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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo out./dez. 2017

 

CRIANÇA

 

Os ataques físicos, em clínica de psicose infantil e de autistas1

 

Physical attacks, in child psychosis and autism clinics

 

Los daños físicos, en la clínica de la psicosis infantil y el autismo

 

Les attaques corporelles, dans la clinique de la psychose infantile et des autismes

 

 

Anne BrunI; Tradução Marilei Jorge

IMestre em psicopatologia e psicologia clínica. Desde 2009, é diretora do Centro de Pesquisa em Psicopatologia e Psicologia Clínica (CRPPC), Instituto de Psicologia, Universidade de Lyon 2

Correspondência

 

 


RESUMO

O sofrimento das crianças psicóticas e autistas não se exprime apenas por palavras, mas também por manifestações físicas, que devem ser decifradas pelos terapeutas. Este artigo questiona as diferentes formas e funções de seus ataques físicos, tanto contra o próprio corpo quanto contra o corpo do outro. Com base na clínica das mediações terapêuticas, que parece especialmente eficaz para atenuar ou acabar com os ataques físicos das crianças, a ideia principal desenvolvida neste artigo é que os ataques físicos correspondem a tentativas de contato das crianças violentas, e que o comportamento violento pode se atenuar graças a certos jogos propostos pelos terapeutas. Portanto, os ataques físicos remeteriam a um jogo ou a jogos que não puderam ser praticados na primeira infância, e cuja natureza a clínica permitirá compreender.

Palavras-chave: arcaico, jogo, mediações terapêuticas, violência


ABSTRACT

The suffering experienced by psychotic and autistic children is not expressed through words but rather through physical actions that must be deciphered by carers. This article investigates the different forms and functions of physical attacks, which are directed against themselves as much as against other people. In support of therapeutic mediation, which appears to be particularly effective in alleviating or stopping physical attacks, it proposes that physical attacks correspond to attempts at physical contact from violent children, and that violent behavior can be eased with the help of games proposed by therapists. Physical attacks can be reflected and observed in a game or games that were unsuitable for enfants, thereby enabling the clinic to understand the nature of these games.

Keywords: archaic, game, therapeutic mediation, violence


RESUMEN

El sufrimiento de los niños psicóticos y autistas no se puede expresar con palabras, sino a través de manifestaciones corporales que deben ser descifradas por los cuidadores. Este artículo examina las diversas formas y funciones de los daños físicos, tanto contra su propio cuerpo como contra el cuerpo de otras personas. En apoyo a las mediaciones terapéuticas clínicas, que se han mostrado particularmente eficaces para reducir o acabar con los daños físicos, la idea principal de este artículo es que los daños físicos corresponden a intentos de establecer el contacto por parte de los niños violentos, y que el comportamiento violento puede disminuir por medio de formas de juego propuestas por los terapeutas. Por lo tanto, los daños físicos representarían un juego o juegos que el niño no pudo jugar en su primera infancia, juegos que la clínica podrá determinar el carácter.

Palabras clave: arcaico, juego, mediaciones terapéuticas, violencia


RÉSUMÉ

La souffrance des enfants psychotiques et autistes ne s'exprime pas avec des mots mais par des manifestations corporelles qui doivent être déchiffrées par les soignants. Cet article interroge les différentes formes et fonctions de leurs attaques corporelles, tant sur leur corps propre qu'à l'encontre du corps d'autrui. A l'appui de la clinique des médiations thérapeutiques, qui apparaît particulièrement efficace pour atténuer ou faire cesser les attaques corporelles des enfants, l'idée principale développée dans cet article sera que les attaques corporelles correspondent à des tentatives de contact des enfants violents, et que le comportement violent peut s'atténuer grâce à des formes de jeu proposés par les thérapeutes. Les attaques du corps renverraient donc à un jeu ou des jeux qui n'ont pas pu se jouer dans la prime enfance, jeux dont la clinique permettra de saisir la nature.

Mots-clés: archaïque, jeu, médiations thérapeutiques, violence


 

 

Os constantes ataques físicos entre crianças psicóticas e autistas fazem os terapeutas passar por momentos difíceis. Com frequência ouvimos queixas de que esses ataques tornam impossível começar uma psicoterapia de grupo para essas crianças, violentas com os outros e com elas mesmas. Minha intenção é demonstrar, ao contrário, que o trabalho terapêutico se efetuará, precisamente, a partir da tomada de consciência desses ataques físicos contra o outro ou contra o próprio corpo, com a hipótese de que eles contêm mensagens que devem ser decifradas e compartilhadas com os terapeutas, para fazer que esse comportamento de ataques físicos evolua.

Portanto, proponho demonstrar como esses ataques físicos, que parecem atrapalhar consideravelmente o trabalho terapêutico, têm paradoxalmente uma função simbolizante, caso os terapeutas consigam dotá-los de significação, sentido que passa, em parte, por formas de linguagem mimo-gesto-postural e, na psicoterapia psicanalítica, pelo desdobramento em uma associatividade afetivo-corporal.

A ideia principal desenvolvida neste artigo é que os ataques físicos correspondem a tentativas de contato das crianças violentas e que o comportamento violento pode se atenuar graças a certos jogos propostos pelos terapeutas. Os ataques físicos remeteriam, assim, a um jogo ou a jogos que não puderam ser jogados na primeira infância, e cuja natureza a clínica permitirá compreender.

Em minha experiência, a clínica das mediações terapêuticas (pintura, modelagem ou mediações físicas) parece especialmente eficaz para atenuar ou acabar com os ataques físicos das crianças. Vamos, então, examinar essa clínica para tentar entender os processos que levam a uma possível transformação de tais ataques. Esta reflexão se inscreve na perspectiva desenvolvida por Roussillon (2008), com a proposta do modelo do jogo como modelo do trabalho psicanalítico, a partir da clínica adulta dos sofrimentos narcísico-identitários, que resultam das condições históricas que tenham obstruído a aptidão para o jogo.

 

Diferentes formas e funções dos ataques físicos

Com o intuito de identificar as diferentes formas e funções dos ataques físicos na clínica de crianças psicóticas e autistas, seguiremos, como fio condutor, o modo de tratar as crianças violentas que utiliza uma mediação pictural, grupal ou individual.

Uma criança violenta num grupo com mediação pictural

Joaquim nos foi apresentado como uma criança muito violenta, em uma psicose simbiótica, inseparável de sua mãe. Nós vamos cuidar dele num grupo com mediação pictural, num centro médico psicológico, sob o cuidado de três terapeutas, uma enfermeira, um psicólogo e eu mesma, na função de observadora-escritora: o observador-escritor não participa da dimensão sensório-motora do grupo, mas pode atender a certas interações específicas com as crianças ou intervir em off, sem todavia abandonar sua função de escritor.

No primeiro encontro, tão logo a porta se fecha, essa criança de 6 anos berra, debate-se, bate, principalmente na enfermeira, mas também em tudo que está a seu alcance. Arranca as folhas coladas na parede, e os terapeutas são obrigados a agarrá-lo, por diversas vezes, para impedi-lo de bater nas outras crianças. Assim que não é mais segurado por um adulto, estende-se no chão, ao lado da porta, atira-se violentamente no chão ou recomeça a bater. Se lhe dão uma folha para pintar, ele a rasga e tenta rasgar todas as folhas coladas na parede.

No segundo encontro, a entrada no ateliê é tão violenta quanto a primeira, e isso se torna progressivamente inviável, insuportável, pois ele não para de bater no terapeuta e na enfermeira, que o impedem de bater nas outras crianças. Ele berra sem cessar e tenta derrubar a porta. Então, o terapeuta tem a ideia de recolar na parede a folha que ele arrancou, enquanto fala de seu receio de que a mãe desapareça da sala de espera e de que tudo seja quebrado e rasgado no ateliê. De meu posto de observadora-escritora, também falo com ele de seu medo de que nós possamos nos tornar tão maus como ele diz, de seu terror de que nós o encarceremos ou batamos nele. A criança rasga novamente a folha, o terapeuta a recola tranquilamente, e começa uma alternância entre a criança que a arranca e o terapeuta que recola as tiras. Nos encontros seguintes, cria-se uma espécie de ritmo entre a criança e o psicólogo: Joaquim arranca cada vez mais suavemente a folha e espera que o terapeuta a tenha recolado para rasgá-la novamente.

Contudo, com frequência, ele se deixa cair, às vezes batendo com a cabeça no chão, ou em certos momentos desliza literalmente ao lado da parede e tenta sair, sempre com um pânico aterrador. Os terapeutas se esgotam em estratégias de organização espacial para controlá-lo. Mesmo em meu lugar, não envolvida na ação, sou impedida de pensar, dominada pelo receio de que ele se machuque ou machuque os outros, preocupada pela sobrevivência do grupo, e me pergunto se não seria preferível deixá-lo sair e desistir.

Nas discussões, no fim do encontro, tentamos primeiro dar um sentido aos atos destrutivos da criança. Resistimos bem ou mal ao que nos incomoda, diante da ideia de que essa situação extrema busca representar alguma coisa de aterrador e reatualiza um pedaço de sua história, que não pôde ser inscrito psiquicamente e do qual a criança não se apropriou.

Os ataques físicos como formas de defesa paradoxais

As manifestações físicas destrutivas exprimem de fato, geralmente, terrores extremos da criança, que não podem ser representados e que devem ser decifrados pelos clínicos. O fato de Joaquim atirar-se no chão quando é solto pelos terapeutas que o seguram indica precisamente seu terror de que o deixem cair, de ser solto e jogado no vazio, terror que se manifesta também de outra forma, quando ele escorrega, todo mole, até o chão, o que indica um terror de desmoronamento, talvez de liquefação. Em todo caso, essas vivências de cair, de escorregar, materializadas aqui pelo desmoronamento físico de Joaquim, surgem quando um dos terapeutas deixa de segurá-lo. Observamos ainda que esses desmoronamentos ocorriam quando ele cessava seus gestos de violência. Pode-se levantar a hipótese de que uma das funções desses repetidos ataques físicos consiste em se prender, de certa forma, à motricidade e aos movimentos de ataque, que têm uma função de autopreservação e de reorganização de um sujeito confrontado com um forte terror de fragmentação.

Os ataques físicos de Joaquim não visam apenas aos outros, mas também a ele mesmo. Como compreender que ele chegue a ponto de se ferir, batendo a cabeça no chão? Esses ataques físicos correspondem a formas de defesa paradoxais, descritas por Roussillon (1991) a partir de Winnicott. A criança encena e inflige a si mesma seus terrores, em vez de sofrê-los passivamente. É uma técnica de sobrevivência. Joaquim expressa um terror enorme de que terapeutas que ele não conhece o soltem, o deixem cair. Assim, ele prefere se infligir essas experiências traumáticas a sofrê-las por parte dos terapeutas potencialmente perseguidores.

Os ataques físicos como tentativa de autofiguração de vivências originais catastróficas

Outra questão é saber por que a única linguagem possível é uma linguagem corporal. Essas vivências primitivas de desmoronamento, até mesmo de liquefação, remetem a agonias primitivas experimentadas antes do surgimento da linguagem verbal, numa época em que a linguagem verbal não está em condições de dar forma a essas experiências subjetivas. Tais agonias primitivas não podem, portanto, ser lembradas; não foram ainda vivenciadas; estão articuladas aos estados do corpo e às sensações. Essas experiências, logicamente, tendem a voltar sob uma forma tão arcaica quanto a própria experiência: na linguagem da época, a dos bebês e das crianças bem pequenas, uma linguagem corporal e uma linguagem do ato (Roussillon, 2010).

Os ataques ao próprio corpo constituem, assim, uma modalidade de autofiguração da relação primeira com os objetos - para Joaquim, sem dúvida, vivências de desvinculação catastrófica.

Em direção à encenação das vivências agonísticas

Mas como compreender, segundo essa perspectiva, o deslocamento dos ataques para o corpo dos outros? É possível levantar a hipótese de que eles correspondem a uma encenação, no corpo do outro, das próprias vivências agonísticas, para poder se desprender delas e representá-las para si. Esse processo está em ação em outros tipos de clínica adulta, como a da criminalidade (Garnier & Brun, 2016).

Joaquim manifesta também uma angústia típica da psicose simbiótica, a de ser violentamente penetrado em seu interior (Haag, 1985), que ele faz os terapeutas vivenciar por identificação projetiva, e angústias claustrofóbicas: ele é o porta-sintoma da angústia grupal de estar trancado no ventre materno do grupo, do qual é impossível sair.

Quando lhe falo de seu medo de que possamos nos tornar tão maus quanto ele nos diz, de seu terror de que nós o tranquemos ou batamos nele, indico outra fonte possível dos ataques físicos, um processo de identificação com o agressor, numa tentativa de projeção externa dos objetos internos perseguidores. Essa interpretação feita para a criança é destinada a transformar os ataques físicos em roteirização da fantasia perseguidora do ataque ou, dizendo de outra forma, a transformar a angústia em figuração cênica (Aulagnier, 1986) do terror, para poder encená-lo e partilhá-lo.

 

Respostas dos terapeutas aos ataques físicos

A teatralizaçâo e os afinamentos moderadores

Nesse contexto, os terapeutas põem em ação diferentes respostas aos ataques físicos da criança: quando Joaquim bate violentamente na porta ou na parede, eles dizem num tom bem-disposto: "Toc, toc. Quem está aí?" buscando uma afinação moderadora (Stern, 1985/1989), transpondo o gesto em som, com uma diminuição de intensidade, mostrando à criança que seu apelo é entendido. Por outro lado, tentam introduzir uma função reflexiva, teatralizando a raiva de Joaquim, pelas mímicas e pela voz, como os pais podem teatralizar a raiva do bebê. Por exemplo, os terapeutas exclamam da seguinte maneira, não somente se dirigindo à criança, mas ao grupo de crianças, as quais em especial precisam que tudo ganhe sentido: "Você está com muita raiva, Joaquim. Realmente você tem vontade de explodir essa porta. Você está furioso porque o tiramos de sua mamãe". É essa teatralização dos terapeutas que faz a criança tomar consciência de seu impacto no ambiente e lhe permite, ao mesmo tempo, perceber que não são os terapeutas que estão com raiva ou encolerizados, mas ela mesma. Os terapeutas traduzem para a criança os afetos que, até então, ela só podia sentir fisicamente. De modo geral, o exagero mimético do comportamento da criança pelo terapeuta permite a ela tomar consciência de sua emoção, sentir-se sentida, como confirmam pesquisas recentes sobre a interação primária do bebê com seu ambiente, nas neurociências do desenvolvimento. Gergely, Koofs e Watson (1999) demonstram que é o exagero da expressão da emoção do bebê, na imitação dos pais, que permite ao bebê perceber que, de fato, é seu próprio afeto que lhe é enviado de volta pelos pais. O bebê será tão mais ativo e vinculado a seu ambiente quanto mais ele se sentir capaz de modificar o outro e se sentir agente do desenvolvimento da cena.

Fazer eco das sensorialidades e retomada da virtualidade das mensagens

No decorrer dos encontros aparece um processo importante: os ataques físicos começam a diminuir, quando são transpostos por intermédio da pintura e das folhas-suporte. Essa transposição, porém, só é possível porque ela corresponde a uma resposta sensório-motora do terapeuta, que recola calmamente as folhas arrancadas. É uma intervenção em linguagem sensório-motora, acompanhada da teatralização dos afetos. Joaquim entra, pouco a pouco, numa relação a dois/em duplo, exclusiva com o terapeuta: relação em espelho.

Nesse processo, a análise das vivências contratransferenciais dos terapeutas desempenha um papel essencial em suas respostas aos ataques físicos das crianças.

A enfermeira se queixa, ao final da primeira sessão, de sofrer a violência de Joaquim sem ajuda suficiente do terapeuta. No quarto encontro, o psicólogo fica nervoso e diz que basta, que não suporta mais agredir tanto essa criança, que não contem mais com ele. Nas entrelinhas, surge a ideia de que a observadora-escritora tem um papel privilegiado, escrevendo o que se passa, sem intervir, pensamento subjacente que eu mesma formulo.

Nenhuma agressividade aparece em relação à criança, mas fortes movimentos intertransferenciais. Sensíveis à violência da separação que constitui a entrada no ateliê, para a criança e para a mãe, decidimos deixar a porta aberta, com a mãe visível no corredor, ela também sofrendo muito. Um dos pontos de partida do processo terapêutico, de modo geral, em situações-limite, é a co-criação de uma organização fora do comum do dispositivo. Decidimos ainda renunciar ao tratamento ou adiá-lo se a criança continuasse tão violenta. Posteriormente, compreendemos que havia uma aliança inconsciente (Kaës, 2009) entre nós: era preferível excluir a criança, se preciso fosse, a correr o risco de violência entre os terapeutas.

Durante algumas sessões, o psicólogo deixa a folha de pintura no chão, na entrada do ateliê, e Joaquim, antes no corredor, colado à mãe, entra pouco a pouco num jogo com o psicólogo: ele anda sobre a folha, o psicólogo finge avançar e Joaquim se afasta rapidamente, introduzindo um jogo do tipo tente me pegar que eu fujo. Joaquim aceita, aos poucos, que o terapeuta desenhe o contorno de seus pés na folha, e depois o de suas mãos. A criança começa, em seguida, a pintar no chão, depois na parede, ao lado da porta. Finalmente, mãe e criança aceitam que fechemos a porta, e ela permanece fechada.

Dois elementos parecem essenciais nesse processo que levou a criança a entrar no grupo e a interromper os ataques físicos. O primeiro é a afinação dos terapeutas e a teatralização de modo lúdico de certos comportamentos agressivos da criança. Quando Joaquim, por exemplo, empurrava as outras crianças para pegar a tinta mais rápido, o terapeuta gritando "Rápido, rápido" imitava, de modo exagerado, com grandes gestos, mas como em câmera lenta, o movimento dela em direção aos vidros de tinta. A princípio, a criança fica surpresa. Depois, com o tempo, entra no jogo com o terapeuta. Outro exemplo: quando Joaquim gritava "Eu, eu, eu" mostrando todas as pinturas do ateliê, afastando vigorosamente as outras crianças, o terapeuta teatralizava gritando "Eu, eu, eu" quando a atenção se voltava para as pinturas de Joaquim, e um comportamento inicialmente agressivo se transpunha, pouco a pouco, em jogo, na interação entre Joaquim, as outras crianças e os terapeutas.

De modo geral, a dinâmica mimo-gesto-postural entre crianças e terapeutas restitui a coreografia inicial entre a mãe e o filho, descrita por Stern, através de afinações, em especial com transposições sensoriais de um modo de expressão em outra modalidade sensorial - por exemplo, entre os registros cinestésico, sonoro, visual, mimo-gesto-postural.

A clínica da primeira idade demonstra que é o fazer eco ao bebê por seus familiares, o que Stern chama de afinações do ambiente, que permite a ele ter acesso às primeiras formas de simbolização, a partir de um compartilhamento de sensações corporais. Essa coreografia primeira, o ajustamento dos gestos, das mímicas e das posturas entre a criança e o objeto primário, constitui a base sobre a qual se estabelece a possibilidade de uma afinação emocional. Na clínica dos bebês, as sensorialidades primitivas tornam-se mensagens, vinculadas à resposta do ambiente. Uma sensorialidade que é repetida em eco pelo ambiente fornece formas primárias de simbolização; sem isso, ela degenera e perde sua virtualidade simbolizante. Os ataques físicos representariam, então, um processo que degenerou e não permitiu a transformação das sensações em emoções, ou seja, impediu o afeto de se compor.

Transposição dos ataques para o meio: função da cade¡a associativa formal

O segundo elemento central do processo é o deslocamento das vivências de separação para as folhas de pintura, que são rasgadas por Joaquim: trata-se aí de infligir à folha seu próprio terror de ser dilacerado, violentamente invadido, em um processo de reversão passiva/ativa. A reversão passiva/ativa constitui geralmente a primeira forma de simbolização para uma criança psicótica, um primeiro controle sobre experiências agonísticas (Brun, 2007/2010).

Os ataques físicos cessaram, vinculados ao fato de Joaquim poder transpor suas agonias primitivas por meio da pintura. Após a primeira fase de ataque e de dilaceração das folhas, ele se obstinou a diluir com água os traços de tinta que ele fazia sobre a folha, até o apagamento completo e, às vezes, a perfuração da folha deformada pela água. Ainda nesse caso temos uma primeira forma de retomada interna de terrores primitivos, como o terror de ser apagado, de desaparecimento ou de dissolução, ou mesmo de desmoronamento, à imagem do que a criança faz com a folha. Joaquim transforma-se, por assim dizer, em espelho com a folha de pintura, uma folha/pele, furada ou perfurada ou arrancada; um eu/pintura que se liquefaz, que desaparece ou que é aspirado por um buraco; uma forma que se apaga; ou ainda um apoio que desmorona.

São, ao mesmo tempo, o corpo da criança e a folha de pintura, em uma não diferenciação, que vão se deformar, se destruir, virar pedaços ou se diluir. Mas os ataques físicos, dessa vez, são deslocados para o objeto mediador, e essas vivências sensório-afetivo-motoras vão tomar forma através do trabalho do meio. As sensações que, na realidade, são dadas pela materialidade do meio vão reatualizar sensações alucinadas, em vínculo com experiências primitivas aterrorizantes. O papel representado pela alucinação é essencial nesse processo.

Aqui estão algumas representações. Quanto aos envelopes psíquicos: uma pele comum é arrancada; se arranca, é arrancada; ego/folha/pele esburacada, arrancada; um buraco aspira; um apoio desmorona. Quanto aos estados de base da matéria: magma de matéria, um corpo se liquefaz, se liquefaz sem parar; deforma-se e destrói-se. Quanto à forma: irreversibilida-de e destruição; dispersa-se; dilui-se e apaga-se; desaparece, dissolve-se, vai embora e não retorna.

Reconhecem-se aí significantes formais descritos por Anzieu (1987): são configurações do corpo atormentado por uma transformação que se impõe sob a forma de uma vivência alucinatória. Luta-se pela sobrevivência psíquica. Anzieu insiste no fato de que o significante formal não é uma fantasia, mas uma impressão física, uma sensação de movimento e de transformação, que não supõe nenhuma distinção entre o sujeito e o espaço exterior, e que é sentida pelo sujeito como estranha a ele. Os significantes formais são constituídos de imagens proprioceptivas, táteis, cenestésicas, cinestésicas, posturais de equilíbrio. É precisamente porque não são fantasias que os significantes formais têm uma formulação sem sujeito humano. A forma é sentida como estranha, com uma ação se desenrolando num espaço bidimensional, sem espectador. Seria possível acrescentar que eles se caracterizam por uma indissociabilidade entre corpo, psique e mundo, ou entre espaço corporal, espaço psíquico e espaço exterior, como os pictogramas de Aulagnier (1975), dos quais eles constituem uma primeira simbolização.

Eu propus (Brun, 2014) a hipótese de uma cadeia associativa formal, essencialmente constituída de significantes formais, agindo no âmbito das mediações terapêuticas, que permite descobrir o encadeamento das formas, não somente nas produções, mas também no conjunto da linguagem sensório-motora das crianças confrontadas com a mediação. Os significantes formais evoluem ao longo dos encontros, e sua exploração permite perceber avanços do processo terapêutico.

Assim, depois de 15 meses de grupo, Joaquim desenha chaves e portas, que ele recorta e cola na parede, com uma dobradiça para abrir e fechar. Ele brinca de esconder coisas, como a tesoura, atrás de sua porta de papel, que ele abre e fecha com risos. Não é mais a figura de um significante formal de pele arrancada, mas de uma porta que se abre e se fecha, aparece, desaparece e reaparece, dobra-se e desdobra-se; são as primeiras representações das inter-relações não destrutivas com o outro, que são acompanhadas de um jogo de esconder/achar com os terapeutas. O dentro e o fora são constituídos; os ataques físicos acabaram.

De modo geral, mostra-se impossível encontrar um quadro sintético de dados para uma avaliação clínica do emprego da associatividade formal em um dispositivo de mediação pictural, referente à psicologia psicanalítica.2

Emprego de formas de destruído/criado3

Para tornar ainda mais precisa a natureza dos jogos que não se pôde jogar, é imperativo destacar a importância de instaurar na clínica das mediações terapêuticas (Brun, Chouvier & Roussillon, 2012) um processo de destruído/criado, que permite à criança emergir do registro da pura destrutividade.

Uma sequência de mediação pictural individual,4 com uma criança que, no âmbito institucional, tinha realmente tentado, de certa forma, matar sua referente com violentos ataques físicos repetidos, permitirá pôr em evidência o nascimento de um jogo compartilhado, no lugar e em nome da destruição do objeto.

Pierre, criança de 9 anos que sofre de uma psicose simbiótica com defesas autistas, é tratado em um hospital-dia, no enquadre de uma mediação pictural individual com dois clínicos. Essa criança tinha sido colocada repentinamente, com 5 meses, em uma família substituta. Ele tinha, até então, um comportamento calmo, com um rosto pouco expressivo e um ar robotizado, mas depois de um ano de tratamento num hospital-dia torna-se, pouco a pouco, violento em relação a sua referente, especialmente investida.

No enquadre de seu ateliê terapêutico com mediação, os primeiros jogos instaurados são jogos de espelho, em duplo com os terapeutas, no contexto de um prazer compartilhado e de transposições sensoriais. Nesse ambiente, Pierre representa em sua folha de pintura um rosto e o arranha com as mãos. Sua referente, sentada diante dele, exclama então: "Ai!". Pierre ri. Ele arranha novamente a folha olhando a cuidadora e depois acaricia com suavidade o rosto desenhado, para apagar os arranhões. O jogo se repete, a criança entra em uma grande excitação, ri, se alegra. Na sessão seguinte, Pierre cai na risada assim que vê a referente. Ele pinta um novo rosto olhando-a, o arranha, o rasura. Ela solta outra vez um grito e Pierre, sem perdê-la de vista, encobre o rosto, passando a mão sobre a pintura. Em seguida, tem início com a segunda cuidadora, uma estagiária de psicologia, um jogo de aparecer e desaparecer dos rostos sobre a folha, e os rostos representados, progressivamente, não foram mais apagados.

No decorrer dessas sequências, eles passam de: eu a mato e a destruo na realidade, para: eu a destruo em minha representação, em minha fantasia, mas você continua viva na realidade. A alegria da criança provém do fato de que ela pode destruir o rosto na folha sem o destruir na realidade, tendo acesso assim à dimensão da fantasia inconsciente descrita por Winnicott. "Ei, objeto, eu te destruí. Eu te amo. Você tem valor para mim porque você sobrevive à minha destruição. Já que eu te amo, eu te destruo o tempo todo em minha fantasia (inconsciente)." Isso é ainda mais importante uma vez que Pierre perdeu inesperadamente o rosto da mãe aos 5 meses, com a ida para a nova família. Tudo se passou, portanto, como se, em resposta à destrutividade original da criança, o rosto da mãe tivesse efetivamente desaparecido na realidade, e a distância entre fantasia e realidade não tivesse podido se instaurar.

Assim, o jogo com a cuidadora permite reatualizar o ataque ao objeto primordial, transpondo-a na mediação. Nada teria acontecido, porém, se a cuidadora não tivesse se mostrado atenta e, em seguida, compartilhasse o prazer da criança em tocá-la, em arranhá-la, em esbofeteá-la, sem todavia alcançá-la na realidade.

Não é raro que crianças saindo do autismo ataquem os rostos, os arranhem, retomando aí as atitudes do bebê de 6 meses com a mãe. Haag (2000) mostrou a importância da teatralização pela mãe no primeiro ano de vida do bebê, para transformar em jogo a violência pulsional, cuja ação seria destrutiva. Ela também sublinhou a que ponto essa transformação do agir destrutivo pela teatralização estava enfraquecida, ou mesmo inexistente, na psicose simbiótica e no autismo. Ela insiste na necessidade do trabalho de transformação desdramatizante das projeções do jogo da violência pulsional primitiva (como o jogo do leão) no decorrer do que ela chama de mimodrama interpretativo.

De fato, geralmente é quando o vínculo com o objeto começa a se recuperar que os ataques físicos aos terapeutas mais investidos no tratamento começam e desestabilizam esses terapeutas, que têm a impressão de um fracasso do tratamento, pois a criança parece repentinamente tornar-se violenta, exatamente na hora em que ela parecia quebrar sua carapaça: o desencadeamento da violência é geralmente devido a um degelo acompanhado de uma excitação que transborda, causada pelo encontro com o objeto.

 

Autoataques físicos: abertura para as automutilações na clínica dos autistas

Para terminar esta exploração dos ataques físicos na psicopatologia da criança, algumas observações sobre as automutilações no campo dos autismos. Sabe-se que as autoestimulações físicas e sensoriais características dos estereótipos podem levar a automutilações - da boca, do olho, enfiando o dedo no olho. Desde Meltzer (1975/1984), compreendem-se esses autoataques físicos destruidores como um recurso prioritário contra a excitação e a angústia, especialmente nos estados pós-autísticos. Na maioria das vezes, evoca-se uma defesa contra as excitações resultantes do reconhecimento da exterioridade do objeto. Trata-se, de certa maneira, de anular o objeto. Descreve-se ainda a perpetuação pelo autista de uma continuidade sensorial para manter a sensação de existir, de modo ritmado.

Todas essas teorizações são incontestavelmente pertinentes, mas elas remetem, em geral, a uma perspectiva solipsista, sem pensar o que esses ataques também podem contar sobre o vínculo primordial com o objeto. De fato, o risco principal ao qual nos expomos com a teorização do autismo consiste em produzir teorias autísticas infiltradas pela clínica, ou seja, teorias que enfatizariam a sensorialidade, a autossensualidade, mesmo que ligada à dor, em detrimento do papel essencial representado pelo objeto. Portanto, trata-se de evitar o que Donnet e Roussillon chamam de risco de penetração atuada de uma teoria pela clínica que ela explica. Os estereótipos dos ataques repetidos contra o próprio corpo poderiam ter sentido, contar um fragmento de história do vínculo com o objeto?

Jacques, criança de 7 anos, em atendimento num hospital-dia, saiu de uma fase de autismo grave após um ano de tratamento, e foi então que ele começou a bater a própria cabeça nas paredes até se ferir.

A descoberta da parede, por assim dizer, surgiu no final de um estado de autismo grave, mas ao mesmo tempo ela anulava qualquer descoberta do objeto. Golse (2013) demonstrou de que maneira os estereótipos monossensoriais, como as batidas, ao mesmo tempo traduzem uma aceitação mínima da existência desse objeto e anulam imediatamente a aceitação de sua exterioridade, pois entrar em contato com um objeto por uma só modalidade sensorial impede basicamente que se entenda esse objeto como exterior a si mesmo.

Sabe-se que os autistas não parecem sentir dor, mas é possível questionar se a dor física não permitiria que Jacques começasse a se sentir vivo. Por outro lado, o ataque dessa criança autista ao próprio corpo punha em cena o encontro com o objeto duro, e poderia também corresponder à tentativa de fazer com que uma sensação contínua da presença do objeto entrasse nele, um objeto-muro, é claro, mas que remete à ideia do não eu, de um limite sensível para o corpo da criança. Isso poderia corresponder ao que Tustin (1984/1985) chama de sensação-objeto autística. Seria possível, portanto, compreender o fato de bater a própria cabeça contra a parede como um estereótipo próximo desses procedimentos autocalmantes.

Todavia, no sentido contrário desse tipo de teorização clássica do valor autocalmante do autoataque repetido, uma teoria solipsista, diante de Jacques tentamos pensar as repetidas batidas de cabeça em vínculo com o objeto, compreendendo o ato como uma tentativa de narrar sua vivência do encontro com o objeto, narração gestual no centro do que poderia surgir como um estereótipo privado de sentido, bater infinitamente a cabeça na parede. Quando ele bate a cabeça na parede com violência, não está de certa forma tentando fazer seu buraco num objeto duro, sem proteção, sem possibilidade de refúgio, sem espaço de acolhida? Foi com essa hipótese que os terapeutas propuseram, então, jogos de eco rítmicos com a criança, colocando-se a seu lado e depois fingindo interpor-se entre a parede e a criança, o que ao longo do tempo tornou-se um jogo compartilhado, e a criança pôde, pouco a pouco, encontrar refúgio no seio dos terapeutas.

Para concluir, diante de comportamentos destrutivos das crianças, trata-se de retomar a gama de jogos primitivos no processo terapêutico, e de passar assim do registro físico violento ao dos afetos compartilhados. O enquadre das mediações terapêuticas é particularmente propício a esse recomeço, permitido pela mediação e pelas interações sensório-afetivo-motoras com os terapeutas.

A palavra final caberá a Tom, criança de 8 anos, no registro de uma psicose simbiótica. No enquadre de um tratamento individual com mediação pictural, após dois anos, ele toma impulso para ir bater, com todas as suas forças, com o pincel, em uma folha presa à parede. Ele faz manchas multicoloridas, que escorrem, e repete, gritando para o seu terapeuta: "Estou com raiva! Isto explode! Cale-se! Você me atrapalha!" Cada vez que esse terapeuta vai buscá-lo para ir ao ateliê terapêutico de pintura, ele lhe repete: "Eu te amo... Vou bater na folha".

 

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Correspondência:
Anne Brun
5 avenue Pierre Mendès-France
CP 11 - 69676 Bron Cedex
Tel.: 04 78 77 24 90
annebrunlyon@orange.fr

Recebido em 19.11.2017
Aceito em 21.11.2017

 

 

Revisão técnica Silvia Zornig
1 Trabalho original publicado em 2015: Revue Belge de Psychanalyse, 66,95-109.
2 Sobre esse ponto, que não pode ser tratado no âmbito deste artigo, cf. Brun (2014).
3 Conceito proposto por Roussillon (1991) a partir de uma discussão da conceitualização de Winnicott.
4 Trata-se aqui de um enquadre de supervisão no interior de um hospital-dia.

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