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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2017

 

CRIANÇA

 

Relações dos fenômenos transicionais e do brincar em Winnicott com a semiótica de Peirce1

 

Relations between transitional phenomena and playing in Winnicott's work, and Peirce's semiotics

 

Relaciones de los fenómenos transicionales y del jugar en Winnicott con la semiótica de Peirce

 

Les rapports entre les phénomènes transitionnels et le jeu chez Winnicott et la sémiotique de Peirce

 

 

Paulo Duarte Guimarães Filho

Membro efetivo, analista didata e analista de crianças da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Inicialmente, refere-se a como relações entre a filosofia de Peirce e a psicanálise têm sido estudadas por filósofos e psicanalistas. As concepções de Donald Winnicott a respeito dos objetos transicionais, dos fenômenos transicionais e do brincar são destacadas como de interesse particular para o estudo dessas relações, devido a sua ligação com a filosofia de Peirce. Em razão disso, examina-se como a semiótica de Peirce tem elementos que auxiliam no entendimento de questões levantadas por Winnicott acerca do que ele chama de simbolização, principalmente através da discriminação de aspectos semióticos presentes nos objetos transicio-nais, nos fenômenos transicionais e no brincar, ampliando desse modo algumas dimensões do significado dessas concepções winnicottianas. Essas questões são examinadas nos casos clínicos de Edmund e Diana, de Winnicott, e também em duas outras situações clínicas.

Palavras-chave: Peirce, semiótica, Winnicott, objetos transicionais, fenômenos transicionais, brincar, simbolização


ABSTRACT

The paper starts with a reference to the way relations between Peirce's philosophy and psychoanalysis have been studied by both philosophers and psychoanalysts. When it comes to the study of these relations, Donald Winnicott's conceptions about transitional objects, transitional phenomena, and playing are of special interest because of their connection with Peirce's philosophy. The author studies how elements of Peirce's semiotics may improve the understanding of Winnicott's ideas, especially about his notion of symbolization. The author's examination is particularly through the discrimination of aspects of semiotics, which may be found in transitional objects, transitional phenomena, and the act of playing. Besides, this study provides, therefore, some extended dimensions of the meaning of these Winnicott's conceptions. This paper deeply investigates these issues in Winnicott's clinical cases of Edmund and Diana, besides two other clinical situations.

Keywords: Peirce, semiotic, Winnicott, transitional objects, transitional phenomena, playing, symbolization


RESUMEN

Inicialmente se hace una referencia de cómo las relaciones entre la filosofía de Peirce y el psicoanálisis han sido estudiadas por los filósofos y psicoanalistas. Las concepciones de Donald Winnicott sobre los objetos transicionales, los fenómenos transicionales y el jugar se destacan como de interés particular para el estudio de esas relaciones, debido a sus conexiones con la filosofía de Peirce. Por eso, se examina cómo la semiótica de Peirce tiene elementos que ayudan en la comprensión de asuntos abordados por Winnicott sobre lo que él llama simbolización, principalmente a través de la discriminación de aspectos semióticos presentes en los objetos transicionales, en los fenómenos transicionales y en el jugar, ampliando de esa forma algunas dimensiones del significado de esas concepciones de Winnicott. Esos asuntos son examinados en los casos clínicos de Edmund y Diana, de Winnicott, y también en otras dos situaciones clínicas.

Palabras clave: Peirce, semiótica, Winnicott, objetos transicionales, fenómenos transicionales, jugar, simbolización


RÉSUMÉ

D'abord on observe comment les rapports entre la philosophie de Peirce et la psychanalyse sont-ils étudiés par les philosophes et les psychanalystes. Les conceptions de Donald Winnicott concernant les objets transitionnels, les phénomènes transitionnels et le jeu sont mises en relief et vues comme ayant un intérêt particulier pour l'étude de ces rapports, étant donné leurs liaisons avec la philosophie de Peirce. C'est pourquoi, on examine comment la sémiotique de Peirce a des éléments qui aident à comprendre les questions posées par Winnicott concernant ce qu'il appelle symbolisation, au moyen surtout de la discrimination d'aspects sémiotiques présents dans les objets transitionnels, dans les phénomènes transitionnels et dans le jeu, tout en élargissant ainsi certaines dimensions de signifié des conceptions de Winnicott que nous venons de mentionner. Ces questions sont largement examinées dans les cas cliniques d'Edmund et de Diana, de Winnicott, et encore dans deux autres situations cliniques.

Mots-clés: Peirce, sémiotique, Winnicott, objets transitionnels, phénomènes transitionnels, jeu, symbolisation


 

 

As diferentes formas de representação de nossas experiências emocionais têm sido um dos principais alvos dos estudos psicanalíticos. Algumas dessas formas de representação, como a linguagem e o que corresponde ao termo menos preciso simbolismo, operam em áreas mais amplas da experiência humana, sendo objeto de investigação em diferentes disciplinas. Uma das contribuições mais reconhecidas e significativas, de interesse especial para a psicanálise, é a do filósofo norte-americano Charles Peirce, principalmente de sua semiótica. Há vários trabalhos que mostram o interesse nas possibilidades de relação entre a psicanálise e a filosofia de Peirce, realizados tanto por filósofos (Colapietro, 1989, 1995, 2006, 2008; Ver Eeke, 2000) como por psicanalistas (Fischbein, 2011; Muller, 1996, 2006; Salomonsson, 2007; Scarfone, 2013; Steiner, 2007). Em relação a esses estudos, tem sido muito limitado o exame da articulação das concepções de Peirce com as de Winnicott (Fulgencio, 2011), apesar da existência de algumas ligações importantes entre elas, o que será alvo de nossa atenção aqui.

As inter-relações referidas podem ser encontradas por meio do próprio Winnicott - por exemplo, pelo interesse que ele demonstrou acerca das ligações entre seus conhecidos objetos transicionais e o tema mais amplo e universal do simbolismo. Esse tópico chegou a ser o título de parte de um capítulo importante que Winnicott (1971/1975b) escreveu sobre os objetos transicionais. Igualmente, não é difícil perceber, em relação aos fenômenos transicionais de um modo amplo, entre eles mais especificamente o brincar, que Winnicott também está voltado para o nível de universalidade dessas manifestações. Embora ele aborde o assunto de um modo descritivo, é possível distinguir que o que foi formulado tem articulações importantes com a dimensão filosófica da questão. Reconhecer essas proximidades pode facilitar o entendimento das semelhanças e complementações entre as concepções de Winnicott e de Peirce, no caso dos objetos e fenômenos transicionais.

 

Objetos e fenômenos transicionais

Em Winnicott (1971/1975b), a base do que foi apontado antes é a noção de objeto transicional, uma de suas maiores contribuições para a psicanálise. Esses objetos são manifestações relativamente simples, que tendem a se dar no início da vida e cuja relevância para o desenvolvimento mental Winnicott foi capaz de apreender, certamente com o auxílio de sua condição de pediatra-psicanalista. Ele pôde, então, ir verificando as relações entre ocorrências que se davam no desenvolvimento precoce, como chupar o dedo ou a chupeta, e ligações muito especiais que passavam a existir depois com certos objetos, os quais ele chamou de objetos transicionais. Eles são bem conhecidos e têm diferentes tipos, como um pedacinho de pano ou um ursinho. Há uma ligação muito peculiar da criança com tais objetos: ela precisa da companhia deles em determinadas ocasiões, como ao sair de casa ou ir dormir.

Não vamos entrar em detalhes das características que Winnicott foi encontrando na relação com os objetos transicionais, mas sublinhar algo que o autor apreendeu sobre eles, ponto em que se encontram proximidades bem Relações dos fenômenos transicionais e do brincar em Winnicott com a semiótica de Peirce nítidas com a filosofia de Peirce. Esse paralelo se associa ao fato de que os objetos transicionais funcionam com uma qualidade de representação concreta, de algo com grande importância emocional para a criancinha. Será visto adiante que, nesse ponto, a proximidade com Peirce se dá na medida em que ele, em sua filosofia, diferenciou como fazem parte dos processos cognitivos modalidades de representação dos objetos, por meio de signos diretamente ligados a eles, os quais chamou de ícones e índices, tendo portanto um paralelo marcante com os objetos e fenômenos transicionais de Winnicott. A grande relevância do estabelecimento dessa representação-presença para o desenvolvimento psíquico foi distinguida por Winnicott, ao observar os prejuízos nesse desenvolvimento em casos em que não foi feito uso do objeto transicional.

Apesar da existência do aspecto comum entre as representações objetos transicionais de Winnicott e as representações signos icônicos e indiciais de Peirce, essas são concepções desenvolvidas e que operam em níveis diferentes, o psicológico em Winnicott e o filosófico em Peirce, de modo que se torna necessário examinar em que medida os aspectos mais gerais das ideias de Peirce, por sua natureza filosófica, poderiam contribuir para o elaborado por Winnicott. Antes de chegar a esse exame, será necessário dar algumas informações básicas sobre o pensamento de Peirce.

 

Alguns elementos da filosofia de Peirce

O propósito aqui não é apresentar ampla e sistematicamente a filosofia de Peirce, mas falar sobre alguns de seus aspectos básicos, que em nossa experiência têm sido úteis para pensar sobre diferentes questões na área psicanalítica. Já foi referido o papel central das contribuições de Peirce para a constituição da significação dos fenômenos que fazem parte de nossas experiências. Um ponto básico é que, segundo ele, só há três modalidades de relação cognitiva com os fenômenos - ele distinguiu três formas básicas, ou categorias, por meio das quais se dão essas relações, chamando-as de primeiridade, segundidade e terceiridade (Peirce, 1958). Embora seja uma terminologia peculiar, não é difícil acompanhar o seu sentido. Primeiridade refere-se ao contato primeiro que temos com as experiências, impressionados pelas qualidades sensíveis delas. Alguns autores (Ibri, 1992) falam de presentidade e de imersão na atualidade da experiência, prescindindo-se de outros aspectos. Ao mesmo tempo, esse primeiro não existe isoladamente, sem o caráter de segundo e de alteridade dos fenômenos, de objetos diferentes do observador, o que Peirce designou como segundidade. Em razão disso, ele destacou a etimologia da palavra latina obiectum: "aquele que objeta, que se opõe ao observador".

Podemos pensar num exemplo bem simples e concreto dessas noções: alguém que esteja tendo um primeiro contato com uma flor - digamos, uma rosa. O contato imediato seria com suas qualidades sensíveis: forma, tamanho, cor, cheiro, textura etc. Além disso, a pessoa poderia pegar a rosa, sentir seu peso, sua corporeidade, seu caráter de ser outro em relação ao observador. De acordo com Peirce (1958), essas duas categorias estariam sempre presentes em nossos contatos imediatos com os fenômenos. Se esses contatos deixam de ser imediatos, passamos a ter relação com a continuidade deles, havendo necessidade de uma reunião do que vai se dando nessa sucessão, de um terceiro que reúna os aspectos de primeiridade e segundidade que vão se sucedendo, o que Peirce chamou de terceiridade. No exemplo da rosa, o contato deixaria de ser imediato - a observação de que a rosa nascia num arbusto, tinha diferentes fases de crescimento, chegava a um ponto em que tendia a ter uma beleza especial, daí sendo usada para decorações etc. Através dessas observações, a pessoa referida iria se dando conta, como indicou Peirce, de comportamentos ou hábitos da rosa, hábitos esses que constituem aquilo que uma rosa é e levam à formação da concepção da rosa. Há aí, portanto, o contato com a continuidade no tempo de aspectos da primeiridade e da segundidade, correspondendo ao que Peirce denominou terceiridade.

Acabamos de ver os modos pelos quais há o estabelecimento de relações com os objetos para eles irem sendo conhecidos, o que Peirce chamou de semiose. Os outros dois elementos do tripé concebido por ele como constitutivo dos processos semióticos são o signo e o interpretante, ambos de grande importância para as inter-relações com a psicanálise. No caso dos fenômenos transicionais de Winnicott, já foi apontado o quanto eles se aproximam particularmente das concepções de Peirce sobre os signos. De acordo com o filósofo, as diferentes modalidades de experienciar os fenômenos - primeiridade, segundidade e terceiridade - têm signos que lhes correspondem, conforme suas relações com os objetos. No caso da primeiridade, os signos que a representam foram designados por Peirce como ícones, sendo caracterizados pela semelhança com seus objetos. Evidentemente sem usar a terminologia de Peirce, Winnicott está voltado para algo nessa direção quando observa que os fenômenos transicionais têm a ver com as experiências anteriores do bebê, de chupar o dedo ou a chupeta. Estes são bons exemplos de signos icônicos do seio, isto é, representam o seio pela semelhança com ele.

Quanto à segundidade, o caráter de ser outro dos fenômenos, ela pode aparecer através de diferentes facetas deles, constituindo os signos chamados de índices por Peirce. Continuando a usar noções de Winnicott para exemplificar as ideias de Peirce - no caso, sobre os índices -, é possível acompanhar como o bebê vai tendo contato com distintos aspectos da mãe, seu semblante, sua fala, seu odor, sua pele etc., que podem ser considerados índices dela. Esse Relações dos fenômenos transicionais e do brincar em Winnicott com a semiótica de Peirce exemplo ajuda a acrescentar que no dedo e na chupeta predominam aspectos icônicos do seio, enquanto no objeto transicional há uma relação mais global com a figura materna, ou com o seio, e que tais objetos são índices, os quais representam o todo das figuras por meio de uma de suas partes. No caso de um cobertor, a parte-índice, correspondente à sensação tátil, constitui o signo-objeto.

Estamos usando o objeto transicional apenas como exemplo de um índice, mas já é possível adiantar que Winnicott distinguiu como esses aspectos indiciais permitiam o sentimento de posse de um objeto valioso, fazendo parte do que ele chamou de não eu. A importância e o papel desses aspectos são mostrados por Winnicott quando ele dá exemplos em que não houve a constituição do objeto transicional e, associado a isso, não era possível a separação concreta da mãe. Com isso, pode ser expressa, nos termos semióticos peircianos, uma das noções fundamentais e extraordinariamente esclarecedoras de Winnicott: o valor da experiência de um signo que em parte é signo, em parte é objeto, para que depois se desenvolva um processo mais amplo do uso de signos na constituição das significações.

Tal processo se refere à terceiridade, e os signos correspondentes a ela, de acordo com Peirce, são os símbolos. Diferentemente dos ícones e dos índices, o símbolo é um signo que não tem ligação direta com seus objetos, representando-os através de uma mediação, um terceiro elemento; no exemplo visto, a palavra rosa, expressão de sua concepção, é um símbolo desta.

 

Os fenômenos transicionais e o simbolismo

Nesta altura, já existem elementos que permitem chegar a um entendimento mais claro de como Peirce pode contribuir com Winnicott na área em estudo. De certo modo, o próprio Winnicott formulou essa questão no que ele escreveu na seção intitulada "Relação do objeto transicional com o simbolismo", em capítulo do seu conhecido O brincar e a realidade (1971/1975b). Logo veremos o que ele diz sobre isso, mas antes deve ser salientado que, por meio dos objetos transicionais, Winnicott estava tratando de modos de constituição da significação das experiências num nível psicológico, dando-se conta, porém, de que essa constituição também tinha uma dimensão mais geral. Deu indicações a esse respeito ao dizer que havia algo que precisava ser mais amplamente conhecido sobre o que chamou de simbolismo, para que existisse um melhor entendimento dos fenômenos transicionais. O que está em exame neste trabalho é como, com outra terminologia, não apenas do estudo do simbolismo, mas dos signos em geral, a filosofia de Peirce, em especial sua semiótica, contém algo do conhecimento mais amplo sobre o que Winnicott chamou de simbolismo. Havendo o reconhecimento desses pontos, será possível seguir a recomendação de Winnicott e verificar em que medida a discriminação feita na filosofia de Peirce sobre diferentes tipos de signo pode contribuir para o entendimento dos objetos e fenômenos transicionais.

Para seguir na direção dessa investigação, vejamos algo que Winnicott diz em "Relação do objeto transicional com o simbolismo":

É verdade que a ponta do cobertor (ou o que quer que seja) é simbólica de algum objeto parcial, tal como o seio. No entanto, o importante não é tanto seu valor simbólico, mas sua realidade. O fato de ele não ser o seio (ou a mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou a mãe).

Quando o simbolismo é empregado, o bebê já está claramente distinguindo entre fantasia e fato, entre objetos internos e objetos externos, entre criatividade primária e percepção. Mas o termo objeto transicional, segundo minha sugestão, abre campo ao processo de tornar-se capaz de aceitar diferença e similaridade. Creio que há uso para um termo que designe a raiz do simbolismo no tempo, um termo que descreva a jornada do bebê desde o puramente subjetivo até a objetividade, e parece-me que o objeto transicional (ponta do cobertor etc.) é o que percebemos dessa jornada de progresso no sentido da experimentação.

Seria possível compreender o objeto transicional, embora sem compreender plenamente a natureza do simbolismo. Parece que o simbolismo só pode ser corretamente estudado no processo do crescimento de um indivíduo, e que possui, na melhor das hipóteses, um significado variável. (1971/1975b, p. 19)

Prestando atenção no primeiro parágrafo dessa citação, será possível considerar a relação dela com elementos da semiótica de Peirce, capazes de identificar e nomear aspectos dos objetos transicionais que Winnicott reconheceu, mas que a noção mais geral de simbolismo de que dispunha não era suficiente para formular adequadamente. Winnicott afirma, nessa citação, que seria correto dizer que um pedaço de cobertor é simbólico de um objeto parcial, como o seio, mas que a questão não é seu valor simbólico, e sim sua realidade. Ou seja, ele reconhece o papel do objeto transicional como representante do objeto, tendo essa característica do símbolo convencional; ao mesmo tempo, porém, ele tem uma característica que não faz parte da noção convencional de símbolo, a saber, a de ter algo da realidade do objeto.

Não será difícil pensar que há uma saída para essa limitação conceitual se forem usados os termos vistos antes na semiótica de Peirce. Falaríamos então de signos, de dois deles mais diretamente, os ícones e os índices, pois representam seus objetos devido a uma ligação direta com eles. Podemos voltar ao que já foi dito dando exemplos de como aspectos dos signos icônicos e indiciais estão presentes nos objetos transicionais. Tomando a chupeta como Relações dos fenômenos transicionais e do brincar em Winnicott com a semiótica de Peirce exemplo desses objetos, vimos que ela funciona como signo icônico do seio, isto é, representa-o pela semelhança, ao mesmo tempo tendo algo de concreto do objeto; desse modo, é simultaneamente um signo que representa e que tem uma realidade como objeto. De maneira similar, a peça de cobertor, como objeto transicional, é um signo indicial que representa o objeto materno através de uma de suas partes - no caso, o contato tátil com o corpo materno -, sendo também um signo que representa e que tem algo da realidade do objeto.

O que acabou de ser apresentado permite ver, de um modo mais claro, uma das formas de contribuição da filosofia de Peirce em relação aos objetos transicionais. Isso se dá na medida em que essa filosofia, particularmente sua semiótica, torna possível uma identificação mais precisa de características dos signos presentes nos objetos transicionais e que operam no plano mais específico do desenvolvimento psicológico. Outra consequência muito relevante do que acabou de ser considerado é que, se os objetos transicionais têm um grau de concordância tão grande com o que se está vendo da semiótica de Peirce, essa compatibilidade implica um respaldo no plano filosófico, de enorme valor epistemológico, para as formulações de Winnicott e, de um modo mais amplo, para essa área de concepções na psicanálise.

Neste ponto, deve ser referido que uma das principais riquezas da filosofia de Peirce é que ela não se limita a identificar, como visto, a natureza de diferentes tipos de signo, mas igualmente os processos por meio dos quais eles levam à constituição das significações, o que o autor chamou de semiose. Já fizemos uma referência nesse sentido e demos um exemplo de como seria um processo semiótico - a apreensão de como é uma rosa. Sem usar o termo semiose, Winnicott de certa forma trata dessa questão, principalmente ao levantar a indagação, já apontada, acerca das relações dos objetos transicionais com o simbolismo.

Um modo no qual o autor inglês formula essa questão pode ser visto no segundo e no terceiro parágrafo da citação apresentada. Ali, de maneira bem ampla, Winnicott aponta para o papel do objeto transicional como uma raiz do simbolismo: "Creio que há uso para um termo que designe a raiz do simbolismo no tempo, um termo que descreva a jornada do bebê desde o puramente subjetivo até a objetividade". Ele logo esclarece que essa raiz é o objeto transicional. Já foi apontado o valor extraordinário dessa descoberta no nível psicológico: o objeto transicional é um representante e ao mesmo tempo tem algo do objeto, com isso contribuindo para que depois possa haver o uso de signos, o simbolismo de Winnicott, na efetiva representação dos objetos, sem que estes estejam presentes. Vimos como o instrumental conceitual peirciano pode trazer acréscimos ao que faria parte dessa "raiz do simbolismo-objeto transicional", referida por Winnicott, ao esclarecer que os aspectos icônicos e indiciais desse objeto participam da criação das significações. Esses acréscimos talvez sejam mais importantes ainda em relação a algo de que Winnicott trata, a saber, a possibilidade ou não de que chegue a haver um uso de signos para uma representação mais ampla do objeto, o que ele denomina simbolismo. Winnicott reconhece e aborda a existência desse processamento dos signos para criar as significações, mas não explicita a dinâmica dessa semiose, do modo que foi feito por Peirce. Dada a relevância dessa questão, tentaremos facilitar seu entendimento e a apreensão da riqueza de suas implicações através do uso de uma situação apresentada por Winnicott e outra apresentada por Freud, o bastante conhecido jogo do carretel de seu neto.

O caso de Winnicott (1971/1975a): Edmund é uma criança de 2 anos e meio, que se caracteriza por não aceitar substitutos para a mãe, isto é, que não usou objetos transicionais de modo a ir fazendo a substituição. Durante a entrevista, ele se entretém com alguns brinquedos, o que é entremeado com idas para o colo da mãe. A certa altura, Edmund se interessa por uma corda que há entre os brinquedos e passa a usá-la como se fosse um fio ligado por uma tomada à coxa da mãe. A corda aí é usada como um meio concreto de manter uma ligação com a mãe.

É bem útil comparar e ver a diferença que essa corda tem com o cordão usado no jogo do carretel do neto de Freud (1920/1955). Nesse caso, o carretel é puxado pelo cordão, em movimentos de afastamento e de retorno para junto da criança, acompanhados do fort e da, do vai e volta. Diferentemente do papel restrito da corda de Edmund, é um exemplo bastante expressivo de um fenômeno transicional, de acordo com Winnicott, mas também serve para a visualização muito mais discriminada de um importante processo semiótico, na linha de Peirce, pois aqui é bem claro como o cordão e o carretel funcionam como signos icônicos e indiciais de um desaparecimento e reaparecimento, no caso da mãe, mas já articulados com os signos simbólicos linguísticos, fort e da, vai e volta. Eles representam a ida e a vinda da mãe, podendo ser usados sem que o objeto esteja presente.

 

Os fenômenos transicionais e o brincar

O que acabou de ser considerado no brincar do neto de Freud é bastante ilustrativo de como a discriminação dos elementos sígnicos de Peirce permite identificar a forma com que eles participam numa situação semelhante à do jogo do carretel, levando à possibilidade de representação do objeto separado e ao que é mais amplamente designado como simbolização na psicanálise. Está em consideração neste trabalho o modo pelo qual esse tipo de discriminação pode contribuir para o esclarecimento daquilo que foi um alvo especial do interesse de Winnicott: as relações dos objetos transicionais com o simbolismo Relações dos fenômenos transicionais e do brincar em Winnicott com a semiótica de Peirce e com o brincar. Seguindo o que foi dito por ele, acreditamos que um dos aspectos mais significativos presentes nessas relações primordiais com o objeto transicional, e que se transpõe para o brincar, é a criatividade, a possibilidade da criação de um objeto, ao mesmo tempo capaz de representar e de ser algo valioso em si mesmo. Isso se associa ao desenvolvimento de outro aspecto destacado por Winnicott, o da confiança no próprio self e nos objetos, sendo esses fatores essenciais para a existência de uma disposição para o viver. Winnicott também distinguiu como própria da transicionalidade a possibilidade de compartilhamento presente no brincar, que vai ter um papel igualmente destacado na participação das manifestações culturais.

Algo que parece fazer parte dessa importância do brincar e que tem a ver com os pontos destacados por Winnicott, mas que não está incluído diretamente em suas formulações, é o que Green (2005) apontou sobre o papel do brincar como forma de pensamento e que, nos termos de Peirce, poderia ser indicado como seu papel semiótico, na expressão das experiências emocionais e na maneira de lidar com elas. A presença desses elementos no que foi considerado no jogo do carretel é um exemplo bem claro o modo pelo qual isso se dá. Assim, a partir deste ponto, passaremos a apresentar algumas situações clínicas, considerando como o uso das noções de Peirce sobre os signos e a semiose pode contribuir para o entendimento de aspectos de manifestações lúdicas. Começaremos com o caso Diana, usado por Winnicott (1971/1975a) para ilustrar suas ideias sobre a importância do brincar. A seguir, veremos dois outros materiais clínicos: Beto, apresentado por Alessandra Gordon, e G, apresentado por Roberta Abreu Sodré, em seminários que coordenamos na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Diana

Diana tem 5 anos. O atendimento não foi diretamente de Diana, mas da mãe dela, em razão de dificuldades com outro filho, com deficiência mental e um problema cardíaco. Winnicott captou que não havia propriamente um motivo para Diana ser levada à consulta e que a mãe o fizera buscando ter na filha um apoio. Ele também se deu conta do envolvimento da criança com a situação, quando ela mostrou que estava com a atenção dividida entre o brincar que passara a desenvolver durante a consulta e a conversa dele com a mãe. Isso ocorreu, por exemplo, num momento em que Diana deixou o brinquedo e se referiu ao "buraco" que o irmão tinha no coração, quando a doença dele apareceu na conversa dos dois adultos. Uma participação semelhante se deu num momento de choro da mãe, ocasião em que Diana deixou novamente o brinquedo e se mostrou apreensiva. Nessa oportunidade, Winnicott procurou apaziguá-la dizendo que a mãe estava chorando por causa da doença do irmão. Além desses dados, há também os de uma segunda entrevista, sem a presença de Diana, em que a mãe deu outra informação importante em relação ao que veio a aparecer no brincar da criança: a de que o pai estimulava a filha a se mostrar crescida, revelando agrado especial quando isso acontecia.

Os dados que acabamos de ver são das situações emocionalmente bastante intensas que estavam sendo vividas por Diana. Cabe examinar como tais situações se relacionavam com o seu brincar e o que nesse brincar lhe daria um papel tão significativo para Winnicott, a ponto de ser escolhido para ilustrar a importância do brincar no livro O brincar e a realidade. Acreditamos que a questão fundamental à qual Winnicott se refere é a de que o brincar tende a funcionar como um meio de expressão e uma tentativa de lidar com situações que causam uma grande mobilização emocional. Não vamos repetir toda a descrição de Winnicott do encontro com Diana e daquilo com que ela passou a brincar, mas apenas lembrar um dos momentos mais significativos desse brincar, em que ela pôs os bichinhos sob sua roupa, simulou uma gravidez e depois teve dois bebês para cuidar. Essa manifestação, com a informação de que o pai estimulava a filha a mostrar-se crescida, parece ser o que levou Winnicott a pensar que haveria um esforço em buscar um desenvolvimento prematuro do ego de Diana e uma identificação dela com a mãe, com participação nos problemas relacionados com a doença do irmão.

Vamos agora examinar como elementos da semiótica de Peirce podem dar alguns esclarecimentos adicionais sobre as manifestações de Diana. É bastante relevante a esse respeito que o papel tão significativo do brincar tenha a ver com o fato de que, nele, há uma passagem de algo que se dá apenas no plano de um sentir para a possibilidade de sua representação. No caso de Diana, destacaram-se no seu brincar a representação da gravidez com os bichinhos e o nascimento dos bebês, que poderiam estar exprimindo algo do modo com que era atingida e reagia a mobilizações emocionais de seus pais, especialmente aquelas decorrentes do que se passava com o irmão doente. As ferramentas conceituais de Peirce permitem pensar que Diana estava recebendo comunicações que se davam num nível de primeiridade e de segundidade e reagindo a elas - as manifestações de angústia e desorganização da mãe diante do filho doente, sua busca de ajuda com Winnicott, levando Diana como apoio, o choro durante a consulta etc. Através do que aparece no brincar, pode ser depreendido que também participa dessa trama emocional a atitude elogiosa do pai diante de sinais de competência da filha. Ao que parece, são fundamentalmente esses elementos que levam à conclusão mais importante de Winnicott sobre esse brincar, já vista antes, quando ele diz que haveria um esforço em buscar um desenvolvimento prematuro do ego de Diana e uma identificação dela com a mãe, com participação nos problemas relacionados com a doença do irmão. É para essa passagem de uma constelação de elementos emocionais para sua figuração num determinado brincar que, como já mencionado, a semiótica de Peirce oferece uma noção de grande riqueza. Essa noção diz respeito aos signos que funcionam como tais devido à semelhança com seus objetos, os ícones - no caso de Diana, a representação da gravidez e do cuidado dos filhos, o que pode exprimir sua mobilização diante da situação vivida.

Há uma parte do relato em que temos um exemplo precioso de como a noção de semiose, de Peirce, ajuda no entendimento de facetas de uma situação clínica. Isso aparece no momento em que Diana procura participar da conversa da mãe, dizendo que o irmão tem um buraco no coração. Winnicott faz um sutil comentário a respeito de como a criança podia dizer algo sobre essa doença, mas não sobre a deficiência mental do irmão. Esse comentário nos leva a pensar que não é somente sobre a deficiência mental do irmão que Diana não podia dizer algo, mas também sobre toda a situação emocional em que estava envolvida, devido a essa doença - doença sobre a qual, como vimos amplamente antes, não era capaz de falar, mas era capaz de brincar.

Podemos nos indagar a respeito do porquê dessa diferença e de como as noções peircianas abordadas antes nos ajudam a discriminar o que estaria se passando no poder brincar e no não poder falar. Vamos começar pela manifestação mais explícita de Diana: o fato de ela poder falar sobre o buraco no coração do irmão. É uma situação carregada emocionalmente, da qual a criança, como vimos, recebe manifestações de primeiridade e de segundidade, transmitidas pelos pais ou provenientes de seu próprio contato com o irmão. Esses elementos também estão presentes na figura icônico-indicial de um coração com um buraco. No caso da doença do coração, essas modalidades de experiência, com seus signos correspondentes, podem participar de um processo semiótico pleno, nos termos de Peirce, quando são completadas pela articulação desses elementos, o que vai constituir a terceiridade, através de um signo simbólico - a fala de Diana dizendo que o irmão tem um buraco no coração.

A outra situação vivida por Diana, sobre a qual ela podia brincar, mas não podia falar, é aquela que envolve as intensas mobilizações emocionais dos pais, com seus reflexos diretos sobre a criança. O que os elementos da filosofia de Peirce permitem entender com mais clareza é como essas mobilizações intensas, existindo primordialmente num nível de primeiridade e de segundidade, não vão levar a um processo mais amplo de ganho de significação, com características de terceiridade, nos termos de Peirce, mas sim a ações reativas dos pais, especialmente sobre Diana, como visto. Também examinamos os aspectos do brincar da criança mobilizados por essas constelações emocionais, que só podem se dar por meio de elementos sígnicos icônico-indiciais, e não pelos simbólicos.

Beto

A situação clínica de Beto será particularmente valiosa para vermos como a semiótica peirciana fornece elementos conceituais que auxiliam no reconhecimento da natureza de uma forma muito peculiar de ataque ao pensar. Isso ocorre em momentos iniciais da análise, em que mobilizações sígnicas em níveis de primeiridade e de segundidade tentam torpedear possibilidades de terceiridade.

Beto, com 8 anos, tem as seguintes características, referidas pela analista: "Gosta de irritar os outros, bate nos amigos com frequência e tem dificuldades em aceitar os limites em casa e na escola". Ele tem uma irmã seis anos mais velha e um meio-irmão perto dos 20, do primeiro casamento do pai. Outras informações: quando a mãe se deu conta de que estava grávida dele, no segundo mês, os pais estavam separados, voltando a viver juntos em razão disso; no início da gravidez, ainda sem saber dela, a mãe fez plástica de mama e de abdômen; a mãe tinha sido uma pessoa muito envolvida com sua vida profissional de executiva, tendo disponibilidade limitada para os filhos; Beto havia feito tratamento fonoaudiológico e psicoterapêutico durante dois anos, que interrompera por não gostar da psicóloga. A seguir, transcrevemos dois fragmentos em que a analista descreve o brincar de Beto, um deles correspondendo ao início do atendimento e o outro a um período que veio logo depois. Essas manifestações do brincar do paciente é que serão alvo dos nossos comentários.

Primeiro fragmento:

No início do atendimento, Beto vivia em um mundo de muitas lutas, com robôs, monstros etc. Ele vinha para as sessões e encenava as lutas ou desenhava os personagens. Pouco suportava que eu falasse algo: "Já vem você com esse papinho de fono... ". Assim, eu ia brincando e me fazendo presente através do brincar. Percebia que ele saía mais calmo do que quando havia entrado.

Segundo fragmento:

Depois dessa fase, passamos por um período de treino, em que eu era um técnico conhecido, o Muricy Ramalho, treinando o jogador goleiro Beto. Fazíamos parte de um time com outros jogadores, tínhamos alguém, o Arnesto, que nos ajudava a arrumar as coisas do "clube" (a sala). E assim Beto foi conseguindo me ajudar a guardar os brinquedos. O Arnesto também era alguém com quem o treinador conversava em voz alta, já que Beto não gostava de conversa. E, no final dos treinos, tínhamos um jogo.

O brincar de Beto ocorre numa situação psicanalítica, diferentemente do que se deu com Diana. Apesar dessa diferença, não é difícil perceber como o brincar descrito no início do atendimento - "num mundo de lutas, Relações dos fenômenos transicionais e do brincar em Winnicott com a semiótica de Peirce com robôs, monstros etc." - tem a ver com os dados da vida emocional do paciente, que "gosta de irritar os outros, bate nos amigos com frequência". É muito significativa nesse contexto outra característica do funcionamento de Beto, quando ele não aceita que a analista fale: "Já vem você com esse papinho de fono...". É possível pensar que temos aí um brincar bastante associado com o que se mostra com maior carga emocional na vida do paciente, que é sua agressividade. A trama de acontecimentos da vida do paciente, possivelmente relacionada com esse brincar, não está tão próxima como no caso de Diana. Levando em conta os elementos que foram relatados e aqueles que apareceram no segundo fragmento do material transcrito, podemos conjecturar: em suas experiências precoces, teria Beto se defrontado com objetos sentidos como hostis - por exemplo, frustrações com uma mãe pouco disponível, uma irmã bem maior, temida ou invejada -, diante dos quais desenvolveu a agressividade como um modo privilegiado de reação?

Não vamos seguir a análise do paciente, caso em que poderíamos encontrar elementos que reforçassem ou não essas conjecturas. Não é esse o nosso foco no momento. Quanto ao nosso objetivo, que é pensar em contribuições na linha da semiótica de Peirce para a abordagem clínica, há um elemento precioso na atitude de Beto de não permitir que a analista fale, ridicularizando-a com a expressão "Já vem você com esse papinho de fono." Cabe lembrar aqui que houve um atendimento prévio por uma fonoaudióloga. Sem ter usado esses termos, vimos que a primeiridade e a segundidade de experiências pelas quais Beto provavelmente passou tanto o levaram a uma atitude frequente de violência diante dos outros como, na análise, a escolher brincadeiras de luta, com robôs e monstros. Não é difícil reconhecer essas figuras que predominaram na fase inicial da análise como signos icônico-indiciais, representativos das constelações de embates emocionais em que a criança se sentia envolvida. Temos sinais de que a exaltação desses elementos de primeiridade-segundidade foi correlata da destituição de valor de elementos de terceiridade, o que apareceu com clareza no menosprezo de Beto ao "papinho de fono" e no fato de não deixar a analista falar. É interessante comparar isso com o que foi visto no caso de Diana. Com ela, também existia uma dimensão de experiências, no nível de primeiridade-segundidade, que podia levar ao brincar, mas não ao falar. Não havia, no entanto, um conflito claro em relação ao operar em nível de terceiridade, com as características que aparecem em Beto. As ferramentas da filosofia de Peirce com que estamos contando não só permitem uma melhor visualização da existência e das razões do conflito como trazem um auxílio muito especial para o seguimento da evolução que ocorre em relação a esse conflito. Isso aparece no segundo fragmento mencionado, quando há mudanças radicais no quadro e o paciente se mostra interessado em ter a orientação do técnico de futebol.

Antes de chegar a esse ponto, será útil voltar ao fragmento que relata o momento inicial da análise: o paciente precisava encenar as lutas e, de certa forma, dominar a analista, não a deixando falar, mas ela observava que algo ia se dando, pois Beto saía das sessões "mais calmo do que quando havia entrado". Podemos pensar então que, ao lado da primeiridade-segundidade referente aos embates, há indicações de que o paciente também captava as qualidades e os índices de um objeto que mostrava disponibilidade e não reagia com violência ou distanciamento. Podemos supor que tudo isso tenha contribuído para o aparecimento e a expressão pelo paciente, através do técnico de futebol, de suas necessidades de um objeto adulto que o ajudasse em seu desenvolvimento. Havia aí não mais o interesse pela violência, mas o de fazer parte de um time de futebol, de ter parceiros com quem pudesse conviver e colaborar, até mesmo na competição futebolística. É extremamente interessante o surgimento do Arnesto, que ajudava na arrumação da sala e também aceitava falar com a analista. Na figura dele está contida a personificação de um funcionamento em nível de terceiridade, por meio do qual podia arrumar não só a sala como também o sentido de suas experiências, para isso passando a aceitar o uso da fala-palavras (símbolos, de Peirce). Por outro lado, nesse contexto, aconteceu o fato instigante, mas não surpreendente, de que Beto continuasse sem gostar de falar e de que precisasse se desdobrar no Arnesto para que isso ocorresse. Afinal, no mundo de Beto, ele aprendeu a viver com um predomínio de elementos de primeiridade-segundidade; passar para um universo em que também foi sendo incluída a terceiridade foi uma mudança extraordinária, com novidades desconhecidas e trabalhosas que, no momento, também precisavam de um novo continente, o Arnesto.

No exposto até aqui, evidenciamos como as ferramentas conceituais de Peirce permitiram a discriminação de elementos que participaram de um tipo de conflito em relação à capacidade de pensar e que talvez não tenha sido, até agora, reconhecido dessa forma na literatura psicanalítica. Nesse sentido, foram discriminadas determinadas experiências de Beto, em nível de primeiridade e de segundidade, com seus respectivos signos icônicos e indiciais (os robôs e as lutas nas sessões), funcionando em oposição à terceiridade da fala da analista, com seus respectivos signos simbólicos ("Já vem você com esse papinho de fono..."). Será possível considerar algumas implicações a que o uso dessas ferramentas pode conduzir se for lembrado outro tipo de ataque ao pensamento, estudado por Bion (1967) em pacientes psicóticos e que teve um papel de grande relevo no desenvolvimento de suas ideias. De fato, esse foi um dos dados que levou Bion a conceber a função alfa, que não está em operação nos psicóticos, não havendo assim a produção de elementos alfa, mas o prevalecimento de elementos beta, que de acordo com Bion não podem ser usados para pensar e aprender com a experiência.

Um ponto de interesse sobre o que estamos examinando nas inter-relações com Peirce é que Bion considerou a fUnção alfa uma formulação não plenamente definida, portanto aberta a novas investigações e esclarecimentos. Não é o caso de discutir essa questão no momento, mas pensar que, no caso de Beto, parecia existir outro tipo de conflito com o pensar, como referido antes, que foi possível identificar e formular a partir da discriminação, naquelas situações clínicas, de elementos da semiótica peirciana. O verificado aí não se restringiu ao reconhecimento do conflito: permitiu também distinguir os desdobramentos que ocorreram, no sentido da semiose de Peirce, quando Beto passou a se interessar em ter um técnico de futebol e a usar a fala como meio de comunicação com a analista, ficando claro o ganho de prestígio dos modos de operar no nível da terceiridade de Peirce, com os signos simbólicos correspondentes. Assim, o que acabamos de considerar tem um valor especial como exemplo de possibilidades de abertura de áreas de investigação, voltadas para as inter-relações entre elementos semióticos desenvolvidos no interior da psicanálise e aqueles que fazem parte da teoria de Peirce sobre os signos, tudo isso provavelmente em conformidade com a indicação de Bion da função alfa como uma área aberta de investigação.

G

Neste caso, também temos uma situação em que o entendimento da natureza das mudanças que foram se dando no brincar de uma criança, a qual vivia em condições muito adversas, pode ser auxiliado pelo uso de instrumentos semióticos de Peirce. Poderemos, então, seguir a mudança de um brincar com predomínio de elementos de primeiridade e de segundidade, e os correspondentes signos icônico-indiciais, para outros tipos, com presença muito maior de aspectos de terceiridade e os correspondentes símbolos. Assim, teremos uma aplicação da semiose de Peirce no nível clínico, acompanhando como, nesse caso, os signos operam na constituição das significações.

A paciente, chamada G, é uma criança entre 5 e 6 anos, que fora abrigada havia dois anos e que tinha outros nove ou dez irmãos também abrigados, três ou quatro deles no mesmo abrigo de G. Segundo o assistente social, as crianças estavam abrigadas porque "a mãe era uma prostituta e o pai bêbado e desempregado", tendo perdido o pátrio poder sobre os filhos. A seguir, examinamos quatro manifestações do brincar de G e as circunstâncias em que ocorreram. Por meio delas, teremos outras informações sobre as condições de vida dessa criança.

O primeiro momento do brincar que será referido, sem examiná-lo de maneira mais ampla, ocorreu na fase inicial do contato da analista com G, e consistiu principalmente na repetição de um jogo de memória, chamado de mico, em que havia figuras iguais para serem unidas, perdendo quem tirasse o mico. A analista comenta como esse jogo serviu para uma aproximação gradativa com G, que foi interrompida devido a uma espécie de acidente. No abrigo em que G era atendida, havia também outras crianças. Em determinado dia, uma delas se aproximou de G e da analista, dando indicações de desejá-la como terapeuta. Sem entrar em detalhes de como isso se desdobrou, o importante é dizer que provocou uma intensa reação de G, que durante semanas não aceitou mais entrar nas sessões. A analista se deu conta da sensibilidade de G a mais essa ameaça de perda e da importância de continuar se mostrando disponível. Assim, permanecia na sala de espera com G, dizendo que ficaria ali até quando a paciente quisesse voltar para as sessões. Isso só aconteceu depois de muito tempo, com a ajuda de um educador do abrigo com quem G tinha um bom relacionamento. A criança aceitou ir para as sessões com esse educador, mas inicialmente só fazia jogos com ele, não deixando que a analista participasse.

Depois desse período, quando ela voltou a interagir mais com a analista, ocorreu outro tipo de brincadeira, em que ficava bem clara sua mobilização para lidar com os golpes e as perdas a que era submetida, criando um brincar em que revertia essa situação. Eis como, nas palavras da analista, dava-se esse brincar:

G com seu revólver atirava em tudo que tinha na sala, inclusive em mim. Outra brincadeira era quando pedia para jogar a bola para si e atirava nela, comigo atrás da bola, e alguns tiros vinham em direção a minha pessoa, sem nenhum disfarce de sua raiva.

Nessa fase, também apareceram "construções com blocos e torres de madeira. Ela fez torres com colunas, que depois viravam castelos. Essas torres eram construídas e logo em seguida derrubadas com seus sopros".

O acompanhamento de diferentes momentos do brincar dessa criança, com sua clara ligação com as situações vitais e emocionais que estavam acontecendo, serve como exemplo muito expressivo do relevo do papel do brincar. Vimos que, diante de uma analista sentida como fugidia e traidora, apareceu hostilidade em relação a ela, representada pelos tiros e pelas construções logo destruídas. Essa criança procurava se proteger da situação de desvantagem em que vivia através de uma reversão dela, apoiando-se no uso da força e em objetos que pudesse criar e descartar com facilidade.

Para a consideração de outra brincadeira desenvolvida posteriormente por G, será necessário acompanhar o que ocorreu após os acontecimentos descritos. No reinício das atividades, depois das férias daquele semestre, a analista soube que G fora transferida para outro abrigo. Ficou bastante mobilizada ante as consequências que aquela nova perda poderia ter para G e empenhou-se para entrar em contato com o novo abrigo e dar passos para que G pudesse continuar a ser atendida, agora em seu consultório, pois não Relações dos fenômenos transicionais e do brincar em Winnicott com a semiótica de Peirce seria mais possível a analista ir a esse novo abrigo. O reinicio do atendimento só ocorreu alguns meses depois. G levava duas horas para ir às sessões, mas raramente faltava. Era acompanhada pela mãe social, que morava com G e outras dez crianças numa das casas desse novo abrigo. Nessa circunstância, surgiu outro tipo de brincadeira, no qual temos indicações de como as demonstrações de disponibilidade e consistência da analista repercutiram em G. Isso aparecia quando, nessa nova brincadeira, havia construções com torres de madeira, que agora não eram mais destruídas.

Essas torres foram ficando mais elaboradas, coloridas e adornadas com os bichos selvagens de sua caixa. Com o retorno desses bichos, surgiram também pequenas histórias em que eles eram muito bravos e precisavam ser vacinados, porque senão morreriam com seus venenos.

Noutra história, os bichos eram "muito protegidos por soldados do exército para que não fugissem dessas casas".

É interessante que, nessa brincadeira, a satisfação não estava mais em destruir as construções, mas em embelezá-las - ainda que nessa ocasião tenham aparecido também os bichos selvagens, que precisavam ser guardados pelos soldados. É fácil depreender, portanto, que o brincar nesse contexto vai dando expressão e sendo um modo de lidar com as situações afetivas que se desdobravam - no caso, a analista passando a ser sentida como alguém com aspectos bons, ameaçados pelo lado selvagem de G.

Vejamos agora a última manifestação do brincar de G. Ela se deu num período em que predominou seu interesse por desenhos. Sobre o contexto em que essa produção ocorreu, é importante salientar o fortalecimento do vínculo com a analista, bem como a ida para a escola desde que mudou para o novo abrigo. Novamente, através do brincar de G - no caso, seus desenhos -, temos indicações das repercussões positivas que esses amparos mais estruturados e consistentes tiveram para ela. No início, a paciente pedia para copiar os desenhos da analista; depois, passou a fazê-los de sua própria cabeça. Surgiram figuras humanas e, mais tarde, casas. Sobre estas, a analista nos diz;

As casas no início eram pequenas e com pouca cor, mas ao longo do tempo foram aumentando de tamanho e sendo feitas com materiais diferentes, como cola, palito, durex coloridos e brilhos. Seus desenhos foram ganhando tamanhos maiores e um colorido intenso, com detalhes interessantes e histórias sobre seus desejos de uma casa com toda a família, com televisores, comida e muito dinheiro no cofre para todos.

Essa brincadeira traz uma diferença cuja importância e significado podem novamente ser considerados à luz de algumas noções peircianas. Nas brincadeiras anteriores, podemos dizer que predominavam a primeiridade e a segundidade das experiências emocionais turbulentas que eram vividas, o que se mostrava nos correspondentes signos icônicos e indiciais que faziam parte das brincadeiras: os tiros de revólver, a construção e destruição de torres, as torres elaboradas, mas com bichos selvagens por perto, precisando ser guardados por soldados. À luz desses elementos, considerados de acordo com signos peircianos, é bastante rico contrastar essas produções com o último brincar-desenhar. Embora os signos usados continuassem a ser icônicos e indiciais - por exemplo, imagens de casas com seus utensílios e habitantes -, é fácil perceber como eles decorriam de situações emocionais em que o marcante era o fato de estar sendo vivido um amparo mais estável e consistente. Em razão disso, é possível considerar que as imagens dos desenhos, principalmente das casas com os familiares e os utensílios, captavam essa situação de G, convivendo com elementos mais estáveis, com continuidade e, portanto, com características de terceiridade. As casas com familiares eram imagens e índices desse mundo mais estável de G, mas também símbolos, nos termos de Peirce, que exprimiam a ligação e a maior complexidade e consistência das experiências que G estava vivendo.

Vale destacar um último ponto. Ainda que tenha sido salientada a importância do papel dado por Winnicott ao brincar na expressão das situações emocionais e no lidar com elas, André Green (2005), em conferência proferida na Squiggle Foundation, chamou a atenção para o fato de que o brincar nem sempre conduz à saúde, como afirmou Winnicott; o autor usou o paralelo do brincar com o sonhar e deu o exemplo de que, embora o sonho tenda a contribuir para a elaboração de experiências emocionais, ele também pode dar lugar ao pesadelo. Será possível usar aspectos das situações clínicas vistas até agora, com o auxílio da semiótica de Peirce, para um melhor entendimento dessa diferença apontada por Green? O que foi visto nos casos de Beto e G servirá para pensar a respeito. Imaginemos, por exemplo, que Beto não tivesse tido o auxílio analítico e ficasse confinado num nível de primeiridade e se-gundidade, em atuações de violência na vida e nas brincadeiras, de modo que essas últimas funcionassem como uma espécie de reforço da agressividade. Teríamos, então, um brincar favorecendo não a saúde, mas um atuar continuado da violência. Com G, da mesma forma, houve vários períodos em que seu brincar-viver ficou paralisado, numa reprodução e reação a suas vivências traumáticas, com o uso dos ícones e índices correspondentes. Caso não tivesse havido a demonstração concreta da persistência da disponibilidade da analista, associada ao amparo que G encontrou num abrigo mais consistente e na escola, poderíamos imaginar que um brincar como o da fase dos tiros e da destruição dos castelos por parte da paciente viesse a funcionar associando-se a uma carreira delinquencial efetiva.

Finalizando este trabalho, será conveniente voltar à noção de como os elementos universais da semiótica de Peirce constituiriam uma base de enorme valor para a investigação de processos correlatos no plano psicológico. De fato, a base antes referida ajudou a distinguir pontos em que a riqueza psicológica das noções de Winnicott sobre os objetos e fenômenos transicionais podia ter importantes respaldos e complementações na filosofia de Peirce. Mais especificamente em relação ao brincar, foi visto que, apesar das ricas contribuições de Winnicott sobre essas manifestações, ele não desenvolveu uma teorização mais detalhada sobre o papel de elementos sígnicos nessa área. Consideramos, então, como a semiótica de Peirce podia ser aplicada em relação a essas facetas do brincar, não só no plano da teorização, mas em vários aspectos das situações clínicas apresentadas.

O propósito fundamental das reflexões desenvolvidas neste trabalho foi dar sugestões, particularmente através de concepções de Winnicott, a respeito de possibilidades de investigação das relações entre a psicanálise e a filosofia de Peirce, uma área bastante ampla e aberta, em que há muito a ser explorado.

 

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Correspondência:
Paulo Duarte Guimarães Filho
Rua João do Rio, 45
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Tel.: 11 3813-1238
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Recebido em 26.09.2017
Aceito em 10.10.2017

 

 

1 Versão modificada do texto "Analisando a relação entre a semiótica de C. S. Peirce e os fenômenos transicionais e o brincar de D. Winnicott", publicado em inglês na Cognitio: Revista de Filosofia, 18(1),69-88, 2017.

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