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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2017

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Composições familiares e filiação na contemporaneidade

 

Family compositions and filiation in contemporary times

 

Composiciones familiares y filiación en la contemporaneidad

 

Les compositions familiales et la filiation dans la contemporanéité

 

 

Lisette Weissmann

Doutora em Psicologia Social pela USP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC. Membro do departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae. Membro da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF) e da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF). Supervisora habilitante de Asociación Uruguaya de Psicoterapia Psicoanalítica (AUDEPP). Autora dos livros: Famílias monoparentais e Atendimento psicanalítico de família

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, reflete-se sobre a família contemporânea e suas caraterísticas. Os modelos culturais e sociais funcionam como marco para a mudança nos relacionamentos familiares no século XXI - nos vínculos e nas funções familiares. Coloca-se o foco na filiação como um processo de apropriação do lugar filial. Estabelece-se uma diferenciação, em quatro categorias, dentro da função filial, e usa-se o caso Mariana Zaffaroni para ilustrar essas categorias.

Palavras-chave: família contemporânea, funções familiares, filiação


ABSTRACT

The article points out the contemporary family and its characteristics. Cultural and social models function as the background for the changes in the relationships within the 21st century family - in the bonds and functions of the family. The article focuses on filiation as a process of taking the filial place, and establishes four different categories within the offspring function. The author uses the Mariana Zaffaroni's case in order to illustrate these categories.

Keywords: contemporary family, family functions, filiation


RESUMEN

El artículo versa sobre la familia contemporánea y sus características. Los modelos culturales y sociales permanecen como marco de fondo para los cambios en las relaciones dentro de la familia del siglo XXI - en los vínculos y las funciones familiares. Se centra en el concepto de filiación como un proceso de apropiación del lugar filial. Se establece una diferenciación, en cuatro categorías, dentro de la función filial, y se usa el caso Mariana Zaffaroni para ilustrar esas categorías.

Palabras clave: familia contemporánea, funciones familiares, filiación


RÉSUMÉ

L'article montre la famille contemporaine et ses caractéristiques. Les modèles culturels et sociaux fonctionnent comme un repère de fond pour les changements des rapports dans la famille du XXIe siècle - des liens et des fonctions familiaux. On met l'accent sur la filiation, comme un processus d'appropriation de la place filial. On établit une différentiation composée par quatre catégories, dans la fonction filiale, et on utilise le cas Mariana Zaffaroni pour illustrer les catégories.

Mots-clés: famille contemporaine, fonctions familiales, filiation


 

 

Introdução

Quando pensamos na família e em suas conformações na contemporaneidade, abre-se uma infinidade de opções. Neste artigo, nós nos propomos, primeiramente, a delinear a família contemporânea, apelando a diversos autores que tentam lançar luz sobre o tema; em seguida, abordamos o lugar filial, espaço que se tem modificado em razão das inúmeras possibilidades de núcleo familiar que se apresentam na contemporaneidade. A linha teórica do trabalho vincular é a psicanálise das configurações vinculares.

Muitas perguntas surgem quando se trata de achar uma composição que defina a família contemporânea. Uma avó mora com as netas e o filho, pai dessas netas: eles formam uma família? Uma mãe partilha o teto com os filhos e o ex-marido: eles compõem uma família? Um casal de avós mora com dois netos, irmãos entre si, que perderam os pais: eles são uma família? Uma mulher convive com o atual parceiro ou parceira, com os filhos de um e de outro: isso é uma família?

Começo tentando dar respostas às perguntas a partir de pesquisas quantitativas, para depois me aprofundar no tema com um olhar qualitativo e psicanalítico.

Quentin Fottrell, no artigo "Famílias americanas com dois pais alcançam o mais baixo nível em 50 anos" (2015), enfatiza que a família moderna tem substituído a família tradicional. Uma pesquisa do Pew Research Center, de Washington, observa que apenas 69% das crianças na atualidade moram em um lar biparental. Nesse tipo de família, amplia-se a variedade de arranjos familiares, devido ao incremento do divórcio, do recasamento e da coabitação. Por outro lado, 26% das crianças moram em um lar monoparental. A pesquisa assinala que famílias monoparentais apresentam maior probabilidade de viver abaixo da linha de pobreza, o que também foi constatado por Weissmann (2009) nas famílias monoparentais brasileiras, indicando que essa situação não é exclusividade das famílias americanas.

De acordo com a pesquisa do Pew Research Center, baseada em famílias com filhos abaixo dos 18 anos de idade, o cenário é o seguinte: em 1960, a taxa de crianças que moravam com os dois pais era de 87%; no ano 2000, essa cifra desceu para 73% e, em 2014, para 69%. Da mesma forma, em 1960, os lares que tinham somente um pai correspondiam a 9% do total; no ano 2000, chegaram a 22%, subindo novamente em 2014 para 26%. Avaliando essa pesquisa, podemos concluir que os lares com dois pais morando juntos têm decrescido consideravelmente e, em contrapartida, os lares com somente um pai como chefe de família têm crescido em grandes proporções.

Na verdade, as pesquisas apontam diversas mudanças nos formatos familiares tradicionais. Em primeira instância, as famílias não tradicionais excedem em número às famílias tradicionais biparentais, o que não se deve somente aos casais homossexuais, visto que menos de 1% das famílias não tradicionais são constituídas por casais parentais do mesmo sexo.

A maioria das famílias atuais tem se tornado mais complexa e menos tradicional, reforçando a ideia de que não se trata de um declínio dos casamentos tradicionais, mas de um incremento da diversidade familiar. Os adultos estão se casando mais tarde, morando em coabitação (em vez de se casar), transformando-se em pais solteiros ou fazendo parte de famílias recompostas, famílias arco-íris ou famílias "os meus, os teus e os nossos".

Outro índice revela que as famílias atuais são mais instáveis, já que são conformadas por adultos parceiros que vão e voltam, o que pode afetar a estabilidade e o bem-estar infantil dentro da família. Os pesquisadores assinalam que os adultos estão se casando com menor frequência, de sorte que os serviços de ajuda social e as políticas públicas deveriam centrar-se no atendimento aos pais que não têm a guarda da criança, mas que operam no lugar parental.

Muitas são as mudanças nos formatos familiares que os sujeitos do século XXI experimentam, levando-os a se colocar em um lugar de escolha para seu viver cotidiano e sua convivência mútua.

Nas pesquisas qualitativas dentro da psicanálise, a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco reflete sobre as famílias atuais no livro intitulado A família em desordem (2003). De que desordem estaria ela falando?

Quando uma mãe diz na consulta "Eu sou mãe e pai de meus filhos, ao mesmo tempo", a que se refere? Se ela é mãe, por que tem de trazer à tona a figura do pai, que não faz parte desse vínculo, tentando, através da fala, preencher um lugar com uma pessoa que não o ocupa? Todavia, a fala persiste e aparece como clichê nas pesquisas sobre as famílias monoparentais, nas quais várias mães a repetem. Talvez estejamos diante da insistência de um lugar esperado, do ponto de vista social, que provém de séculos anteriores, mas que se instala como um espaço estabelecido no núcleo familiar atual. Parece que a estrutura familiar, no século XXI, ainda arrasta, de maneira inconsciente, um ranço das conformações sociais de séculos anteriores e reclama por esse formato, o qual retrocede à família burguesa (pai, mãe e filhos), esperada no imaginário social.

O que acontece é que a contemporaneidade nos defronta com muitas perguntas sem resposta. Por um lado, modifica-se o status quo dos formatos de família dos séculos anteriores; por outro, parece que persiste, na memória social e nas estruturas vinculares inconscientes, a forma de constituir família de tempos anteriores.

 

Subjetividade vincular

Para aprofundar nossa reflexão, partiremos do conceito de vínculo, cunhado pela psicanálise das configurações vinculares, a qual considera vínculo tudo aquilo que liga dois ou mais sujeitos em presença, com o entre como laço que cria uma unidade vincular, com um embasamento inconsciente.

Na atualidade, o que se tem modificado é a conformação dos vínculos - e isso subverte a ordem anterior, a qual organizava a estrutura familiar que fazia parte de nosso imaginário social, ordenando-nos. Por isso, poderíamos sustentar que, no século anterior, sabíamos quais tarefas se atribuíam à mãe e quais atitudes a sociedade esperava que o pai e os filhos tivessem. Hoje em dia, se no mesmo núcleo familiar temos duas mães, como saber quais tarefas competem a uma e à outra mãe? Acreditamos que o conceito de função nos salva desses becos sem saída: falamos de função materna, função paterna e função filial sem aludir diretamente a um sujeito que deveria preencher determinado papel, remetendo antes a alguém que desenvolva uma função, necessária em toda conformação vincular familiar. Dessa forma, pensamos em uma função não atrelada a sujeito nenhum nem a biologia nenhuma; pensamos naqueles quefazeres esperados na subjetividade vincular estabelecida para cada função.

Gostaria de citar um evento que Sara Amores relata no livro Diagnóstico vincular (Amores et al., 2013) e que me parece significativo. A comunidade europeia teve de definir o termo família - em um projeto para os países-membros - e, em face da multiplicidade de formas familiares (monoparen-tais, reconstituídas, famílias de casais homossexuais etc.), ela o fez baseada no conceito de função. Aquilo que permanece além e aquém das mudanças são as funções familiares. Dentro delas, caracterizam-se a função materna como sustentação e amparo, a função paterna como corte e diferenciação, e a função filial como condição e negação, ao mesmo tempo, da conformação da família, marcando uma passagem do casal à família.

Por outro lado, no Brasil, também se está pensando na mudança do verbete família no Dicionário Houaiss, já que o conceito tem se transformado muito. Para tais fins, os editores procuram uma definição que contemple um alto índice de inclusão social e que abarque toda a diversidade que o termo família inclui na atualidade. Segundo uma matéria de Clarissa Thomé publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 24 de abril de 2016, "o verbete está sendo construído com base nas contribuições dadas pelas redes sociais e vai substituir o atual".

Assim, para elaborar a nova definição do verbete família no referido dicionário, procura-se abrir uma discussão social que possibilite ir além da atual definição, na qual "família é um grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (esp. o pai, a mãe e os filhos)". Mauro Villar, diretor do Instituto Antônio Houaiss, afirma que "a sociedade e seu pensamento são dinâmicos e hoje têm grande mobilidade. Por essa razão, o dicionário tem de ficar atento" (citado por Thomé, 2016). Vemos como a teoria vai se escrevendo, após as práticas sociais alertarem sobre a ineficiência dos termos anteriores e a falta de adequação deles aos tempos atuais. Os editores tentam se haver com o conceito de convivência, com o amor que se abre para a escolha desse núcleo familiar, com os laços afetivos que se estruturam e, fundamentalmente, com o afeto como efeito de união e escolha na conformação dos laços de parentesco familiar. Essa experiência está sendo construída, e teremos de aguardar para ver o seu desfecho, na nova definição do termo família no dicionário.

O grande desafio do século XXI é a mobilidade, complexidade e labilidade nos vínculos e em suas formas sociais. A maior abertura e a maior liberdade outorgam possibilidades e oportunidades para criar vínculos diversos; contudo, nos deixam desamparados em comparação com aquela organização social que, nos séculos anteriores, indicava lugares, posições, deveres e obrigações. Essa extrema liberdade, por momentos, deixa o sujeito contemporâneo no desamparo total, perguntando-se como ocupar os lugares que fazem parte da estrutura social e familiar.

O psicanalista argentino Miguel Alejo Spivacow ressalta:

Talvez a liberdade atual com relação aos modos de formar casais, a possibilidade de múltiplos formatos que hoje a sociedade oferece, tenha relação com os modos de sofrimento dos casais contemporâneos. Se há décadas o caminho previsível era noivar, comprar os móveis, armar um ninho habitacional e seguir os passos do que era a família aceita pela sociedade da época, hoje, em contrapartida, os casais devem decidir sobre questões que antes corriam em trilhos estabelecidos. ... Nessa realidade, muitas opções, que antes estavam proibidas pelos imperativos da sociedade, hoje aparecem como permitidas e configuram terrenos de conflito e desavença. A liberdade, sabemos, nem sempre traz felicidade, menos ainda em um vínculo no qual os distintos participantes costumam aspirar a diferentes liberdades. (2013)

Destacamos como, a partir desses casais da contemporaneidade, surgem as famílias da atualidade. Estas já não nascem de dois sujeitos solteiros que decidem se unir em matrimônio, para depois constituir uma família, mas de sujeitos com diversas histórias vinculares que se escolhem e se unem, levando junto os membros nascidos dos vínculos anteriores. Assim, as famílias de hoje têm por base os segundos, terceiros ou quartos casais que se formam - famílias que chamamos de ampliadas, arco-íris, reconstituídas, "os meus, os teus e os nossos"; são vínculos sustentados pela escolha atual, sem aquela perenidade que os vínculos dos séculos anteriores acarretavam.

Quando Roudinesco (2003) alude à desordem familiar, está comparando a família desordenada àquela que, internamente, nos diz de uma ordem e de uma segurança estabelecidas pela cultura, às quais os sujeitos antigamente tinham de se submeter e se sujeitar. Se nos referimos à desordem, é porque temos internamente uma figura que nos norteia e aponta para a ordem e o estabelecido.

Nas famílias monoparentais, a não ocupação do lugar designado é uma opção e uma escolha, não uma perda e uma falta. Em uma dessas famílias, a mãe reclamava do cheiro insuportável - para ela - que os filhos homens adolescentes traziam para dentro de casa cada vez que vinham da rua, o qual ela nomeava de cheiro de chulé. Quando questionada sobre a origem do cheiro, a conclusão mostrou que o que era insuportável, para ela, era o cheiro de homem que esses filhos jovens, não mais crianças, traziam, uma vez que ela tinha feito a escolha de conformar uma família sem uma figura masculina - com uma figura materna única ao lado dos filhos crianças. O lugar de homem, terceiro, diferente, alteridade, afastava-a de sua escolha, pela qual procurava não ser interrompida, banida ou barrada em nenhuma decisão. Em decorrência, surge o que Roudinesco chama de poder das mães. Não é à toa que se tem tornado muito popular, no Brasil, a canção das mulheres "poderosas". Como resultado disso, a função que fica enfraquecida é a paterna.

Um paciente que tinha acabado de se separar da esposa dizia: "Eu não sei mais como ser homem ao lado das mulheres de hoje em dia. Elas me abordam. Eu não estou acostumado a isso" A mudança aparece fortemente marcada nos lugares feminino e masculino: abandonam-se as formas anteriores, segundo as quais o lugar feminino implicava uma posição passiva e o masculino uma posição ativa; essas formas estabelecidas de ocupar os diversos lugares de gênero parecem ter ficado vinculadas, na contemporaneidade, mais a escolhas pessoais e menos a estipulações sociais que as organizem.

 

Famílias do século XXI

Voltemos às famílias da contemporaneidade. Por um lado, há liberdade para fazer parte de quaisquer formatos familiares que deixem confortáveis os sujeitos que os conformam; por outro, parecem ter sumido os modelos norteadores e asseguradores que funcionavam como garantia às famílias e a toda a organização social.

Roudinesco (2003) cita um modelo de mulher europeia desenvolvida, que vai ao banco de esperma para ser inseminada sozinha. Pensando na mulher do Brasil, porém, cabe perguntar como seria a escolha de monoparentalidade na cultura brasileira. Uma pesquisa no escopo das ciências sociais (citada por Weissmann, 2009) aprofundou o estudo sobre as mulheres de famílias monoparentais. Ao perguntar-se às mulheres por que achavam que estavam sozinhas, elas responderam que os homens eram preguiçosos, que eles não queriam trazer dinheiro para casa e colaborar no plano financeiro familiar. Quando indagadas sobre como gostariam que fosse sua vida rotineira, disseram desejar que o homem fosse o provedor financeiro, para que elas pudessem ficar em casa, cuidando dos filhos e do lar, sem ter de sair para trabalhar.

Portanto, aquela fantasia de mulher desenvolvida e independente do século XXI, sozinha, autônoma, que prescinde do parceiro, cai por terra no momento de caracterizar a mulher brasileira, e emerge o imaginário social do século anterior no século atual, imaginário no qual prevalece a ideia da família tradicional nuclear e burguesa, que parecia ter sido abandonada. A família, modelo que subjaz a todo imaginário social, também inclui essas mulheres chefes das famílias monoparentais.

No livro Famílias monoparentais, descrevo:

As famílias do século XXI constroem modos de intersubjetividade específicos, concernentes a sua época. Assim, a família seria pensada tanto pela função paterna quanto pela função materna e filial. Pensamos as famílias atuais não em uma justaposição com as famílias de épocas anteriores, cuja ordem tem-se perdido, pois, na verdade, não se tem perdido, mas tem apenas se modificado. Talvez tivéssemos que lançar um olhar sobre a família pensando-a como as famílias. Essa conceituação, pelo plural, inclui a diversidade e a pluralidade de arranjos familiares que as pessoas fazem no mundo contemporâneo. Concluímos com a ideia de que cada família monoparental é única e depende de possibilidades próprias, como conjunto a funcionar como um dos tipos de família da atualidade, no qual se possam respeitar as diferenças. Famílias que passaremos a chamar de as famílias monoparentais, no plural, cada uma com seu perfil peculiar. (Weissmann, 2009, p. 177)

Ao nomeá-las como famílias, estamos ampliando o escopo para dar espaço à diversidade que se abre na estrutura dos grupos familiares da atualidade. As famílias encontram-se amplamente imersas em uma cultura e em uma época, que as formatam e as modificam. Tomemos as palavras de Sara Amores:

Pensar na família é pensar em um entroncamento sujeito-vínculo-cultura. É pensar nas mudanças que o sociocultural produz na família e na influência que esta tem, por sua vez, nas mudanças de época. Ou seja, apontamos a família como produzida e produtora ao mesmo tempo, como intermediária entre o sujeito e a cultura. Está imersa na cultura, da qual toma seus valores e ideais, os "metaboliza" e os reenvia, em um intercâmbio constante e recíproco. Deve tentar um delicado equilíbrio entre os valores que recebe da cultura, os que recebe de suas famílias de origem e aqueles que correspondem a cada sujeito. (Amores et al., 2013, p. 69)

Isso nos conduz a pensar a família como uma estrutura vincular inserida e influenciada pela cultura na qual se constitui, assim como por sua época. Concebo a família como uma produção vincular cultural e de época. As mudanças, na atualidade, atingem tal rapidez e vertigem, que as famílias não são diferentes somente das de 50 anos atrás, mas até mesmo das de uma década atrás. Nesse sentido, nós, analistas de casal e família, temos de nos defrontar com muitas transformações, conseguir nos questionar sobre elas e compreendê-las.

Isidoro Berenstein (2001) define a família como um conjunto vincular constituído por pactos e acordos inconscientes, os quais a estruturam e indicam um modo de processar o prescrito e o proibido. Os pactos e acordos, por serem inconscientes, não são enunciados nem formulados, mas aparecem nas produções familiares e em suas maneiras de se vincular e construir vínculo familiar.

Cada família, ao longo do tempo, tem o dever de se reestruturar e de se reescrever. Aqueles pactos e acordos inconscientes que configuraram a família com filhos crianças devem ser reescritos, diante do devir temporal e da mudança, para sustentar e dar espaço a adolescentes junto a pais de adolescentes, e assim por diante.

Os valores contemporâneos exaltam a juventude, a vida sem marcas da passagem do tempo, aquilo que uma canção de Rod Stewart ressalta como forever young - sempre jovens, anulando os traços que marcam uma temporalidade. A juventude parece ser o mais valorizado e apreciado pela contemporaneidade. Em algumas situações, os pais e os filhos parecem ficar igualados, ambos no presente contemporâneo jovem, de modo que pais e filhos vão às mesmas baladas, compartilham amigos e noitadas etc. Os pais, adultos, através de cirurgias e vestimentas juvenis, tentam igualar-se aos filhos adolescentes - como se quisessem fazer desaparecer as diferenças geracionais, anular a antiga brecha geracional.

Logo, parece não haver mais lugar para aquela linha que separava uma geração da outra. Certos pais diziam, em uma consulta, sentindo-se muito orgulhosos, que eles eram amigos dos filhos. Ao ser amigos dos filhos, porém, eles os deixam sem pais, já que amigos poderiam achar em qualquer lugar. Os filhos precisam de pais que se posicionem diante deles, para serem apoiados e sustentados, até nas diferenças geracionais. Winnicott (1986) enfatizava que os pais tinham de sobreviver aos embates dos filhos e sair ilesos. Entretanto, essa posição parental, que opera a partir da função parental, parece ir na contramão dos ideais contemporâneos. Essa questão se abre para a tentativa de sair dessa encruzilhada e pensar: como devolver os pais aos filhos e os filhos aos pais?

 

Filiação no século XXI

Discutiremos agora o conceito de filiação e as modificações que têm acontecido nas famílias do século XXI, em cujo seio encontramos filhos biológicos, filhos adotados, crianças criadas em instituições, filhos criados pelos parceiros de seus pais biológicos, que operam a função parental, famílias de casais homossexuais que adotam filhos, famílias de casais homossexuais com filhos de matrimônios anteriores etc.

O conceito de filiação implica a passagem da ideia de ter uma criança à de ter um filho. Isidoro Berenstein aborda a necessidade de

diferenciar entre o desejo de ter um filho e o desejo de ter uma criança. No primeiro caso, trata-se de um desejo possível posto em prática em um vínculo com outro, em uma relação denominada casal na qual se produz um terceiro como representação vincular, dando lugar a uma criança que se transforma em filho e levando o homem-marido a transformar-se em pai e a mulher-esposa a transformar-se em mãe. Ocasionalmente, a mulher ou o homem, por diferentes motivos, podem desejar uma criança como prolongação de seu próprio ego. Assim, sustenta-se a fantasia do filho como falo e de ter nele um sucessor de si mesmo, não modificado pelo vínculo de casal. (2001, p. 32)

O projeto de ter um filho ou de ter uma criança vai se coadunar com a maneira como o par se constitui como casal e com o fato de o filho ser aguardado nessa configuração, com suas características específicas, ou não.

Na passagem de ter uma criança para ter um filho, pensamos em adultos que assinalam uma criança e a indicam, no lugar de filiação, atrelada a eles mesmos, e em crianças que aceitam e respondem a essa assinalação. Tratamos, porém, de vínculos que se constituem entre esses sujeitos, por destino e também por escolha.

Podemos pensar a filiação sendo constituída por diversas dimensões, mas nenhuma delas, por si só, é suficiente para defini-la ou completá-la; são distintas magnitudes, que operam em um desajuste permanente, sempre tendo de ser repensadas. Graciela Rajnerman e Griselda Santos (2014) descrevem a filiação com base em algumas dimensões: a biológica, a libidinal, a sociocultural e a jurídica. Essas dimensões se superpõem de maneira parcial e ficam em uma tensão permanente, na qual vão entretecendo-se em uma trama habitada pelos sujeitos, construindo-se em toda a sua complexidade. Trabalharemos essas dimensões, em suas diferenças, superposições e homologações, à luz de um caso que permite visualizar e dar conta da importância de tais conceitos.

A dimensão biológica aponta para a criação da vida e constrói o sistema de parentesco, considerado pela antropologia na organização da sociedade. Isso tem um valor imaginário, que une as crianças a seus progenitores, mas que se quebra nas situações de adoção, de institucionalização e de inseminação artificial. O enigma das origens junta-se aqui aos relatos que reúnem a trama e os fantasmas que sustentaram o nascimento da criança, a que, por sua vez, devem o filho. O mito das origens requer ser estruturado, fantasmatizado e cultivado permanentemente, em um espaço imaginário comum familiar, além da biologia que une e vincula.

Abordaremos um caso real que aconteceu nos países limítrofes ao Rio da Prata: o caso Mariana Zaffaroni (Mango, 2006). Nós nos propomos a ir além e aquém da dimensão política que o caso abrange, para pensá-lo como exemplo das diferentes dimensões do lugar de filiação em sua relação com a parentalidade.

As mães da Praça de Maio, na Argentina, tantos anos depois da queda da ditadura no país, continuam a buscar os laços biológicos que as ligariam aos filhos desaparecidos durante a ditadura militar, no mundo real de seus netos biológicos. Essa procura continua, apesar do conhecimento de que ela pode, em sua potência subjetiva, portar uma força destrutiva e danosa para os filhos dos desaparecidos, visto ser capaz de atentar afetivamente, na contramão de situações vinculares fantasmáticas de ordem não biológica, com o encontro dos netos por meio de exames de DNA.

Durante as ditaduras militares na América Latina, pessoas eram detidas e depois desapareciam com os filhos (crianças ou bebês). Na impossibilidade de elaborar o luto, sem poder enterrar os corpos dos filhos desaparecidos, as mães da Praça de Maio dedicaram-se a procurar os netos biológicos, que teriam sido dados em adoção a sujeitos relacionados direta ou indiretamente com os torturadores, os quais processavam o desaparecimento dos pais biológicos dessas crianças. Exemplo disso é o caso Mariana Zaffaroni.

Jorge e Maria Emilia, dois jovens uruguaios, são presos em 1976, pela polícia militar, com sua filha Mariana, de 18 meses de idade. Os três desaparecem, e os avós começam a procurá-los, tanto no Uruguai como na Argentina, já que os governos militares operavam conjuntamente, não deixando pistas dos detentos que depois se tornariam desaparecidos. Com o fim da ditadura, continuam as buscas: em Buenos Aires, a avó procura a neta biológica e acaba por encontrá-la. Ela chama-se Daniela Furci e tem 17 anos. Os pais adotivos tentam anular toda possibilidade de aproximação com a família biológica da moça, até que a intervenção jurídica no caso o faz de forma coercitiva. Os exames de DNA indicam que ela é Mariana Zaffaroni, e não Daniela Furci. Os pais ilegalmente adotivos são condenados a sete anos de cárcere, e o juiz diz à moça que ela pode escolher qual será sua família. Daniela/Mariana não tem nenhuma dúvida: seus pais são os Furci, que a criaram, de modo que afirma: "Prefiro me sentir ilegal, e não traidora" (Mango, 2006, p. 42). Daniela não quer trair nem seu nome, agora reconhecido como adotivo, nem sua identidade, pertencente à família Furci, além e aquém da biologia. Essa é sua escolha.

Winnicott (citado por Mango, 2006) enfatiza que toda criança adotiva sabe mais em seu corpo do que em sua psique que ela é adotiva; porta um saber corporal sobre o ventre materno e os cuidados recebidos na primeira infância. Daniela/Mariana emociona-se diante do juiz ao lhe apresentarem fotos da mãe biológica grávida dela, mas sua escolha é persistente: esqueceu propositalmente Mariana e escolheu ser Daniela. Vemos como, para Mariana, a dimensão biológica não constitui seu vínculo de filiação.

A segunda dimensão da filiação é a libidinal, que vem do desejo do outro. Inicia-se no narcisismo materno e em sua possibilidade de vazar para a cria, unindo corpos pelo enlace libidinal. Adiciono aqui a ideia de que essa dimensão parte não só do narcisismo materno, mas também do paterno, em conjunção com o materno, constituindo um narcisismo parental disposto a investir no filho. O desejo de filho se constrói a partir de um enlace fundador e de uma pessoa ou pessoas que desejam que o filho viva e perdure.

O desejo de filho não é inato - deve ser construído entre sujeitos que tecem um vínculo de amor. No entanto, parte do lugar parental e precisa ser aceito e recebido como tal pelos filhos libidinizados. Trata-se de confirmação e elaboração vincular, o que constitui dois espaços habitados por sujeitos unidos por um laço que chamamos de entre, que precisa ser confirmado por ambas as partes.

Voltemos ao caso Mariana Zaffaroni para pensar a dimensão libidinal. Esse investimento libidinal foi exercido pelos pais biológicos, sobre a filha desaparecida e pelos avós sobre a neta biológica. Contudo, esse laço libidinal parece se romper aos 18 meses de idade, quando a menina é arrestada pela polícia com os pais biológicos e, depois, entregue a pais adotivos (sem o consentimento dos familiares biológicos que poderiam reclamá-la). Quando é encontrada pela família biológica, 17 anos depois, Mariana decide conscientemente deixar no esquecimento dos primeiros anos de vida essas lembranças: declara não se recordar de nada e, desse modo, assume e sustenta o investimento libidinal que seus pais adotivos depositaram nela.

Diante do movimento de busca da família biológica, Daniela/Mariana fica muito incomodada e pergunta a eles por que fizeram isso, por que procuraram desmascarar sua origem biológica, perturbando-a. Ela diz: "Por que vocês me fizeram isso, vocês não pensaram em mim?" (Mango, 2006, p. 41). Esse é um momento de rompimento de Daniela/Mariana com a dimensão biológica e libidinal. A dimensão libidinal da família biológica, por sua vez, também se rompe quando a avó, referindo-se à neta, afirma: "Ela não nos quererá jamais" (Mango, 2006, p. 43).

A avó terá de elaborar o rompimento com a libidinização que o possível vínculo com Daniela/Mariana poderia lhe providenciar, já que o percurso libidinal supõe um caminho de mão dupla dentro do vínculo: um decide libidinizar o outro, sempre que o outro estiver disposto a ser libidinizado por ele. O vínculo indica um caminho de ida e volta entre os sujeitos que o compõem, percurso que precisa ser construído e ressignificado a vida toda. Algo do libidinal só percorre os afetos da avó; a neta biológica fica de fora, não os reconhecendo libidinalmente. Como se trata de uma escolha libidinal, Daniela faz a sua: ela é Daniela, filha dos Furci.

A terceira dimensão é a social, um sistema simbólico-cultural que ordena a filiação, mas sem cobri-la totalmente. Sustenta as categorias de pai, mãe e filho, ordenando as funções e construindo vínculos dentro do núcleo familiar. Cria e apoia os ideais sociais do sistema familiar valorizado por cada cultura.

Com a queda da ditadura militar, Mariana era esperada como a neta que permitiria elaborar a morte da mãe desaparecida e, dessa forma, restabelecer socialmente o núcleo familiar esfacelado. Na sociedade rio-platense, esse caso tem ampla repercussão, já que o contexto social aguardava que a jovem retornasse ao núcleo familiar biológico, mas ela percorre outros rumos. Grande é o impacto quando Mariana, agora Daniela, vai contra a dimensão social, a contraria e fica com a família adotiva, mesmo sabendo que não pertence a ela, nem biológica nem socialmente. Algo no plano social fica sacudido e questionado quando Daniela toma sua decisão com respeito ao seu lugar de filha.

Por último, temos a dimensão jurídica da filiação, que ocupa um papel central na sociedade e em suas normas. Para a psicanálise, ela também se associa ao inconsciente, visto que tanto as categorias jurídicas como as inconscientes têm um valor de marca e de inscrição. Trata-se igualmente de categorias significantes da língua, que reconhecem cada um como parte de um sistema de semelhantes entre si, os quais integram um todo social que organiza e legisla sobre os sujeitos que o conformam.

No caso Mariana, o juiz, diante do veredicto do exame de DNA, envia os pais adotivos para a cadeia e ordena que Mariana mude o nome e o sobrenome para os antigos, mas também permite que ela escolha a qual família quer pertencer - com base nisso, emitirá seu juízo. Daniela/Mariana diz que vai pensar, mas que seus pais são os Furci. Dessa forma, judicialmente, fica amarrada à sua escolha libidinal de filiação, assinalando como algumas dimensões possibilitam fazer escolhas subjetivas e outras obrigam a aceitar enlaçar-se a tais escolhas.

A dimensão biológica, depois da invenção do exame de DNA, aparece como aquela dimensão fixa que responde a um veredicto que o sangue e a biologia ditam. Todavia, as outras dimensões estão ligadas a escolhas subjetivas, já que dependem dos sujeitos, e não de uma constatação científica ou biológica.

 

Conclusão

Pensamos a filiação como uma trama a ser construída por vários sujeitos em vínculo e com diversas dimensões, as quais podem se superpor ou se opor dentro da trama cultural. Assim, um filho pode estar inscrito nas dimensões biológica, jurídica e social, mas nada garante que esteja inscrito na dimensão libidinal para o casal parental. Essa trama pode ser construída ou não, e desse devir depende a constituição subjetiva da estrutura familiar. Da mesma forma, crianças adotadas podem ser inscritas por adultos nos planos social e jurídico, sem o peso do aspecto biológico; contudo, pode haver dificuldade para construir mutuamente a dimensão libidinal, que estrutura e sustenta os vínculos, bem como a constituição subjetiva dos sujeitos que fazem parte deles.

A possibilidade de separação e divisão dessas dimensões habilita a novas construções sociais entre os sujeitos contemporâneos, mas traz igualmente riscos para o berço que o plano social deve instaurar, na tentativa de dar um espaço de crescimento psíquico para a cria. Isso nos deixa diante do dilema do que pode vir a ser ou daquilo que pode não acontecer. A biologia não assegura, na atualidade, nenhum pertencimento ou garantia de constituição psíquica. Em séculos anteriores, a biologia e a anatomia, como destinos, pareciam dar maior apoio à parentalidade, situação essa que foi sendo modificada. Hoje só temos as garantias que vão se tecendo e se construindo dentro dos vínculos, ao longo do tempo.

Ao partir do conceito de vínculo, sabemos que ele se constrói com várias bases e em interação contínua, porém, não basta só a disposição adulta dos pais de apontar as crianças como seus filhos, já que também precisamos de crianças que aceitem, permitam e construam conjuntamente o lugar filial. Todos os espaços se constroem em correspondência. O nascimento de uma mãe, um pai e um filho não é garantia de que constituam uma família, de que subjetivamente estruturem vínculos parentais e filiais, que por sua vez armem psiquismos libidinizados em vínculo.

Nessa perspectiva, aparece uma maior diversidade nesse conjunto complexo e paradoxal do século XXI. Ficam muitas questões para continuarmos pensando.

 

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Recebido em 17.01.2017
Aceito em 21.08.2017

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