a última parte, uma conferência sobre Sade na Universidade de Nova York, em Buffalo, em 1970. Os três eventos são amarrados nessa publicação pela estratégia foucaultiana de se apoderar da literatura como instrumento de duplicação de seu próprio discurso e arquitetar, com base nela, todo um sistema de pensamento. Podemos reconhecer essa estratégia inúmeras vezes em Freud -o Freud leitor se funde ao Freud pensador, sendo capaz de lançar a obra de Goethe de uma ilustração para o reconhecimento do funcionamento humano mais íntimo. Aqui nesses trabalhos Foucault faz a literatura passar do que seria uma inespecificidade em relação às outras produções discursivas humanas para uma centralidade estratégica, pois ela carrega em seu seio a potencialidade de engendrar uma experiência de ruptura única dos limites, sendo motor de mudanças. A obra literária é elevada ao estatuto de legítimo alicerce para o ato de pensar.

Na primeira parte, os dois episódios escolhidos do programa O uso da palavra, realizado pelo diretor de teatro Jean Doat em 1963, foram “O silêncio dos loucos” e “A linguagem enlouquecida”. Ambos, selecionados pela estrutura especular que criam entre si e pelo lugar de destaque que a literatura ocupa neles, retomam a relação indissociável entre loucura e linguagem a que Foucault se dedicava naqueles anos.

Em “O silêncio dos loucos”, que foi ao ar em 14 de janeiro, Foucault começa a entrevista com uma inversão de papéis. Ele faz uma provocação a Jean Doat: pergunta-se se o teatro não atenuaria o poder da loucura ao controlar sua força subversiva em benefício de uma bela representação. Já de início reconhecemos a estratégia de pensamento de Foucault, que, ao levantar afirmações aparentemente simples, leva o seu leitor/ouvinte à rápida concordância, para no final devolver-lhe todos os paradoxos implícitos em seu raciocínio. Ele nos coloca, assim, no lugar oposto ao que seria o evidente: a linguagem dos loucos não é vítima de uma falta de direção, como se poderia pensar, mas sim cheia de significado. Toma aqui a representação do louco na linguagem a partir de Rei Lear, de Shakespeare, em sua experiência de loucura plena e trágica, e Dom Quixote, de Cervantes, em que a loucura e a consciência da loucura são representações de vida e morte, em que o discurso da razão faz calar a loucura. A razão é vista por Foucault como lacônica e imperativa quando passa a julgar o contrário de si mesma. A razão se embaraça diante da loucura e mais ainda diante da linguagem da loucura, embaraço esse analisado na carta enviada pelo médico responsável por Sade no hospital ao ministro da Polícia. A loucura em Sade é vista como pura gesticulação privada de voz, a loucura de um coração desmedido. Foucault toma também as cartas trocadas entre Antonin Artaud e Jacques Rivière, nas quais se evidencia um trabalho subterrâneo da loucura na linguagem, contra a linguagem - ou mesmo uma linguagem mais sutil, uma linguagem da ausência, que fala do vazio.

Em “A linguagem enlouquecida”, que foi ao ar em 4 de fevereiro, Foucault trata da linguagem e da loucura como ligadas entre si em um tecido emaranhado, vendo-as como possíveis atos de liberdade. Ele, que por diversas vezes atacou a psicanálise em seu aspecto normatizador, toma-a aqui como possibilitadora de escuta desses discursos, até mesmo das loucuras mudas, que não deixam de passar pela linguagem. Afirma que nosso corpo é um só nó de linguagem; refere-se a Freud como um profundo ouvinte, aquele que compreendeu que nosso corpo era um fazedor de chistes e artesão de metáforas, corpo esse que aproveita todos os recursos da linguagem. Foucault, assim como fez Freud, escuta a loucura na sua linguagem, em que o delírio e a ilusão não são uma falta de significados, mas sim uma saturação deles.

Pois bem, se temos dificuldade em nos comunicar com os loucos, decerto não é porque eles não falam, mas talvez justamente porque falam demais, com uma linguagem sobrecarregada, numa espécie de profusão tropical dos signos, em que todos os caminhos do mundo se confundem. (p. 55)

Assim, para Foucault, a linguagem da loucura assume grande importância - com a morte definitiva de Deus, com o absoluto descrédito nas liberdades políticas, com o encerramento das promessas de felicidade e com o fim do sonho de que poderíamos ser homens não alienados, o que nos restou foi apenas a liberdade dentro das palavras, a liberdade de podermos ser loucos. Portanto, a linguagem literária ocupa os próprios confins da loucura. Para o autor, a linguagem não se aplica às coisas para traduzi-las; ao contrário, as coisas é que são contidas e envoltas na linguagem, como um tesouro afogado e silencioso no tumulto do mar. Foucault, baseado nas obras de Michel Leiris e Jean Tardieu, demonstra que o jogo da linguagem não é muito diferente da experiência que os homens fazem em seus sonhos, daquilo que ora se manifesta, ora se esconde, como as histéricas em suas paralisias, os obsessivos em seus ritos ou os esquizofrênicos perdidos num labirinto verbal.

Na segunda parte do livro, “Linguagem e literatura”, Foucault levanta o enigma do que é literatura. A literatura não é a obra e tampouco é a linguagem. A literatura é um terceiro termo, por onde passa a relação da obra com a linguagem. A literatura é, para Foucault, uma brancura essencial, que somente surge a partir do século XIX com a obra de Mallarmé, que quis a um só tempo repetir e aniquilar todos os livros.

O paradoxo da obra é precisamente isto, que ela só é literatura no exato instante de seu começo, na primeira frase, na página em branco. Decerto, ela só é literatura nesse momento e sobre essa superfície, no ritual prévio que traça para as palavras seu espaço de consagração. E, por conseguinte, assim que essa página branca começa a ser preenchida, assim que as palavras começam a ser transcritas sobre essa superfície ainda virgem, nesse momento, cada palavra é, de algum modo, absolutamente decepcionante em relação à literatura, pois não há nenhuma palavra que pertença por essência, por direito natural, à literatura. (p. 83)

Antes do século XIX, o que havia, segundo o autor, era uma linguagem literária, linguagem essa que ficava entre a linguagem que não dizia nada e a linguagem absoluta e muda da natureza ou da palavra de Deus. Do século XIX em diante, a obra não precisou mais tomar corpo na retórica, tentando reproduzir signos da linguagem absoluta, sendo tal artifício substituído por esse ser de negação e simulacro que é o livro. A literatura começou no dia em que o espaço da retórica foi substituído pelo do livro. Foucault, por fim, lança mão de quatro figuras paradigmáticas para tentar esboçar o que é então literatura: a figura de Sade, em que a literatura toma forma em uma linguagem trans-gressiva; a figura de Chateaubriand, em que a literatura é uma linguagem da morte, no sentido em que a palavra flutua para além da existência do autor; a figura de Proust, em que a literatura é repetição; e a figura de Joyce, em que a literatura é a linguagem circular do próprio livro.

A última parte de A grande estrangeira é a transcrição da conferência sobre Sade realizada na Universidade de Nova York, em março de 1970, em duas sessões. Aqui vemos Foucault tomar a literatura como instrumento privilegiado de seu pensamento; ele analisa a relação entre a verdade e o desejo a partir da obra do marquês de Sade, e também a função fundamental da escrita ao se colocar entre a fantasia e o real - numa inegável inspiração freudiana, o autor aproxima sexualidade e criatividade.

A escrita é o princípio do gozo repetido; a escrita é aquilo que re-goza ou permite refazer. ... em realidade, Sade fornece disso o princípio e a raiz sexual mais radical e mais desavergonhada, vale dizer, a escrita como princípio de recomeço perpétuo do gozo sexual. A escrita vai servir para apagar o limite do tempo, vai permitir apagar o limite do esgotamento, do cansaço, da velhice, da morte. (p. 155)

Foucault se apoiará na obra do marquês A nova Justine, ou Os infortúnios da virtude, escrita em 1791, que narra o destino de duas irmãs, Justine e Juliette. Órfãs separadas, a primeira se recusa a agir de qualquer forma que a leve a se afastar de suas virtudes, enquanto a segunda abraça todo tipo de perversão possível, como infanticidio e assassinato. Justine, a virtuosa, sofre uma série de maus-tratos, morrendo ao final; Juliette, por outro lado, com suas maldades crescentes, desenvolve-se dentro da mesma sociedade hipócrita, conseguindo sobreviver. Sade não buscava fazer uma apologia rasa do vício, com suas infindáveis descrições de perversões, ou, como se poderia pensar, transmitir a ideia de que o vício se sobrepõe à virtude. O que estava em jogo era, sobretudo, um discurso de recusa, discurso esse que, segundo Foucault, trata de quatro elementos: Deus, alma, lei e natureza.

A despeito das afirmações constantes de Sade de que o que ele narra é a mais pura verdade, Foucault aponta a inverossimilhança absoluta do que é contado e se pergunta onde está a verdade. A verdade não está no que Sade conta, mas sim em seu raciocínio, na racionalidade promovida e que sustenta o exercício do desejo. Dentro dessa racionalidade, a escrita assume um papel central. Foucault considera um trecho em que Juliette ensina a uma amiga o último patamar possível da perversão. Ela elabora uma prescrição em que a escrita deixa de ser um mero instrumento da racionalidade para tornar-se um suporte das fantasias individuais. A escrita se inscreverá então entre o devaneio e a realização, não como simples registro do primeiro, mas como ato de multiplicação - ela irá além dos limites da fantasia, conterá em si o princípio do excesso.

A escrita se colocará entre o imaginário e o real, empurrando este para os limites da inexistência. A escrita repelirá o princípio da realidade para o mais longe possível das fronteiras da fantasia, podendo organizar um mundo regido inteiramente pelo princípio do prazer. A escrita se situará entre dois momentos de gozo sexual, desempenhando, dentro da fantasia, o papel de um princípio de repetição. A escrita liberará a repetição em si mesma. Dizer a verdade, para Sade, é colocar o desejo e suas fantasias em uma relação de verdade com o sujeito, relação em que não haveria nenhum princípio de realidade que lhe pudesse dizer não. A escrita faria o sujeito colocar seu desejo na ordem da verdade. A escrita sadiana torna-se, assim, solitária, singular e irregular.

Na segunda sessão dessa conferência, Foucault antecipa o que estará na base de seu livro A ordem do discurso, de 1970, em que todo enunciado denuncia uma lógica de controle, limitação e validação das regras e dos saberes de determinada época. Ele analisará o discurso de Sade em sua forma, na alternância. Em sua obra, Sade não tenta explicar a sexualidade ou qualquer perversão; tampouco o desejo em si é objeto de seu discurso. Para Foucault, Sade posiciona-se a respeito do desenvolvimento de uma racionalidade instrumental. O discurso e o desejo, para Sade, têm o mesmo lugar, encadeiam-se, sem que um se sobreponha ao outro para afirmar sua verdade. Seu discurso diz quatro coisas: diz que Deus não existe, porque ele é contraditório; diz que a alma não existe, pois, se está ligada ao corpo e pode ser invadida pelo desejo, é porque é material; diz que o crime não existe, pois ele está referenciado à lei, e onde não há lei não há crime; diz, por último, que a natureza não existe, ou antes, se existe, é sob o modo de destruição de si mesma. Portanto, o sujeito de Sade não se apoia em nenhum desses fundamentos, tendo uma existência irregular, que não reconhece qualquer impossibilidade.

O discurso filosófico e religioso ocidental sempre tratou de fundar o sujeito sob uma renúncia de parte de si mesmo, um discurso castrador. O discurso de Sade parte dessas quatro afirmações para recusar a própria castração; as quatro teses são, no fundo, tarefas morais a cumprir, com a função de des-castração e diferenciação. No entanto, Foucault nos alerta para não impormos a Sade um modelo de leitura freudiano - o discurso de Sade não tem o papel de dizer a verdade sobre o desejo. Foucault afirma:

Talvez o papel de uma cura psicanalítica, o papel do discurso no campo da psicanálise, não seja o de ordenar um desejo a um mundo de verdade, mas rearticular o desejo e a verdade em suas relações fundamentais. Trata-se talvez, na cura psicanalítica, de restaurar a função desejante da verdade e de restituir a função de verdade ao desejo. Nesse caso, então, não é Freud que deve nos permitir ler Sade, mas Sade que nos deve permitir ler Freud, pois é exatamente isso que Sade fez em seu texto. (p. 197)

O belo perigo é um livro montado a partir da transcrição da primeira de uma série de conversas conduzidas por Claude Bonnefoy, crítico literário da revista Arts, em 1968. No início da entrevista, Bonnefoy pede a Foucault uma certa intimidade; pede que ele não repita ou tente esclarecer o que está em seus livros, mas que se dedique ao que está à margem deles, na trama secreta, no avesso. Quer que ele fale de sua relação afetiva com a escrita. Foucault, já sabedor da posterior publicação, aceita reticente essa empreitada pouco habitual a ele: o trabalho de evocar nele mesmo o “avesso da tapeçaria” (p. 44), sem cair em qualquer tipo de confissão.

Foucault nos oferece aqui uma faceta invisível de sua obra escrita, ao falar de si em primeira pessoa. Ele nos revela toda uma estratégia de seu pensamento, em que a escrita é uma obrigação. Começa a entrevista com o que poderia parecer, à primeira vista, uma simples retomada histórica de sua experiência pessoal, mas se distancia do que seria apenas um memorial, e faz para si o mesmo uso que fez da história em seus trabalhos. Empreende aqui uma autoanálise: utiliza-se de sua história para se interpretar, assim como usa documentos históricos como instrumentos para interpretar o mundo, analisar os processos de mudança cultural e os seus efeitos sobre as ações humanas.

Retoma sua infância, detendo-se nas marcas que lhe foram impressas. O eixo de sustentação dessa obra constrói-se a partir de sua organização edípica e da consequente relação longa e conflituosa com a medicina. Foucault era filho de um médico bastante respeitado em Poitiers. Médico, professor e principalmente cirurgião, esse pai foi tido por biógrafos como um grande provocador, relação tensa que levou à grande resistência de Foucault em seguir a medicina, ainda que a tomando como um dos elementos centrais de seu pensamento, sua obra e sua militância. O conflito aqui é efetivamente descortinado. Foucault associa o seu ofício de escritor ao ofício de seu pai cirurgião: “Imagino que haja em minha caneta uma velha herança do bisturi” (p. 43).

Da mesma forma que Foucault reintroduz o descontínuo no ser humano, rebusca os acontecimentos históricos e faz surgir o que há de profundo e único no humano, a partir dessa arqueologia e genealogia pessoais de sua história com a medicina, ele arma uma estratégia de argumentação sobre seu estilo de escrita e seu método de investigação científica.

Escrever se aproxima do ofício médico ao tentar fazer renascer algo que já está morto; a caneta seria o bisturi e a morte, a afirmação. Portanto, faz-se necessário abrir o corpo, destrinchar a afirmação, dissecar o discurso, e fazer surgir dele a origem patológica daquela condição. Diferentemente dos que consideram sua escrita seca e mordaz, Foucault se refere a ela como uma atividade extremamente suave e discreta. Ele se pergunta:

será que não traço na brancura do papel aqueles mesmos signos agressivos que meu pai traçava no corpo dos outros quando operava? ... Passei da eficácia da cura à ineficácia do livre enunciado; ... a folha de papel talvez seja, para mim, o corpo dos outros. (p. 44)

A escrita, para Foucault, está intimamente ligada à morte. Como um anatomista em sua visceralidade, que faz autópsia num corpo com o bisturi, escrever é ir aonde ninguém quer ir, percorrer os corpos com a caneta, revirar os órgãos com a finalidade de achar o foco da doença, sujar-se com a verdade, com a negatividade de um pensamento que organizou tudo o que esse corpo foi antes. É ir ao fundo das prisões, dos asilos, dos manicômios, trazer à luz a loucura, não para reencontrar a vibração perdida da vida na brancura da morte, mas para encontrar o desdobramento meticuloso da verdade. Escrever, para Foucault, é fazer um diagnóstico, é trazer à tona, pela incisão da escrita, algo que seja a verdade daquilo que está morto.

É justamente essa vitalidade na morte, o funcionamento positivo do negativo, que não parou de inquietar Foucault. A loucura passa a adquirir, então, um aspecto central também nessa conversa - essa doença que não para de pregar peças no verdadeiro médico ao escapar da verdade do corpo, da ciência patológica. Foucault se pergunta como pode acontecer de a loucura ou a doença mental se tornarem criadoras; qual a posição e a função da linguagem louca no próprio interior de uma linguagem regular e normativa. O que está em jogo para o autor não é a relação obra-doença, mas sim a relação exclusão-inclusão, desenhada, por um lado, pela exclusão do indivíduo e de seu comportamento e, por outro, pela inclusão fácil e rápida de sua linguagem. Com base em Raymond Roussel e Antonin Artaud, levanta a hipótese de que há um espaço reservado à linguagem da loucura no universo dos discursos de determinada época. A loucura escreve em aberto, não é tomada pela vontade urgente de esgotar a linguagem, vontade essa fruto do desequilíbrio entre a língua e o discurso.

A língua é aquilo com o que se pode construir um número absolutamente infinito de enunciados. O discurso, ao contrário, por mais longo, por mais difuso que seja, mais ágil, mais atmosférico, mais protoplasmático, mais suspenso em seu porvir que se possa imaginá-lo, é sempre finito, sempre limitado. (p. 65)

Foucault diz que escreve por obrigação, alinhando essa a quaisquer outras obrigações que, por terem existido pela manhã, transfiguram a realidade das coisas, como a fome, o desejo e o sexo. Escreve para escrever, quem sabe, o último livro do mundo, para que no fim nada mais haja para escrever. Talvez Michel Foucault escreva para fugir de um perigo colocado para si mesmo, perigo esse não tão belo: “Escreve-se para não ter mais rosto, para fugir de si mesmo sob a própria escrita” (p. 66).

 

 

Correspondência:
Tiago da Silva Porto
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