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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo out./dez. 2017

 

DIÁLOGO

 

Entrevista1: Bjorn Salomonsson

 

 

 

Bjõrn Salomonsson é um psicanalista didata em Estocolmo, na Suécia, que há anos tem se dedicado ao trabalho com pais e bebês. Além da teorização de sua clínica a partir de um fecundo debate entre psicanálise e semiótica, tem uma extensa produção acadêmica como professor de psiquiatria do Instituto Karolinska, submetendo os resultados clínicos obtidos em escala grupal a avaliações feitas por examinadores independentes com instrumentos padronizados. Essa contribuição tem sido muito importante para a consideração da psicanálise no âmbito de propostas de políticas públicas voltadas à primeira infância.2

RBP | O que levou o senhor a trabalhar na área da psicanálise mãe-bebê? Poderia também nos contar um pouco sobre o seu trabalho com crianças com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH)?

BS | Nasci em 1950 e me interessei por psicanálise muito cedo. Li "A interpretação dos sonhos" quando tinha 16 anos, mas acho que não entendi muito bem. [Risos.] Aos 18 anos, meu pai faleceu. Foi uma época difícil. Comecei a fazer terapia. Aos 23 anos, eu me mudei para Estocolmo, para fazer análise - Estocolmo era o centro da psicanálise na Suécia -, e comecei a trabalhar em psiquiatria geral na Universidade de Estocolmo, que na época tinha uma orientação bastante centrada na psicologia dinâmica.

Em 1981, iniciei os estudos para me tornar analista. Depois de 10 anos trabalhando no hospital, decidi expandir minha experiência em psicanálise, pois senti ser esta minha verdadeira paixão. Em 1990, eu me divorciei e conheci uma colega que estudava análise infantil e que me incentivou a participar de seminários, os quais rapidamente me cativaram. O grupo de psicanalistas de crianças era muito ativo, sob a liderança de Johan Norman, um dos poucos analistas suecos a trabalhar nessa área. Nesse mesmo ano, comecei a trabalhar como analista infantil.

Meu interesse em neuropsiquiatria surgiu a partir do primeiro caso em que trabalhei, um garoto de 5 anos, com TDAH, bem impulsivo e agressivo, com dificuldades de concentração. Eu o analisei por quatro anos. A partir daí, entrei no debate da neuropsiquiatria. Na Europa, houve uma verdadeira guerra entre diferentes opiniões - havia um estudo, com forte atenção internacional, que dizia que o TDAH era uma doença puramente neurológica e que não se tratava de algo psicológico. A orientação era não enviar os pacientes para psicólogos e lhes dar...

RBP | Ritalina. [Risos.]

BS | Não naquela época. Havia a indicação de que frequentassem aulas em turmas pequenas e de dizer aos pais que a criança tinha uma doença neurológica. Mas isso não me convencia, pois aquele garoto claramente mostrava que seus sintomas de impulsividade estavam relacionados ao seu estado mental. Quando algo o atormentava, ele explodia. Pode-se dizer que seu "recipiente interno" estava muito danificado. Não vou dizer que ele estivesse bravo comigo. Mas ele não conseguia dizer que gostava, que tinha alguma consideração por mim, ou se estava triste. Qualquer aflição que ultrapassasse certo nível trazia os sintomas à tona. Foi aí que escrevi artigos, na tentativa de deixar clara essa causalidade.

Psicanalistas não conseguem afirmar que uma coisa acontece por causa disso ou daquilo - a psicanálise é, por assim dizer, uma disciplina mais descritiva. Já os neuropsiquiatras alegam saber a causalidade de cada caso particular, o que é um exagero. Prefiro um modo mais complexo de entendimento. Eu sabia que não haveria uma melhora de 100%, mas por que não seria possível haver uma melhora no comportamento desse garoto, fazê-lo conseguir expressar emoções durante as sessões? Por exemplo, num dia em que cheguei um minuto atrasado, ele ficou maluco. Queria tentar fazê-lo expressar sua raiva contra mim.

Quando entrevistava os pais, eu achava curiosas as histórias a respeito das primeiras interações com os bebês, e isso despertou meu interesse em estudar bebês. Não era por causa dessas mães que eles tinham TDAH, mas me chamava a atenção o fato de que todas as mães tivessem uma atitude mais fechada. Eu me perguntava se isso teria algo a ver com a deficiência dos garotos.

Isso me inspirou a trabalhar com bebês, mas quem realmente despertou meu interesse foi Johan Norman. Ele tinha começado a trabalhar com bebês em 1985, ou 1987, e era praticamente o único. A primeira vez em que me falou do assunto, este me pareceu muito estranho. Ele me mostrou um áudio de uma sessão que achei cruel: o bebê chorava, mas por que ele não o fazia parar de chorar?

Em 2000, comecei a estudar com ele. Tínhamos um grupo em Estocolmo, e rapidamente me interessei - há muito sofrimento, mas também é possível ver resultados relativamente rápidos. É muito desafiador porque é muito intenso. Às vezes, você se sente burro e inútil. É quase como ver um bebê morrendo à sua frente. É bem difícil. O fato de também ter um trauma pessoal, de infância - questão trabalhada durante minha análise -, foi uma experiência que me permitiu compreender melhor a importância da infância. [Risos.] Continuei a trabalhar nisso e comecei a ler mais sobre o assunto.

RBP | O senhor estudou observação de bebês na faculdade?

BS | Não, nunca. Só vi um pouco na faculdade. Hoje é uma prática muito mais organizada, mas em 1981 não era, e não chamou minha atenção. Podemos também falar sobre a diferença entre observação infantil e terapia infantil. Há uma diferença importante. Percebi que era possível mudar esses processos malignos, como eu os chamo. Norman gostava mais de tratar o bebê, capturar a atenção do bebê, mas eu gosto mais de observar o ritmo da mãe. No início, estudei mais sobre a teoria do apego, sobre a qual não sabia muita coisa. Algumas partes dela me interessavam, outras me deixavam em dúvida quanto às habilidades de capturar os processos inconscientes que acontecem entre a mãe e o bebê. Esses aspectos me deixaram meio entediado e insatisfeito. Mas aí voltei a ler Freud e notei que ele escrevia sobre bebês o tempo inteiro.

Nos anos 1980, eu tinha um caso amoroso com os livros de Freud [risos], mas nunca havia imaginado que aqueles bebês poderiam ser bebês observáveis, pois eu não sabia que bebês poderiam sofrer daquele jeito. Freud tinha um interesse enorme em bebês. Ele falava de sexualidade infantil. Na verdade, trata-se mais de sensualidade. Qualquer um que tenha visto um bebê dormir no peito da mãe, com suas bochechas rosadas, tem a impressão de estar vendo uma mulher e seu amante pós-coito. É um tanto ousado, não é? Mas foi isso que ele quis dizer. Contudo, isso foi deixado de lado o tempo todo. Para mim, é sexualidade. Mas é muito inconsciente, difícil de interpretar. Nesse caso, não precisamos interpretar.

Outro exemplo é, claro, o recalque. Nos anos 1980, esse conceito, para mim, parecia muito enigmático. Se um bebê como aquele garoto não for tratado, o que vai acontecer com ele? Acho que é isso o que Freud quer dizer.

Um trauma grande - ou uma situação difícil - poderá ser reprimido a ponto de nunca sabermos de sua existência, mas mesmo assim ele continuará afetando nossa personalidade. A pergunta é: como algo que nunca foi registrado consegue continuar nos afetando? Acredito que esse seja um forte motivo para fazermos uma terapia - tentar evitar que esses estados se tornem recalcados.

Pensei: por que não começar uma pesquisa acadêmica sobre esses tratamentos? Entrei em contato com o professor de psiquiatria infantil, que não é analista, mas que é bem positivo quanto a esse ponto. Lá existe, assim como aqui, uma grande demanda por mostrar resultados em psicanálise. Então, comecei um estudo controlado. E meus colegas...

RBP | Eles te acharam maluco?

BS | Não, eles achavam que seria comprovado que não teríamos bons resultados. [Risos.] Mas acabaram aceitando. Assim, fiz um estudo randomizado controlado, entrevistei 80 mães e bebês. Uma metade foi analisada e a outra recebeu tratamento comum. Esses meus estudos foram traduzidos recentemente para o português, graças ao Rogerio [Lerner], que escreveu um prefácio para a edição.3 É um resumo das minhas pesquisas, em linguagem simples.

RBP | Os resultados, então, foram positivos para a psicanálise?

BS | Essa é uma pergunta curiosa. Nós somos tão parciais... [Risos.] Você deveria perguntar: "Quais foram os resultados?". Encontramos diferenças significativas, positivas à psicanálise. Houve redução do estresse relatado pelas mães, melhora na qualidade emotiva, nas brincadeiras e também na sensibilidade da mãe em relação aos sinais do bebê. Foram por volta de 20 sessões, mais ou menos duas vezes por semana.

Enquanto fazia essa pesquisa, continuei a escrever artigos de psicanálise. Esse foi um período, por assim dizer, de hesitação. Foi aí que me interessei pela semiótica.

RBP | Com licença: antes de entrar no assunto da semiótica, poderia mencionar o estudo de follow-up que o senhor fez com Majlis, sua esposa? Os bebês acompanhados no estudo randomizado controlado foram avaliados novamente às cegas por outro colega. Parece que esse colega encontrou alguns resultados interessantes quatro anos depois. Não é isso?

BS | Quatro anos e meio, sim.

RBP | Quantos pares de mães e filhos o senhor estudou?

BS | Oitenta. Quarenta em cada grupo. Quatro anos depois, alguns pares saíram e permaneceram 82%. É um número bom. Descobrimos que as crianças que haviam passado por análise tiveram um resultado melhor na avaliação global. Tiveram melhores relacionamentos com os amigos, com os pais, na pré-escola etc. Receberam 10 pontos a mais na avaliação. É uma diferença significativa.

Majlis, minha esposa, que fez a pesquisa, também foi analista infantil. Ela ficou às cegas durante toda a pesquisa, não contei nada a ela. As crianças foram testadas por duas horas. Foi usada uma avaliação qualitativa chamada Tipos Ideais. É um conceito formulado por Max Weber, o sociólogo. Todos nós pensamos em tipos ideais: o típico brasileiro, o típico sueco, o típico escocês... Ela tentou concentrar suas impressões dessas 66 crianças em categorias e acabou criando quatro categorias. As crianças enérgicas, as ordenadas (que são contidas, mas normais), as ansiosas e as agressivas (que pintam a parede, correm para baixo da mesa etc.). Dessas quatro categorias, as duas primeiras foram consideradas normais e as outras foram chamadas de perturbadas. Tornaram-se assim duas categorias: normais e perturbadas. Depois verificamos a qual grupo cada criança pertencia. Notamos que havia muito mais crianças normais no grupo de crianças que receberam análise e mais crianças perturbadas no outro grupo. Além disso, as mães do grupo que inicialmente fez psicanálise se tornaram menos deprimidas, em comparação às suas irmãs etc. E essa diferença se manteve.

Claro que se pode argumentar que isso se deve à transferência positiva da psicanálise, à transferência positiva sobre mim e minha esposa, representando a psicanálise. Isso é muito possível. Mas creio que esse estudo reflita um esforço sério em avaliar se esses tratamentos valem a pena ou não. Só conheço um outro estudo parecido, feito há 14 anos, na Inglaterra.

RBP | Em nossa Sociedade, temos um grupo que trabalha com intervenções chamado Clínica 0 a 3. Lá trabalhamos com dois terapeutas e usamos câmeras. Trabalhamos com transgeração, usando ideias de Lebovici, das quais o senhor tratou na conferência de hoje, na SBPSP. Queria que falasse sobre o uso de câmeras de vídeo nas sessões. O senhor grava todas as suas sessões?

BS | Não.

RBP | Poderia falar um pouco sobre as projeções inconscientes da mãe para o bebê e também um pouco sobre as ideias de Lebovici? O senhor chegou a trabalhar com ele, o conhecia?

BS | Eu o vi em 1981, em Helsinki. Ele era presidente da Associação Psicanalítica Internacional, a ipa. Foi o meu primeiro congresso internacional. Mas, antes de responder a sua pergunta, posso voltar à minha trajetória de estudo? Talvez ao escrever meu artigo? Vou me lembrar de sua pergunta sobre o uso de câmeras e respondo depois.

RBP | Sem problema.

BS | Meu interesse veio de pessoas que me perguntavam a respeito da semiótica. Naquela época, em 2005, Norman havia acabado de falecer de câncer, eu estava começando a fazer palestras fora do país, e as pessoas não entendiam como eu falava com os bebês. O meu lado lógico, claro, precisava conceitualizar isso. Foi aí que deparei com os estudos de Peirce. Acho que ele me ajudou a superar um trauma que eu tinha. Percebi ontem que cresci me sentindo burro. [Risos.] Sempre fui o melhor da turma, mas mesmo assim me sentia burro. Sentia que havia algo que não entendia, mas meus irmãos mais velhos - um irmão e duas irmãs - entendiam, claro. Eles entendiam e eu não.

Eu esperava uma verdade essencialista. O que é um copo? O que é um iPhone? O que Peirce me mostrou é que não existe um copo em sua essência. Não existe um iPhone. Há diferentes percepções que podemos resumir em vários signos, que necessitam de um interpretante. Foi aí que percebi que não era burro. [Risos.] O mundo é assim: em tudo trata-se de signos. Foi um grande alívio para mim. Eu poderia dizer que os bebês estão se comunicando? Claro! Eles estão falando. Sempre me interessei por bebês, desde criança. Depois disso, ficou mais fácil dialogar com as pessoas que acreditavam ser impossível falar com bebês. Todo o mundo se comunica com bebês. Uma mãe que não se comunica com o seu bebê tem um problema enorme.

Esse aparato conceitual me ajudou muito a conceitualizar esses tratamentos. Depois foi fácil retornar a Freud e ver o paralelo com a semiótica. Recalque nada mais é do que uma tentativa de apagar os signos. A interpretação dos sonhos é sobre transformações de signos. É isso que é.

Assim, voltei à teoria psicanalítica. Comecei a trabalhar em uma unidade básica de saúde para crianças. É muito importante que terapeutas trabalhem em unidades básicas de saúde, porque as mães... Havia uma mãe que não se sentia doente, não se identificava como uma paciente psiquiátrica e se dizia preocupada com o bebê. Este é o momento de capturar o peixe: quando ele chega à superfície. Foi aí que continuei, tentando unir a teoria psicanalítica a essa nova área empírica - pois penso que esta é uma das novas áreas empíricas da psicanálise. A psicanálise começou com pacientes adultos. Depois se desenvolveu em direção a crianças, grupos, famílias, instituições, psicanálise aplicada... E agora nós temos bebês - bebês e pais.

RBP | Quanto à semiótica, o senhor menciona seu artigo chamado "Fale comigo, bebê",4 que é o primeiro estudo. O senhor aplicou a semiótica nesse estudo. O método usado me parece bem rico. Já em seus outros trabalhos, a semiótica não é utilizada de maneira tão sistemática quanto nesse. Queria saber o que aconteceu, por que antes o senhor usava o método de Norman, que é centrado no bebê, mas usou a semiótica para mostrar que o bebê transmite e recebe signos, ícones e índices. Já estudei muito Peirce e achei que foi um dos melhores usos da semiótica. Hoje de manhã, em resposta a uma pergunta, o senhor disse que estava mais interessado no paciente bebê e agora que houve uma mudança. Gostaria de ouvir mais sobre isso.

BS | Está decepcionado que não continuei falando sobre semiótica? [Risos.]

RBP | Não. O senhor também colocou questões bem pertinentes em relação à biossemiótica.5 Em outro artigo, questionou se as coisas em biossemiótica são coisas em si. Parece estar usando todo esse instrumento, que não é muito apropriado. É uma questão teórica muito interessante. Não foi desenvolvida naquele trabalho, mas é uma área muito rica. Antes disso podemos fazer outra pergunta? O senhor preferiu usar as contribuições de Pierce porque não achou suficientes os conceitos freudianos de representação-coisa e representação-palavra?

BS | Não creio que Freud tenha sido muito preciso quando falou sobre representação-coisa. É um conceito que atrai a intuição das pessoas, das Ding, das Ding an sich e tudo o mais. O que Peirce consegue fazer muito melhor do que Freud é conceitualizar o que queremos dizer por Ding, objeto ou coisa. Eu suspeito que Peirce teria objeções a esse conceito de Ding. Ele dizia: "Não há nada que venha à mente senão por via de signos". Existe um momento em que eu vejo este gravador como um Ding? Peirce diz que existe algo chamado primeiridade. Por outro lado, Peirce diz que, se você captura a primeiridade, você a perde. Por exemplo, nós estávamos almoçando e eu queria ir ao toalete. Eu virei à esquerda achando que havia uma porta, mas vi um homem no lugar. Era eu! [Risos.] Era um espelho. Durante os primeiros 100 milésimos de segundo, tive a impressão de que era um homem, porque eu tinha a certeza absoluta de que era uma porta. Perdão pelo exemplo. [Risos.]

Mantive meu interesse em semiótica e nesse verão finalizei dois trabalhos relacionados ao assunto. Um deles é sobre metáforas, claramente um conceito semiótico. Comecei a me interessar por metáforas com a contratrans-ferência das sessões, e o meu interesse em falar com bebês nasceu da minha interação com eles. O outro artigo, também semiótico, refere-se ao uso da linguagem com um bebê, e isso tem a ver com a teoria lacaniana e de Dolto, o chamado parler-vrai. É difícil escrever sobre isso. Eu quis divulgar minha mensagem para o público norte-americano, mas eles não aceitaram o artigo. Penso em lançá-lo em outro local. O importante não é somente a questão de falar com o bebê e o bebê entender ícones e índices. A questão é falar com o bebê sobre coisas sérias. É isso o parler-vrai - falar a verdade, indicar ao bebê que há outra maneira de ficar com o bebê, que implica usar a linguagem para falar sobre assuntos difíceis. Por exemplo, vimos num vídeo uma mãe, Edna, usando parler-faux. Ela diz: "Talvez você não tenha bebido leite suficiente". Ela dá leite, o bebê não quer. Depois diz: "Ah, deve ter sido a fralda" Mas não era a fralda, era o relacionamento deles. Ela usou, por assim dizer, duas mentiras para explicar a angústia do bebê. A função do analista também é a de usar a linguagem sincera, mostrar ao bebê que a linguagem pode ser usada de outra maneira que não para acobertar alguma coisa.

RBP | É um ótimo ponto para a semiótica, pois não teria sido difícil lidar com isso com a semiótica. Então, qual seria a diferença entre os diferentes níveis categoriais dos signos em relação à ansiedade? Pelo que percebo, isso traz um novo problema para a semiótica. Imagino que o senhor já deva ter respondido essa pergunta várias vezes, mas para os leitores da nossa revista é importante: como o senhor articula o uso da semiótica de Peirce e a comunicação analítica que acontece entre o paciente e o analista, entre o bebê e a mãe? Que qualidade psíquica de fenômeno mental é expressa pelo inconsciente?

BS | Você disse que isso é um problema para a semiótica. Não tenho muita certeza disso. Vamos pegar como exemplo um bebê com angústia. O garoto do vídeo está angustiado, creio eu, por não conseguir ter contato com a mãe. A sua angústia é identificada, mas é medicalizada. Por exemplo, ela diz que precisa tirar leite com o sugador ou que precisa trocar as fraldas. Toda mãe comete esses erros de interpretação, mas, se persistir no erro e a razão principal das "mentirinhas" da mãe for sua ansiedade pessoal - ou, no caso dessa mãe, a dificuldade de atravessar a barreira, como eu chamo -, acho que o bebê sofrerá. Por isso acho importante que o analista use a linguagem. Ela deveria dizer claramente para o bebê que o problema não é da fralda ou do sugador de leite, mas da falta de contato entre eles. Eu usaria uma linguagem bem direta: "É sério, estou falando com você. O problema não é sua fralda, não. O problema é que você não recebe contato da sua mamãe". Isso é parler-vrai. Parler-faux seria falar que precisa trocar a fralda. Aí ela troca a fralda, e nada acontece.

RBP | Talvez o senhor pudesse resumir para nós o que isso tem a ver com a semiótica de Peirce.

BS | O jeito que olho e a minha postura diante do bebê são o meu ícone. O meu índice é a minha energia, e as minhas palavras também. A minha postura e as minhas palavras convergem em uma só.

RBP | As três categorias: elas têm que convergir, estão integradas.

BS | Sim.

RBP | Quando o senhor diz que a representação-coisa de Freud é um conceito difícil, algo que Peirce nos ajuda a entender é que as coisas estão sempre ligadas aos signos. Não há apenas coisas. Na semiótica de Peirce, temos um sistema de signos que está ligado diretamente aos objetos, inclusive às emoções. Isso é muito importante. Nesse aspecto, acredito que a semiótica também trata a ansiedade, principalmente a semiótica de Peirce, pois para ele existem o interpretante emocional e o energético, que estão particularmente ligados às experiências emocionais. Também há outro conceito muito importante na semiótica, a semiose, em que não se trata somente dos signos, mas também dos modos de criação das significações por meio deles. É interessante porque hoje, por exemplo, o senhor privilegiou a metáfora, mas também trabalhou com outros signos, índices e ícones na sua apresentação. E todos eles trabalham diferentemente.

BS | A ideia por trás do artigo era apenas concentrar-se em metáforas, pois eu havia ficado fascinado pela frequente ocorrência delas em meu trabalho com bebês e queria entender por que isso acontecia. Ainda acho que há vários enigmas. Usando o exemplo desse bebê: qual é a diferença entre dizer algo de modo sincero e genuíno - onde há essa confiança - e dizer de outro modo? Qual é a diferença entre parler-vrai e parler-faux? É como mostrar a diferença entre dizer a verdade e mentir, e nós sabemos que as pessoas mentem o tempo inteiro. Às vezes, sinto que estamos começando a entender como um bebê pode ser tão fortemente afetado. Será que cheiros podem afetar também? Se uma mãe tem ansiedade - diz coisas bonitas, mas está ansiosa -, ela tem um cheiro diferente que não podemos captar. Nós sabemos que mães são muito sensíveis ao cheiro do bebê - isso foi mostrado em vários experimentos. É certamente estranho. Não sei se precisamos entender, mas como terapeutas precisamos entender como contê-lo, como tratar a ansiedade, como fiz com esse garoto e sua mãe. Mas é muito fascinante.

RBP | Quando você fala com o bebê, você fala com a mãe.

BS | Isso.

RBP | Às vezes, o que você está dizendo e a sua atitude diante do bebê são muito úteis para a mãe. Isso faz parte do método, eu creio. É um modelo para a mãe.

BS | Sim. Você alega que fala com o bebê, mas na verdade está falando com a mãe. Assim, ela ouve o que você diz para o bebê e pensa: "Ah!". Fico feliz que ninguém aqui no Brasil tenha ficado surpreso com essa ideia. Em alguns países, isso é comum.

RBP | Mas como o senhor conecta a semiótica de Peirce com o inconsciente? Através de metáfora e metonímia ou como o deslocamento e condensação de Freud? Acha que é do mesmo jeito? Ícone, por exemplo, é um tipo de metonímia, e metáfora é um signo complexo, com os três níveis da semiótica de Peirce?

BS | Você está combinando aparatos conceituais de várias fontes, certo? Lacan dizia que deslocamento é metonimia e condensação é metáfora. Peirce nunca se concentrou especificamente em deslocamento ou metonímia. Metonímia e metáfora são duas figuras que ocorrem de acordo com Freud e Lacan. Você está perguntando qual é a ligação entre a semiótica de Peirce e o inconsciente. Talvez esse seja o tópico do meu próximo artigo. [Risos.]

RBP | Tudo bem, a gente espera.

BS | Nunca gostei da palavra inconsciente. Considero-a um termo impróprio. Ela dá a entender que vai haver uma passagem de inconsciente para consciente. Em 1915, Freud explicou que o inconsciente é quando há uma conexão com a representação-palavra. Não acho isso correto. Bebês têm consciência de um monte de coisas, mas não têm como expressar isso em palavras. Eu gostaria de falar em níveis de consciência, mas aí seria muito descuidado. Talvez as representações inconscientes sejam as que não têm uma estrutura. Podem ser apenas uma pequena imagem, uma sombra ou uma poeira. Tornar-se mais e mais consciente é tornar-se cada vez mais articulado, mais qualificado. Podemos comparar com as câmeras. No início, elas tinham poucos pixels, as imagens eram terríveis - mal dava para saber o que era uma mulher e o que era uma porta. Aos poucos, câmeras melhores foram inventadas e as imagens ficaram mais claras. Isso criaria uma terminologia que não poderíamos usar, porque não podemos usar pré-pré-pré-consciência ou in-in-inconsciência. Para resumir num tipo de fórmula matemática, eu diria que, quanto mais uma representação é inconsciente, mais ela é significada por ícones.

RBP | Infinitismo.

BS | Exato. Gostaria de voltar à sua pergunta sobre vídeo. Não uso vídeo. Há muitas pessoas que filmam as interações e depois assistem ao vídeo. Pessoalmente, não me sinto muito confortável com isso. Talvez porque ache que isso tenda a levar mais para o nível interativo. Quando a pessoa está olhando para você, está mesmo olhando para você. Esse é um comentário comum que recebo. E outra coisa: acho que nesses tratamentos que mostrei uso muito a minha própria pessoa. Eu construo um relacionamento com a mãe e com o bebê. Há momentos em que dá para ver uns fenômenos de transferência do bebê para mim. Então, não sou muito a favor de usar essas técnicas de vídeo.

Agora, para comparar com Peirce... Sim, acho que a minha ideia era... Análise pode ser complicada... O que a psicanálise pode adicionar à semiótica de Peirce é o relacionamento entre terapeuta e paciente. Peirce não sabia nada de psicanálise e Freud também não se interessava muito por Peirce - o que é uma pena -, mas esse é o nosso dinamismo, é a nossa maneira de fazer da semiótica uma ferramenta para ajudar pessoas.

RBP | No vídeo que vimos hoje, foi muito interessante ver a sua prosódia, os movimentos com suas mãos. É incrível como o senhor usou seu corpo para olhar para o bebê, dar uma continência à mãe. É muito interessante ver como o analista pode ajudar a mãe e o bebê, falar sobre o ritmo, a disponibilidade mental. E na sessão o senhor insiste, dizendo: "Você está triste". Porque há algo se movimentando dentro do senhor, e o senhor promove um surgimento da mãe atrás da parede.

BS | Eu gravo muito raramente.

RBP | Quando você grava?

BS | Quando eu quero entender o processo... e ter algum material para escrever e apresentar.

RBP | Espontaneamente.

BS | É importante ter um bom contato com a mãe. Quando se grava, vira uma demonstração, e eu não gosto disso.

RBP | No nosso grupo, há um projeto que usa vídeos para trabalhar depois da sessão, e tem sido muito interessante. O senhor poderia nos dizer a diferença entre terapia infantil, terapia de mãe e bebê e observação de bebês?

BS | Como disse, tenho pouca experiência com observação de bebês, mas já vi várias apresentações, e uma coisa que sempre me machuca um pouco é que vejo muito sofrimento. O observador é tão passivo! Mas acho que eles têm intuições bem interessantes, e essa disciplina tem nos ajudado. Fico pensando: por que eles iriam querer fazer terapia? É um casal que está sofrendo.

RBP | O senhor poderia resumir quais ferramentas usa para trabalhar com pais e bebês?

BS | Grande pergunta. Você quer um "resumão", certo? [Risos.]

RBP | Porque a próxima pergunta é como esse trabalho com bebês ajuda no trabalho com adultos.

BS | Observo muito a minha contratransferência. Observo muito abertamente o que tem sido dito e mostrado, a qualidade do olhar do bebê, o cheiro, a postura, o ritmo e a musicalidade da voz. Nesse carrossel todo, tento criar um espaço mental em que eu possa refletir sobre o que está acontecendo. Então, minhas ferramentas são: contenção, observação e reflexão.

RBP | São ferramentas psicanalíticas.

BS | Exato. Se perguntassem o que os psicanalistas fazem, vocês provavelmente diriam o mesmo. A diferença seria o setting. Quando vejo esses vídeos, digo para mim mesmo: "Por que você falou de amamentação? Por que olhou dentro da boca dele?". Sou um médico, sim, mas não estou lá como médico. Eu me sinto um pouco envergonhado. Mas aí parei para pensar e percebi que todos nós fazemos isso. Você está sempre na rêverie? Não. É nessa parte que vejo que o trabalho de Norman estava certo. Um psicanalista de terapia em grupo diria a mesma coisa.

RBP | Mas com os bebês é preciso experiência para entender as respostas não verbais.

BS | Com adultos também. Quando eles estão falando, você ouve o tom de voz do paciente.

RBP | Mas isso nos permite ficar mais conectados com o bebê dentro de nós. Quando se trabalha com bebês, fica-se muito mais aguçado para ouvir o bebê dentro do adulto.

BS | Acho que meus colegas em Estocolmo também dizem que esse trabalho os deixou mais à vontade para tratar experiências infantis.

RBP | Com adultos.

BS | Sim.

RBP | Meltzer dizia que todo psicanalista deveria trabalhar com crianças pequenas pelo menos uma vez. Não necessariamente bebês, mas crianças pequenas.

BS | Ele gostava do trabalho do Norman. Ele ia muito para a Suécia.

RBP | Poderia falar um pouco sobre sua pesquisa com as enfermeiras da unidade básica de saúde (ouvindo as mães etc.)? No fim do livro, o senhor escreveu que estava trabalhando nessa unidade. O senhor pretende fazer um follow-up quatro ou sete anos depois?

BS | Quatro anos e meio. Dez anos atrás, telefonei para a unidade básica e comecei a trabalhar lá. É importante fazer propaganda desse tipo de trabalho. Penso que há um grande mal-entendido quando se trata de saúde mental infantil. É algo que a mãe sente - medo de ser identificada como paciente psiquiátrica. Mas a mãe fala de outra maneira com a enfermeira: "Estou preocupada. Está vendo essa alergia aqui?". Isso se repete na próxima vez: "Está vendo essa alergia aqui?"; "Eu não consigo dormir"; "Ele não consegue dormir". Todos sintomas "fofinhos". E, quando falo com elas, em uma hora já se veem resultados. É muito recompensador trabalhar com essas mães, porque estão abertas a aprender. Por exemplo, a mulher do vídeo. Digo a ela: "Você está triste. Você está triste". E por isso é importante ter um terapeuta trabalhando em unidade básica.

RBP | Você acha que esse trabalho pode diminuir os indicadores de risco de autismo nos bebês?

BS | Eu não diria que o meu trabalho sirva para prevenir autismo. Não sei, eu não saberia dizer.

RBP | Porque esse bebê, Leonardo, ele mexe os olhos...

BS | Mas ele não tem autismo.

RBP | Não mesmo, ele olha para o senhor e procura a sua voz etc.

BS | Então, eu não sei. Hoje em dia, tenho muito cuidado com autismo. Tenho muito pouca experiência com isso e não tenho certezas. Prefiro não fazer afirmações, mas acho que já ajudei a prevenir alguns casos.

RBP | Muito obrigado, dr. Salomonsson, pela gentileza em compartilhar suas ideias conosco.

BS | O prazer é meu. Fico feliz em ter vindo parar em um lugar onde todo o mundo tem ideias parecidas. Então, se eu consegui inspirar mais pessoas a entrar nessa área e a escrever sobre ela, fico muito feliz. Muito obrigado.

 

 

1 Entrevista realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 20 de agosto de 2016. Participantes: Elsa Susemihl, Maria Cecília Pereira da Silva, Marta Úrsula Lambrecht, Paulo Duarte, Rogério Coelho e Rogerio Lerner.
2 Introdução escrita por Rogerio Lerner, professor associado 2 do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).
3 Salomonsson, B. (2017). Psicoterapia psicanalítica com crianças pequenas e pais: prática, teoria e resultado (S. A. R. B. Geraldini, Trad.). São Paulo: Blucher.         [ Links ]
4 Salomonsson, B. (2007). "Talk to me, baby, tell me what's the matter now": semiotic and developmental perspectives on communication in psychoanalytic infant treatment. The International Journal of Psychoanalysis, 88,127-146.         [ Links ]
5 A biossemiótica, campo recente e em desenvolvimento, estuda os signos, a comunicação e a informação nos organismos vivos.

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