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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo out./dez. 2017

 

CRIANÇA

 

A caixa lúdica do analista: uma reflexão sobre as mudanças na teoria da técnica

 

Analyst's ludic box: a reflection on changes in technical theory

 

La caja lúdica del analista: una reflexión sobre los cambios en la teoría de la técnica

 

La boîte ludique de l'analyste: une réflexion sur les changements dans la théorie de la technique

 

 

Maria Cecília Pereira da Silva

Psicanalista, membro efetivo, analista didata, analista de criança e adolescente e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Pós-doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Departamento Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso Relação Pais-Bebê: da Observação à Intervenção. Coordenadora da Clínica 0 a 3 do Centro de Atendimento Psicanalítico da SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a autora faz algumas reflexões sobre a teoria da técnica psicanalítica, a partir de ideias de autores contemporâneos e de sua experiência em psicanálise com crianças, especialmente na clínica com pacientes vítimas de traumas precoces, fronteiriços, psicóticos, com autismo ou núcleos autísticos. Apresenta mudanças técnicas como uma contribuição para a clínica atual e para o desenvolvimento emocional.

Palavras-chave: psicanálise com crianças, técnica, autismo, interpretação, função narrativa


ABSTRACT

In this work, the author presents some reflections on the theory of psychoanalytic technique. These reflections are based on contemporary authors and on her own psychoanalytic experience with children, especially in the clinical practice with patients who suffer from early trauma and with borderline, psychotic, autistic patients or autistic nuclei. The author presents technical changes as a contribution to current psychoanalytic practice and emotional development.

Keywords: psychoanalysis with children, technique, autism, interpretation, narrative function


RESUMEN

En este trabajo la autora presenta algunas reflexiones sobre la teoría de la técnica psicoanalítica, a partir de autores contemporáneos y de su experiencia en psicoanálisis con niños, especialmente en la clínica con pacientes con traumas precoces, fronterizos, psicóticos, con autismo o núcleos autísticos. Presenta cambios técnicos como una contribución para la clínica actual y para el desarrollo emocional.

Palabras clave: psicoanálisis con niños, técnica, autismo, interpretación, función narrativa


RÉSUMÉ

Dans ce travail, nous présentons quelques réflexions sur la théorie de la technique psychanalytique, à partir d'auteurs contemporains et de notre expérience en psychanalyse avec des enfants, en particulier dans la clinique avec des patients ayant des traumatismes précoces, frontières, psychotiques, autistes ou noyaux autistes. Nous présentons des changements techniques comme une contribution à la clinique actuelle et au développement émotionnel.

Mots-clés: psychanalyse avec des enfants, technique, autisme, interprétation, fonction narrative


 

 

Já resumi minha teoria de educação dizendo que o corpo carrega duas caixas. Uma delas é a caixa de ferramentas, onde se encontram todos os saberes instrumentais, que nos ajudam a fazer coisas. Esses saberes nos dão os meios para viver. Mas há também uma caixa de brinquedos. Brinquedos não são ferramentas. ... Brincamos porque o brincar nos dá prazer. É nessa caixa que se encontram a poesia, a literatura, a pintura, os jogos amorosos, a contemplação da natureza.

(Rubem Alves)

Neste trabalho, compartilho uma caixa lúdica que fui montando ao longo dos anos, à la Rubem Alves, a partir de reflexões sobre a teoria da técnica psicanalítica e de minha experiência clínica, especialmente com pacientes vítimas de traumas precoces, fronteiriços, psicóticos, com autismo ou núcleos autísticos. Essa caixa propicia a troca intersubjetiva, numa fascinante experiência de descoberta. Acredito que, em nossa formação como analistas, além de em nosso instrumental teórico, também é importante investir nessa caixa, pois nosso ofício se aproxima da arte, da poesia, da literatura e da natureza.

Ao longo de minha trajetória como analista, minha escuta foi se voltando cada vez mais para os estados primitivos da mente ligados a deficit de desenvolvimento ou a situações traumáticas precoces. Isso provavelmente se deu nas duas últimas décadas, em que tenho me dedicado a coordenar seminários de observação de bebês e ao meu trabalho com intervenção nas relações iniciais pais-bebê e de análise de crianças dissociadas, autistas ou com traumatismos iniciais, refletindo sobre as mudanças na prática psicanalítica com crianças.1 Observo que o trabalho com crianças e o estudo teórico e técnico têm se revertido positivamente em minha escuta de pacientes adultos.

Neste artigo, trato primeiramente de mudanças na psicanálise com crianças, às quais chamarei de antes e depois. Em seguida, apresento alguns recursos técnicos - derivados de minha clínica e das ideias de autores contemporâneos (Alvarez, 1994; Batistelli & Amorim, 2014; Ferro, 1995; Mendes de Almeida, 2008, 2009; Prat, 2014; Roussillon, 2015; Ungar, 2015) - utilizados no trabalho com os pais, diante de estados primitivos da mente e de comunicações não verbais e na construção dos diversos níveis de interpretação a partir do uso de experiências transferenciais e contratransferenciais vividas na sala de análise. Ilustro essa reflexão com vinhetas de pacientes com vivências de um tempo, muitas vezes, ainda sem palavras.

 

Antes e depois2

Nos últimos anos, a clínica psicanalítica com crianças foi modificando sua teoria da técnica para o desenvolvimento do processo analítico, processo esse que resultou de desdobramentos do modelo clássico de psicanálise com A caixa lúdica do analista: uma reflexão sobre mudanças na teoria da técnica crianças e que ajuda a criança, em especial aquela com autismo, dissociada ou com situações traumáticas precoces, a descobrir que o mundo é interessante.

As primeiras contribuições para a compreensão do mundo infantil apareceram com os trabalhos de Freud (1905/1976b, 1909/1976a) sobre a sexualidade infantil, a teoria das pulsões, o complexo de Édipo e a angústia de separação, com o exemplo de seu neto (com o fort-da) ensinando como a criança elabora situações dolorosas por meio da repetição delas no brincar - como, pelo brincar, expressa a fantasia, sua função e seu sentido psíquico inconsciente subjacente, em toda a sua riqueza. Progressivamente, a partir do trabalho pioneiro de Klein (1946/2004), que utiliza o brincar como meio de expressão e comunicação privilegiada dos pequenos, preconiza-se que, pela escuta dos movimentos internos do paciente, suas associações livres e seus sonhos, o analista, num estado de atenção flutuante, vá atribuindo significados às fantasias e aos aspectos inconscientes que se apresentam na relação transferencial.

Autores contemporâneos destacam alguns desdobramentos.

A princípio, na psicanálise clássica com crianças, os pais eram vistos como personagens coadjuvantes. Já na clínica contemporânea, principalmente na de crianças com autismo e na clínica 0 a 3, os pais passaram a ser personagens ativos e parceiros, coatores principais, num contexto de trabalho conjunto com o analista desde o início do processo de avaliação psicanalítica pais-filho (Mélega, 1998). Nessa etapa inicial, contribuímos ao empatizar com o sofrimento dos pais e ao ajudá-los a compreender as dificuldades da criança, facilitando a adesão ao tratamento e o fortalecimento das funções parentais.

Portanto, o trabalho analítico com crianças segue pari passu o trabalho com os pais, em que está em jogo uma transferência múltipla e a ideia de um campo transferenciai em que a presença do bebê/criança é essencial para propiciar transformações nos fantasmas parentais e na forma de parentalidade que é oferecida. Diante das novas configurações familiares, faz-se necessário ajudar os pais a construir sua função parental e uma noção de intimidade, com experiências de relações emocionais e criativas que ampliem o mundo do fantasiar e do pensar em relação ao do ato, da satisfação imediata do desejo e do alívio rápido do sofrimento (Golse, 2004; Ungar, 2015).

Enquanto na psicanálise clássica com crianças o brincar, como o sonho, foi tomado como uma atividade com um sentido psíquico que aponta para o inconsciente, hoje trabalhamos com elementos anteriores à linguagem, estados emocionais primitivos e não integrados, experiências não verbais, angústias primitivas ligadas ao terror sem nome (Bion, 1962/1990) ou ao medo do colapso (Winnicott, 1963/1994). Até mesmo a caixa lúdica tradicional foi sendo enriquecida com brinquedos e materiais plásticos que vão ao encontro dessas experiências emocionais.

A clínica com crianças reconhece a origem e as diversas facetas das fantasias e das identificações. A clínica da primeiríssima infância, por sua vez, tem trazido contribuições para a compreensão dos sofrimentos psíquicos que envolvem questões narcísicas e identitárias, aproximando-nos de marcas psíquicas deixadas pelas primeiras experiências emocionais, que não serão lembradas, em virtude da ausência da linguagem verbal ou por sucumbirem ao efeito do recalcamento, e que não chegam a se constituir como memória e como história (Aragão & Zornig, 2009; Roussillon, 2015). Sob a prevalência de relações objetais parciais, as questões edípicas precoces também não têm um destino e se repetem em diferentes tonalidades, impossibilitando a integração e empobrecendo o mundo emocional (Silva, 2018).

Se a psicanálise clássica centra sua escuta no mundo interno do paciente, com autores como Bion, Winnicott e Roussillon, podemos dizer que as fantasias inconscientes passam a ser correlacionadas com o ambiente e as primeiras relações com os objetos externos. O ambiente e os objetos externos ganham, assim, um novo estatuto (Ogden, 2013), pois os fracassos dos primeiros encontros produzem feridas narcísicas primárias e mobilizam mecanismos de defesa primitivos em que a simbolização fica prejudicada (Roussillon, 2015).

A noção de um traumatismo por falta ou de uma clínica do negativo (Green, 1988) indica a necessidade de valorizar o objeto enquanto referencial para a constituição do psiquismo, não só em sua dimensão de presença/ausência, mas principalmente em razão de sua presença, que se traduz em investimento afetivo na relação com a criança, definindo um estilo interativo próprio entre o bebê e o seu objeto primário, como fundação e base do aparelho psíquico (Aragão & Zornig, 2009; Golse, 2003).

Se na psicanálise clássica o foco está no intrapsíquico, na psicanálise contemporânea há um deslocamento para o intersubjetivo, para o que acontece entre duas pessoas e para o objeto que é capaz de conhecer (Bordi, 1996, 2005), colocando em primeiro plano o analista como pessoa, a dimensão dialógica da relação terapêutica e a potencialidade transformadora para o indivíduo que participa desse processo (Bonaminio, 2007).

Antes a concepção de transferência envolvia paciente e analista. Hoje ela foi ampliada para envolver um sistema de relações, um campo psicanalítico (Baranger & Baranger, 1962), incluindo os pais, a criança e o analista. Na clínica atual, o contato do analista com a sua contratransferência e com a sua capacidade negativa (Bion, 1962/1990) passa a ter um novo estatuto - ao examinar as ressonâncias internas e os impactos evocados pela relação com o paciente, o analista utiliza-os na compreensão da criança, em suas intervenções e no manejo clínico.

A psicanálise clássica com crianças trabalha predominantemente com as identificações projetivas em sua tridimensionalidade. Meltzer (1975/1986, 1979), no entanto, observa que o mecanismo de defesa principal de crianças com autismo é o desmantelamento do aparelho perceptivo em suas partes de sensualidade e de percepção sensorial, com identificação adesiva, em sua bidimensionalidade, a um tempo circular e falta de um espaço psíquico, provocando a retração do contato com o objeto humano.

Na psicanálise clássica com crianças, o brincar da criança representa simbolicamente suas fantasias, ansiedades e defesas, como expressão de seus conflitos inconscientes. Frances Tustin (1981/1984, 1986/1990) nos mostrou, por outro lado, que os movimentos estereotipados e os objetos autísticos buscam manter certo sentimento de existência, produzindo um estado de excitação permanente, uma autossensualidade, que mascara sentimentos de separação.

Quanto à postura do analista, centrada no conceito de neutralidade preconizado por Freud, por vezes definido de maneira muito estática, passiva ou continente, Alvarez (1985) propõe que seja cultivada e conquistada uma neutralidade pensante, informada pelas emoções, pela sensibilidade e pelas percepções do terapeuta, especialmente no trabalho com crianças psicóticas ou borderline. A autora sugere três variações: 1) a neutralidade fortificada: no trabalho com crianças psicopáticas ou com estados narcísicos destrutivos, em que a distância desejável pode ter sido muito reduzida de início, o terapeuta recorre a fortificações adicionais para manter sua capacidade de pensar; 2) as missões diplomáticas: quando a distância é muito grande e a capacidade de sentir e pensar do paciente autista, esquizoide ou emocionalmente carente, cronicamente doente, está bastante limitada, o terapeuta reclama e investe suas partes sadias, convocando-o a se conectar com a realidade, construindo um continente para seus conteúdos e a capacidade de pensar; 3) os postos avançados de escuta: o terapeuta capta sinais de reparação e de desenvolvimento do ego em certas crianças borderline e psicóticas quando apresentam indícios de melhora.

Se tradicionalmente as concepções teóricas sobre o mecanismo de idealização estavam associadas a uma função defensiva, cada vez mais os processos de idealização se destacam nas etapas necessárias do desenvolvimento, diferenciando-se de uma defesa contra as ansiedades persecutórias ou contra a dor depressiva (Alvarez, 1994). Crianças em condições de vulnerabilidade e com privações muito precoces precisam viver na análise situações de estados ideais e de asseguramento potente para depois conseguir lidar com os próprios impulsos destrutivos, ser menos impelidas a projetá-los, poder integrar aspectos bons e maus do próprio self e do objeto e vir a transformar sua destrutividade numa agressividade favorável à vida (Alvarez, 1994; Bégoin, 1993).

No trabalho com Daniel, 8 anos, severamente carente, vulnerável e com privações precoces, pude observar o aparecimento de objetos ideais não como uma defesa resistente ou evasiva contra a depressão, mas como uma conquista em termos de desenvolvimento (Silva, 2005).

Quando encaminhado, falava palavrões e ameaçava com faca, sem limites. Fazia brincadeiras sexuais de maneira descontrolada e agressiva. Com 1 mês de idade, foi deixado num hospital pela mãe, quando esta soube que ele era portador do vírus hiv. Depois de oito meses de abandono, foi encaminhado para uma associação. Lá chegando, seu corpo estava enrijecido, não se mexia - somente seus olhos, arregalados, buscavam reconhecer o ambiente. Aos 2 anos, após fisioterapia, tinha se recuperado.

Comigo ele adorava jogar bola, bater figurinha e empinar pipa (empinávamos pipa pela janela do consultório ou no estacionamento do prédio), e era carinhoso nos momentos em que estava calmo. No início das sessões, ele se apresentava como "o bacana": contava que jogou bem futebol, que ganhou 200 mil figurinhas ou que empinou suas pipas e "relou" várias. Quando olhado e reconhecido por mim, ele se sentia valorizado, como alguém que também tinha qualidades e aspectos que podiam ser apreciados. Fui propiciando um espaço para esses estados ideais e oferecendo um asseguramento potente quando ele buscava meu olhar de admiração.

Ao ser contrariado, porém, ficava aborrecido, sentia que não podia contar com mais nada e queria ir embora. Aos poucos, eu conseguia resgatá-lo, ele experimentava que tinha algo agradável para viver ali comigo e recuperava seu interesse por nosso trabalho. Era como se nossa relação se assemelhasse à linha da pipa, que podia romper-se e a pipa se perder, e eu tentava dar um nó. A pipa foi se revelando um elemento de ligação entre nós, algo que fazíamos juntos, com os materiais da caixa, e que funcionava como uma espécie de objeto transicional, contendo um esboço de representação de mim em seu mundo emocional: algo que vai e volta; corta, une e separa. A pipa também sinalizava a presença de um objeto interno frágil, esvoaçante, que podia se romper e se desconectar com muita facilidade. É possível conjecturar que, reconstruindo as pipas, ele elaborava vivências primitivas ligadas ao abandono inicial e ao mesmo tempo construía nosso vínculo afetivo.

Fui oferecendo pequenos incrementos na idealização, pois sua capacidade para a esperança viva estava bastante subdesenvolvida e não deveria ser confrontada com constantes lembretes sobre o desespero e a ansiedade que estava tentando superar. Acredito que somente a partir desse processo Daniel tornou-se capaz de integrar aspectos bons e maus do próprio self e do objeto e transformar sua destrutividade numa agressividade favorável à vida.

Passo agora a abordar as novas formas de aproximação, intervenção e interpretação na clínica com crianças.

 

Aproximações, intervenções e interpretações

Enquanto Freud (1905/1976b) nos ensina a construir uma interpretação explanatória a respeito do vínculo entre partes reprimidas deslocadas da personalidade e defesas contra elas (relacionando o sintoma à culpa inconsciente), Klein (1946/2004) nos propõe fazer um tipo de interpretação explanatória mais profunda, que considere as partes da personalidade escindidas ou projetadas (destacando os mecanismos de identificação projetiva presentes na transferência). Já com autores psicanalíticos contemporâneos e com os estudiosos do desenvolvimento, aprendemos a ser mais cuidadosos, fazendo comentários mais descritivos, continentes, e a respeitar os paradoxos.

Se antes as interpretações buscavam explicar, dar sentido ou descobrir os conteúdos inconscientes, hoje a atividade interpretativa está mais ligada a descrever e a conjecturar imaginativamente, numa construção realizada pela dupla. Trata-se de um convite ao trabalho, que nos lembra a impossibilidade de saber tudo, e uma diplomacia com as diversas instâncias psíquicas do paciente, como a possibilidade de observar e descrever. É uma tarefa conjunta, mais próxima do estado de ânimo do paciente, um estímulo para o processo de pensamento (Ungar, 2015). É um exercício de nomear o que o analista faz sem saber, um exercício de fazer sabendo, para a partir de seu efeito dar um estatuto pleno de interpretação às intervenções e manifestações endereçadas a partes primitivas do paciente (Prat, 2014).

Diante de crianças que não têm condições para o tipo de pensamento espacial, temporal e causal envolvido no que Bruner (1968) chama de pensamento em dois trilhos, Alvarez (2012) afirma que precisamos inverter os desenvolvimentos históricos no nível da interpretação. Destaca que os dois primeiros níveis de interpretação envolvem uma interpretação em duas partes e a suposta capacidade do paciente de pensamento em dois trilhos. No entanto,

muitos pacientes não conseguem pensar dois pensamentos ao mesmo tempo, nem ao menos em sequência, antes de conseguirem pensar um pensamento mais plenamente. Para eles, o sentido da experiência precisa ter prioridade sobre o porquê, e a simples investigação das qualidades que rodeiam um aspecto do objeto (o brilho, digamos) ou do self (minha voz pode ser mais alta!) pode ser suficiente para continuar de modo que sua mente possa crescer. (p. 181)

Logo, quando a criança está próxima do que Klein denominou posição depressiva, construímos interpretações num nível explanatório, pois seu estado mental envolve a capacidade de pensar dois pensamentos e/ou conter dois sentimentos ao mesmo tempo e tolerar a ansiedade e a dor de continuar pensando; quando a criança, por outro lado, apresenta sérios deficit de desenvolvimento, trabalhamos num nível mais descritivo, falando do significado do que ela sente, de seus sentimentos, colocando-nos no lugar dela, sentindo por ela tudo o que não pode sentir, processando nossos sentimentos contratransferenciais, descrevendo os sentimentos provocados pela identificação projetiva e, muitas vezes, contendo as projeções sem devolvê-las.

Já com pacientes gravemente doentes, cujo senso de self e de objeto ficou atrofiado, que apresentam estados de dissociação crônica, apatia desesperada ou grau severo de autismo, o processo analítico deve considerar um quarto nível de interpretação, direcionado a uma vitalização intensificada, uma atitude de ativa convocação, para chamar a pessoa de volta a si e para ter acesso aos seus sentimentos (Alvarez, 2012).

Assim, na clínica com crianças com autismo, o analista vai em busca do paciente e, diante da falta de contato ou do brincar repetitivo e estereotipado, procura ativamente oferecer significados e interferir, acrescentando lentamente novos elementos, na tentativa de constituir um mundo psíquico com sentido, o brincar e o sonhar. A clínica com crianças com autismo apoia-se no conceito de reclamação (Alvarez, 1984) e também na ideia de uma postura ativa e pensante, informada pelas emoções, pela sensibilidade e pelas percepções do analista.

Enquanto a psicanálise clássica baseia suas interpretações na situação transferencial e na atribuição de significados, a clínica atual detém-se mais em construir um continente do que em lidar com os conteúdos do pensamento (Ferro, 1995), ou seja, detém-se em construir o aparelho necessário para pensá-los (Bion, 1962/1990), e nela não está mais em jogo o trabalho sobre a repressão (Freud) ou sobre a cisão (Klein). Tustin (1981/1984) nos lembra que as intervenções do analista propiciam um recipiente para o transbordamento, até que a criança consiga desenvolver um senso de integração e autocontenção.

A psicanálise clássica, desse modo, centra sua clínica nos conteúdos psíquicos e nos conflitos intrapsíquicos, na decifração de um código que abra a porta para o significado inconsciente, como uma atividade interpretativa decodificadora. A partir da segunda metade do século XX, porém, o campo psicanalítico passa por uma grande alteração, com a mudança de foco para uma clínica do continente, relacionada ao sofrimento da criança; essa clínica prioriza o estudo do psiquismo em seu estado nascente, e não mais como uma estrutura estabelecida (Golse, 2003).

Nesse processo está implicada a função narrativa do analista - a construção narrativa como uma maneira de o analista encontrar, com o paciente, um significado, de forma dialógica, sem muitas cesuras interpretativas. Ferro (1995) assinala que o analista deve acolher e vivenciar em si as experiências, às vezes inconscientes, que o analisando não consegue comunicar, embora consiga ativá-las no analista por meio de identificações projetivas. Para esse autor, as interpretações narrativas, ou fracas, procuram não saturar a comunicação do paciente, e "a transformação conarrativa, ou mesmo a conarração transformativa, toma o lugar da interpretação" (Ferro, 2000, pp. 17-18).

Tomando emprestadas as ideias de Bion e Ferro, a função narrativa do analista (Silva, 2013, 2016) se configura como uma paixão, uma emoção compartilhada, exercitada no seio das sessões, a partir do campo analítico (Baranger & Baranger, 1962). A paixão se destaca na função analítica como uma ampliação da curiosidade, como um componente não só indispensável, mas primordial (Franco Filho, 1992). A função de rêverie, digerindo as identificações adesivas (Bick, 1968/1991; Meltzer, 1975/1986) e projetivas (Klein, 1946/2004), emerge na forma de uma narrativa, especialmente nos casos em que houve situações traumáticas precoces inacessíveis e não representadas ou nos transtornos do espectro do autismo.

A interpretação, na forma de uma construção narrativa unida à função narrativa do analista (Silva, 2012, 2013), nasce de um campo que envia missões diplomáticas para reclamar e investir as partes sadias do paciente, como um objeto humano vivo, consistente, uma companhia viva, um objeto animado (Alvarez, 1994), convocando-o a se conectar com a realidade, construindo assim um continente para seus conteúdos e a capacidade de pensar, como um recurso técnico que permite a reconstituição do tecido psíquico esgarçado por uma situação traumática.

Guilherme chegou ao consultório com 2 anos e 8 meses. Não falava, não interagia, não dirigia o olhar à analista. Ficava num estado encapsulado, isolado, com alguns rituais. Diante da ruptura desses rituais, desesperava-se. Mais interessado nos objetos, estabelecia uma relação fusional com os pais, e só quando precisava pedia ajuda a eles. Parecia não me perceber e, muitas vezes, não aceitava qualquer contribuição sugerida por mim.

Houve um dia em que ele chegou com um choro desesperado. Ele não queria se separar da mãe. Entrou na sala, muito agoniado (Winnicott, 1963/1994) e desmantelado (Meltzer, 1979), acompanhado de seu trem Thomas. Aos poucos, começou a brincar com o trem e me pediu o trilho/con-tinente (desenhado conjuntamente em uma cartolina). Ainda soluçando, explorou esse cenário. Fui apresentando a estação e os locais para onde Thomas poderia ir. Com isso, a sessão prosseguiu. Eu, porém, ainda me sentia tomada pela percepção de sua angústia de aniquilação e de fragmentação diante da separação no início de nosso encontro. Então, como uma construção narrativa das vivências transferenciais e contratransferenciais, desenhei uma história em quadrinhos relatando seus sentimentos e como lidamos com eles utilizando o trilho/continente. Por fim, conversamos sobre como era difícil ficar comigo e deixar a mamãe lá fora.

Em outros momentos, Guilherme utilizava o bombeiro/Cecília para resgatar o carrinho McQueen ou o trem Thomas, quando sucumbiam ao desmoronamento de casas. Eram momentos de desmantelamento psíquico, vividos intensamente na sessão. Depois, o bombeiro/Cecília passou a resgatar o trem Thomas quando, em suas estrepolias, invadia a casinha e destruía tudo, como tentativa de elaboração de vivências intrusivas que inundavam seu mundo interno. No final de sua análise, o bombeiro/Cecília se transformou num guindaste, com uma engrenagem com duas alças que davam suporte e equilíbrio para resgatar o trem Thomas - uma construção sofisticada, criada, pensada e examinada por ele. Então, com uma narrativa própria, Guilherme me contou que já possuía um guindaste/Cecília/função analítica introjetada, a que poderia recorrer nos desafios apresentados pelas encruzilhadas do crescimento.

Ao narrar para as crianças, em linguagem lúdica, simples e conectiva, o que vai percebendo, o analista amplia a rede associativa, oferece contorno e continência ao mundo mental, cria espaço para estrear o brincar, o pensar e o sonhar.

Nos últimos anos, a clínica com crianças foi depurando recursos técnicos específicos - recursos que contemplam vários aspectos da função analítica de continência a estados primitivos da mente e que passo a descrever.

Como a criança com autismo ou severamente prejudicada em seu desenvolvimento não tem acesso ao mundo simbólico, o trabalho do analista, a princípio, está mais direcionado para uma atitude de reclamação, na busca de uma resposta emocional, oferecendo delicadamente significados possíveis para o brincar repetitivo e sem sentido, interferindo cuidadosamente para chegar ao nível descritivo e explanatório (Alvarez, 2012).

No início, era comum Guilherme se recolher e começar a desenhar num bloco de papel, e de repente ir se encolhendo, de costas para mim, com o rosto e os braços colados ao papel, rabiscando, totalmente absorto (concha autística?). Naqueles momentos, eu pegava outro lápis e ia fazendo um caminho no papel até chegar próximo ao lápis dele. Meu lápis conversava com o dele e, depois, com ele: "Ei, Guilherme, onde está você?'. Então, Guilherme olhava para mim, os lápis começavam a correr um do outro e ele se divertia. Esse foi o início de uma interação dialógica que favorecia o encontro de nosso olhar, resgatando Guilherme e possibilitando novos encontros.

Essa vinheta ilustra as tentativas de alcançar uma relação dialógica atribuindo significados incipientes aos movimentos da sessão, tentativas mais A caixa lúdica do analista: uma reflexão sobre mudanças na teoria da técnica direcionadas a uma atitude de ativa convocação, na busca de uma resposta emocional. Esses aspectos da função analítica de continência a estados primitivos de mente caracterizam a maneira pela qual o analista se orienta em relação ao paciente, assim como a figura materna subjetiva o bebê desde os primordios de seu desenvolvimento.

Ao favorecer um senso de espaço mental interno, com nosso "pensar alto" muitas vezes intuitivo, num diálogo com um interlocutor interno, apresentamos à criança um espaço/mente (função) em que conteúdos como sensações e percepções, mesmo que em estado incipiente, possam ir sendo registrados, processados, até adquirir algum valor compartilhado.

Com Guilherme, fui dizendo, lenta e delicadamente, o que podia observar de seus mínimos movimentos na sessão, como uma maneira de buscar alguma conexão com seu isolamento, observando e narrando como ele ia reencontrando as coisas do dia anterior: "Você está vendo o carrinho que tem coisas dentro e quer olhar o que tem dentro e guardar coisas dentro"

Quando eu o ajudava a colocar uma massinha vermelha no porta-malas de um carrinho que ele reencontraria em outras sessões, Guilherme esboçava a possibilidade de explorar e incorporar o que eu ia oferecendo. Ao aceitar essas contribuições, ele mostrava poder construir uma interação mais lúdica, com a presença de um dentro e um fora - o esboço de uma mente com espaço tridimensional.

Ao oferecer um envelope sonoro utilizando certa prosódia típica da relação inicial mãe-bebê, com ritmo e musicalidade, procuramos alcançar a criança no nível em que seu self infantil saudável se encontra.

Um dia Guilherme descobriu um miniaparelho de som na casinha de bonecas e o explorou com curiosidade e interesse. Cantarolou alguma coisa e depois o jogou longe, como expressão de seu desmantelamento. Tomando sua atitude como um esboço de brincadeira, encontro o aparelhinho, manipulo-o e, como se o ligasse, cantarolo baixinho uma música. Ele me interrompe pedindo que o jogue novamente. Jogo-o em sua direção. Ele brinca de ligá-lo e pede que eu cante. De repente, ele o joga, e eu interrompo a música, transformando-me numa estátua. Guilherme se regozija e me imita, canta suas músicas e joga o aparelho. Em turnos de presença e ausência, em que ele controla o objeto com certa previsibilidade, a brincadeira continua, e Guilherme se diverte. Com minha prosódia, ofereço um envelope sonoro e falo de sua alegria ao comandar a situação, incluindo ritmo e musicalidade na sessão.

Como um objeto interessante e atraente, desperto nele interesse e curiosidade, para que possa vir a se interessar por outros objetos humanos e se relacionar afetivamente com eles (Alvarez, 2012). Do interesse pelo controle do objeto, Guilherme passa para o interesse pelo novo que pode surgir desse objeto/analista, que liga e desliga ao seu comando.

Outro aspecto que se destaca é a possibilidade de regular as distâncias, oferecendo um espaço para que os ritmos da criança se desenvolvam sem sobrecarga ou invasão de necessidades, projeções e expectativas narcísicas do adulto, captando o seu interesse em qualquer lugar em que ela esteja.

Guilherme, aos 6 anos, após interrupções na continuidade de nosso trabalho por problemas familiares, expressava sua tristeza e frustração no início das sessões. Nesses momentos, descrevia sentimentos de saudade ou estranhamento, de desconfiança ou distanciamento, sondando seus sentimentos. Diante dessa experiência de descontinuidade e imprevisibilidade, ao chegar ao final da sessão, Guilherme se revoltava e dizia que não queria ir embora: "Agora não! Não! Quero ficar aqui!" Era difícil terminar a brincadeira que iniciou: ele dava início a algo novo ou jogava tudo para o ar.

Começo a abordar a situação com certa distância, como se o relógio fosse o responsável por aquela tarefa insuportável de pôr fim à sessão. Falo em tom vivo, indicando urgência: "Esse relógio está dizendo que está na hora de ir embora. É muito chato isso de ir embora... Que chato esse relógio!". Com essas palavras, cria-se um campo de reflexão: Guilherme pode se conter e parece que eu me torno sua aliada contra o tempo que o impede de ficar ali para sempre. Ainda não era possível aproximá-lo de seu sentimento reconhecendo-o como seu, de modo que foi necessário tratar da separação como um terceiro para que fosse tolerada.

Nossa capacidade de estar atentos aos mínimos sinais e tentativas de comunicação expressos pela criança proporciona um estado de mente disponível para receber e registrar incipientes manifestações e observar seus impactos emocionais, captando movimentos do paciente rumo à vincularidade e rudimentares demandas de compartilhar o contato.

David, aos 3 anos, com uma fala ecolálica e muita atividade motora, entretinha-se com uma bolinha que trazia de casa e mal me percebia. Um dia a bolinha corre pela sala e se esconde. David/bolinha fica desesperado, como se uma parte de si tivesse desaparecido. Mas meio de soslaio seus olhinhos buscam os meus. Percebo sua dor e seu pedido e digo: "Essa bolinha não pode se esconder assim do David. Onde será que ela foi?". Ele se surpreende, e há um novo encontro de olhares. Vou em busca da bolinha/David e proponho um jogo de esconde-esconde. Ele se regozija ao encontrá-la - uma aproximação foi possível.

Assim como a procura pela bolinha de David, pequenos movimentos da criança que despertem no analista algum indício de busca de contato são amplificados e ganham sentido na relação analítica com crianças com manifestações autísticas.

Ao amplificar pequenos sinais e tentativas de comunicação da criança, vamos criando uma vivência de continuidade por meio da observação e da A caixa lúdica do analista: uma reflexão sobre mudanças na teoria da técnica função narrativa do analista, com manifestação de surpresa e dúvida, nomeação, investigação e agregação desses estados emocionais. O analista funciona como um catalisador semântico dos estados emocionais rudimentares, das manifestações aparentemente automáticas e sensoriais.

David desenhava palmeiras, coqueiros, samambaias repetidamente, como se estivesse em outro mundo, e eu não estivesse ali. Ele dizia, olhando para o papel: "Agora a palmeira... Vou fazer uma samambaia... Tô fazendo samambaia... Coqueiro...", e fazia cada folhinha de seus ramos, e outra palmeira, e assim em um papel atrás do outro. Fui nomeando cada desenho, suas cores, o tamanho das folhas, amplificando sua condição de representação. Em dado momento, um pouco entediada de tanta repetição e sem encontrar espaço para uma possível interação, eu me introduzi por meio de um macaquinho que desenhei no canto de uma folha. Eu/macaquinho encontrei uma forma de ir conversando com David/coqueiros sobre os sentimentos que ecoavam na sessão: "Puxa! Estou tão entretido nesse desenho/floresta de coqueiros que parece que não tem mais ninguém aqui. Estou tão sozinho nessa floresta." Diante da fala do macaquinho/analista, David olha para mim e, meio pensativo, olha para sua floresta de coqueiros, para o macaquinho/analista e desenha um et, um novo personagem de seu interesse. Então esse Et/David começa a conversar com o macaquinho/analista. Esse ser nos aproxima, e o sentimento de ser de outro mundo e tão sozinho foi nomeado, passando a fazer parte do cenário analítico.

Também se destaca no trabalho com crianças tendo autismo ou atrasos graves de desenvolvimento o investimento desejante (Mendes de Almeida, 2008) e subjetivante (Silva, Mendes de Almeida & Barros, 2012) do analista: atitude de mente ativa que envolve uma aposta pulsional na busca de respostas emocionais com vitalidade psíquica e a sensibilidade a seus afetos mobilizados pela contratransferência para promover o desenvolvimento psíquico; refere-se aos movimentos do analista que buscam amplificar o senso de agência e de coesão interna dos pacientes para a constituição de sua subjetividade e de sentidos na vincularidade. Desde sempre, o analista tem em mente que a criança, por mais perturbada que esteja, é um ser humano com potencialidades de desenvolvimento de um ser pensante, capaz de viver relações afetivas compartilhadas. Essa atitude, ao supor um sujeito onde ele ainda está sendo constituído, tal como a mãe faz com o bebê, dá voz e representação a possíveis estados em construção, criando um espaço potencial repleto de esperança.

Cristina, aos 3 anos, chega hipotônica, com movimentos repetitivos de braços e mãos, olhar disperso, vazio e oco, como se não houvesse nada dentro dela. Fui lhe apresentando alguns brinquedos. No início, diante das torres que construía, ela as derrubava, como se fosse um movimento involuntário, ou uma dificuldade de preensão e apreensão, que se transformava num movimento mais imediato e passivamente resolutivo - ao não reter, ou ao tentar reter mas não conseguir, fazia desabar. Em dado momento, Cristina passou a derrubar intencionalmente as torres, e a primeira reação dos pais foi criticá-la: "Ah, sua sapeca, derruba tudo!" Então exclamei: "Eh, muito bem, Cristina, você conseguiu, derrubou, caiu tudo!" batendo palmas, exaltando o momento subjetivo e um potencial senso de agência na criança. Essa expressão reaparecia quando me encontrava e quando essa brincadeira se repetia.

Gostaria de chamar a atenção, por fim, para a importância de construir um campo de intimidade. Ao depararmos com falhas iniciais de continência e diversas tonalidades de identificação intrusiva e/ou mórbida (Silva, 2007), o trabalho analítico implicará uma reconstituição desse tecido esgarçado. O desenvolvimento emocional depende da possibilidade de viver a intimidade nas primeiras relações e de ter as necessidades afetivas atendidas e compreendidas pela disponibilidade e pela rêverie materna. Segundo Meltzer (1982/1984), uma relação de intimidade tem como qualidade ser delimitada pela atenção seletiva, ser um lugar confortável protegido de toda estimulação irrelevante que emana do interior do corpo e ser um lugar de exclusividade. Diante de um estado de confusão e de incapacidade para pensar a respeito da experiência emocional que a criança está vivendo, será a capacidade de continência e rêverie do analista que promoverá a integração e o processo de simbolização e de pensamento, rumo à experiência de intimidade. Magagna (2015) assinala que é só por meio do amor e da continência de nossas experiências emocionais que domamos nosso ódio, mitigando nossos desejos e impulsos onipotentes, para nos tornarmos seres humanos capazes de ter intimidade e preocupação com o bem-estar do outro.

Um dia estava com um garoto que me dizia não sentir saudade. Ele nasceu sem o diafragma e ficou na uri entre a vida e a morte por 40 dias. Quando veio para análise, tinha fortes dores abdominais. Durante uma sessão, escutamos uma música de Roberto Carlos3 e ele falou: "Está ouvindo? Pra que sentir saudade? Esse cara cantando parece que está chorando" Então pudemos conversar sobre seus momentos iniciais de vida: que talvez ele tenha sentido tanta falta de sua mãe no hospital, ou daquele lugar quentinho que vivera antes de nascer, que até pensou que ia morrer. E ficou achando que não valia a pena sentir essas coisas. Algo do vínculo inicial e da intimidade das primeiras relações havia se perdido, sendo estes recheados pelo risco de morte, deixando-o insensível a emoções muito primitivas. Muitas vezes, só meu coração podia sentir essas emoções fortes de um coração pulsante, como amor e ódio, tristeza e alegria, compaixão e ternura, e saudade. Aos poucos, construímos uma relação de confiança e intimidade que lhe permitiu ressignificar experiências precoces do passado, em direção a uma relação mais verdadeira e genuína com a vida, experimentando a intimidade dos vínculos emocionais. Essas emoções fortes e sem palavras, ao serem nomeadas, têm permitido que esse menino experimente a gama de sentimentos que a vida nos oferece, pois seu coração ainda está permeável a transformações e a novas experiências afetivas.

A possibilidade de vivenciar um encontro íntimo com o objeto depende de um processo de simbolização de experiências de um tempo sem palavras e de uma reorganização do espaço psíquico. Será na relação analítica que novas potencialidades poderão nascer e um círculo virtuoso recomeçar.

Acredito que o desenvolvimento de pacientes que tiveram entraves nas relações objetais iniciais implicará a possibilidade de encontrar, no campo transferencial, ampliado pela função narrativa do analista (Silva, 2012, 2013, 2016), a compreensão e a significação dos aspectos intrapsíquicos, inter e transgeracionais (Silva, 2003, 2007), e dos elos pulsionais de amor, ódio e conhecimento, pois, enquanto no contexto de nosso mundo interno objetos parciais, invasivos, persecutórios e inacessíveis ficam fixados e inertes, causando sofrimento, objetos vivos geram identificações verdadeiramente introjetivas.

Assim acompanhada por essa família analítica (Bolognini, 2008) e pela experiência clínica, fui compondo essa caixa lúdica e descobrindo que, com as transformações contemporâneas da teoria da técnica psicanalítica, é possível construir os alicerces do mundo emocional, o continente, a trama, por meio de uma nova semântica.

 

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Correspondência:
Maria Cecília Pereira da Silva
Rua Cristiano Viana, 401/407
05411-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 3081-9159
mcpsilv@gmail.com

Recebido em 14.09.2017
Aceito em 17.11.2017

 

 

1 Contribuições importantes têm sido construídas nos grupos de estudo de que participo - como no Grupo de Estudos sobre os Transtornos do Espectro Autista, coordenado por Vera Fonseca, Izelinda Barros e Paulo Duarte; no Grupo Prisma de Psicanálise e Autismo (gppA), com a pesquisa sobre o Protocolo de Investigação Psicanalítica de Sinais de Mudança em Autismo (Prisma); e na Clínica 0 a 3, todos da SBPSP - e no curso Relação Pais-Bebê: da Observação à Intervenção, do Instituto Sedes Sapientiae.
2 Muitas das ideias aqui apresentadas foram primeiramente abordadas no livro Atendimento psicanalítico do autismo (2014), organizado por Fátima Batistelli e Maria Lúcia de Amorim.
3 "Olha dentro dos meus olhos/ Vê quanta tristeza de chorar por ti, por ti/ Olha eu já não podia mais viver sozinho/ E por isso eu estou aqui/ De saudade eu chorei e até pensei que ia morrer/ Juro que eu não sabia que viver sem ti eu não poderia" (Carlos, 1967).

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