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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo out./dez. 2017

 

PROJETOS E PESQUISAS

 

Think tank sobre o futuro da psicanálise e da IPA: ideias em busca de uma prática

 

Think tank about IPA's future: ideas in search for a practice

 

Think tank sobre el futuro de la IPA: ideas en busca de una práctica

 

Think tank sur l'avenir de l'IPA: des idées à la recherche d'une pratique

 

 

Leopold Nosek

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Em julho de 2017, a Associação Psicanalítica Internacional criou um grupo de trabalho para incentivar as novas gerações de psicanalistas a participar da entidade. Como chair desse grupo, o autor expõe suas considerações preliminares sobre o projeto, enfatizando a seguinte ideia: a geração atualmente no poder deve aceitar abrir mão de parte dos hábitos, das tradições, das cristalizações culturais que carrega consigo; deve se permitir ser fertilizada pelos mais novos - pelos nativos dos tempos, como ele os chama. As possibilidades de êxito do encontro de gerações estão necessariamente vinculadas a essa abertura para o novo.

Palavras-chave: IPA, encontro de gerações, abertura para o novo


ABSTRACT

In July, 2017, the International Psychoanalytical Association created a work group in order to encourage the participation of the new generations of psychoanalysts in the entity. As the chair of this group, the author reveals his preliminary considerations about this project. He emphasizes the idea that the current generation in power should agree to give up of part of its habits, traditions, and cultural crystallizations it has carried inside itself; it should allow itself to be enriched by the newer generation - by the natives of times, as the author calls them. In this case, the possibilities of a successful meeting between generations completely depend on being open to the new.

Keywords: IPA, meeting between generations, opening to the new


RESUMEN

En julio de 2017, la Asociación Psicoanalítica Internacional creó un grupo de trabajo para incentivar a las nuevas generaciones de psicoanalistas a participar de la entidad. Como chair de ese grupo, el autor expone sus consideraciones preliminares sobre el proyecto, enfatizando la siguiente idea: la generación que está actualmente en el poder debe aceptar cambiar parte de los hábitos, tradiciones, cristalizaciones culturales que trae consigo; debe permitirse ser fertilizada por los más nuevos - por los nativos de los tiempos, como él los llama. Las posibilidades de éxito del encuentro de generaciones están vinculadas necesariamente a esa apertura a lo nuevo.

Palabras clave: IPA, encuentro de generaciones, apertura a lo nuevo


RÉSUMÉ

En juillet 2017, l'Association Psychanalytique Internationale a créé un groupe de travail pour stimuler les nouvelles générations de psychanalystes à participer de l'institution. En tant que président de ce groupe, l'auteur expose ses considérations préliminaires à propos de ce projet, soulignant l'idée suivante: la génération qui est actuellement au pouvoir doit accepter d'abandonner une partie des habitudes, des traditions, des cristallisations culturelles qu'elle porte en soi; elle doit se permettre d'être fertilisée par les plus jeunes - par les natifs des temps, comme l'auteur les appelle. Les possibilités de réussite de la rencontre de générations sont nécessairement liées à cette ouverture vers le nouveau.

Mots-clés: IPA, rencontre de générations, ouverture vers le nouveau


 

 

1.

Este grupo de trabalho foi indicado pela nova diretoria da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), presidida por Virginia Ungar, durante o congresso de Buenos Aires, em julho de 2017. Seu propósito central é patrocinar a inserção das novas gerações de psicanalistas em nossa organização e acolher as contribuições que elas podem aportar a uma entidade que tem, entre suas características, a elevada faixa etária média dos associados.

Em reunião realizada pelos integrantes do think tank em Buenos Aires, ficou acordado que, para que pudéssemos iniciar os trabalhos, faríamos circular uma prévia de nossas ideias. Como chair do grupo - do qual participam também, até o momento, Jonathan Sklar, Adrienne Harris, Mariano Horenstein, Marcelo Viñar, Peter Wegner e Arthur Leonoff -, dou a partida, insistindo em marcar o objetivo essencial que originou este núcleo de debate e reflexão: trata-se de nos tornarmos permeáveis, de nos deixarmos fertilizar pelas novas gerações, às quais procuraremos abrir sempre mais e mais espaço. Como membros deste think tank, estaremos presentes com nosso acervo de experiências e com a possibilidade de dar retaguarda política e reflexiva para incentivar a expressão e a participação institucional dos mais jovens de nossa organização.

 

2.

Quando falamos de futuro, imediatamente se apresenta a nós o enigma do tempo. Sempre tive um fascínio por estes antigos e estranhos manifestos concretos da temporalidade que são as ampulhetas. Como objetos, elas são de uma raridade surpreendente, mas a literatura é pródiga em adotá-las como metáfora. Lembro aqui duas passagens que me são caras.

Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), em seu famoso romance histórico O leopardo, atribui ao personagem principal - dom Fabrizio, príncipe de Salina - a particular sabedoria de perceber a mudança de seu tempo histórico e de interferir nele patrocinando uma nova organização social e política, isto é, promovendo o casamento de seu sobrinho Tancredi, um aristocrata, com Angélica, filha de um representante dos grupos econômicos que estão em ascensão na escala social. Quem de nossa geração não se lembra do magnífico filme de Visconti lançado em 1963, tendo como protagonistas Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale? O livro foi publicado em 1958, dois anos após a morte do autor.

Pois bem, Lampedusa associa a sabedoria de Fabrizio a uma fina percepção da passagem do tempo, corporificada por uma ampulheta. O movimento sutil e constante do escoamento dos grãos de areia o assombra e lhe traz simultaneamente uma surpreendente tranquilidade; sua capacidade de perceber agudamente que o tempo transcorre se une a uma aceitação de sua circunstância social e subjetiva, o que lhe proporciona um prazer que conhecemos tão bem: o de deixar que o pensamento se manifeste, que flua. Não resisto a citar um pequeno trecho, para que sua beleza possa ser fruída por todos os participantes deste projeto:

Havia dezenas de anos que ele sentia o fluido vital, a faculdade de existir, a vida em suma, talvez até a vontade de viver, desprendendo-se de si, vagarosa mas continuamente, como os pequenos grãos de areia que escorregam um a um, sem pressa e sem interrupção, pelo estreito orifício da ampulheta. ... A sensação, de resto, não andava, de início, ligada a nenhum mal-estar. ... era o sentimento de um esboroa-mento contínuo, miudinho, da personalidade, acompanhado, porém, da vaga esperança de que, em algum lugar, essa mesma personalidade se reconstruía (graças a Deus), menos consciente, porém mais ampla. Aqueles grãozinhos de areia não se perderiam; desapareceriam apenas para se acumular, quem sabe onde. ... Às vezes, surpreendia-se de que o reservatório vital pudesse ainda conter o que quer que fosse após tantos anos de perdas. (1958/1990, pp. 205-206)

Diante dos nossos olhos, a ampulheta opera a passagem do tempo subjetivo para o tempo histórico e leva a consciência de si a dar um passo além. A obra de Lampedusa, como sabemos, é considerada um exemplo de sabedoria política moderna, equiparável às clássicas reflexões de Maquiavel em O príncipe.

O segundo momento literário que gostaria de lembrar vem de Thomas Mann (1875-1955), no romance Doutor Fausto (1947/1984). O protagonista, o músico Adrian Leverkühn, faz um acordo com Mefistófeles (a consciência dialética), o qual, em troca de 24 anos de fertilidade como compositor, ficará com a alma dele. "Atenção à ampulheta", adverte Mefistófeles. Na parte de cima, ela guarda o estoque de vida; na de baixo, a experiência acumulada. É preciso estar alerta: a passagem dos grãos será constante e uniforme, mas a consciência não acompanhará esse ritmo. De início, parece que o acervo de possibilidades não se altera em nada, enquanto a experiência não para de se acumular. Ao final, apesar da constância do escoamento dos grãos, o estoque parece se esgotar vertiginosamente, enquanto a experiência, ao contrário, nos parece imóvel, incapaz de crescimento.

A fertilidade associativa que nos inspiram os relógios de areia, com seu movimento vital, não se compara à dos relógios comuns, cujos ponteiros nos enganam com um eterno retorno apresentado como multiplicidade de possibilidades, e menos ainda à dos relógios digitais, com sua ilusão de um tempo que nunca chega ao fim.

 

3.

Quero propor, aqui, que podemos ser estrangeiros e migrantes no espaço, chegar de terras estrangeiras, ser refugiados, ser exilados. Sabemos que esse estatuto é comum em nosso meio psicanalítico. Após os grandes exílios da época da Segunda Guerra (ou dos tempos das ditaduras militares, no caso da América Latina), estamos hoje cercados por flagelos que se multiplicam sem cessar. Por outro lado, quero crer que podemos ser também estrangeiros no tempo, falar com uma sintaxe estranha e um vocabulário em desuso, ter costumes anacrônicos, ter hábitos e referências culturais nascidos de outras eras. Podemos estar sujeitos a um exílio no tempo e às decorrentes inadaptações.

Nós, os mais velhos, a geração no poder em nossa organização, podemos e talvez devamos nos perguntar acerca de nossa localização nos tempos. Inevitavelmente, carregamos um excesso de memórias, uma possibilidade menor de aprender com novas experiências - a metáfora da ampulheta é bastante ilustrativa a esse respeito. Pertencemos caracteristicamente à geração pós-guerra, frequentamos as marés dos anos 1960, assistimos à derrocada de utopias e impérios. Vemos diante de nós uma nova organização do mundo. Nosso caldo de cultura foram anseios de liberdade e igualitarismo; nos alimentamos do clima reconstrutivo e reparatório, após herdar as monstruosidades do nazifascismo e depois as deformações do estado stalinista.

Somos habitados por essas memórias, somos moldados por elas. Imersos nessa cultura, adquirimos seu sotaque e a incorporamos como patrimônio. Nossas reflexões inevitavelmente adquirem um caráter de comparação. O que vemos é cotejado com nossa experiência, um bem que, a nosso juízo, merece ser transmitido às novas gerações. Não lhes será possível construir um acervo a partir do nada, não se cria ex nihilo. Mas cada época lê os clássicos com os olhos do presente e os anseios do futuro. Para a geração na direção da ipa, a minha geração, o futuro é mais curto. Um sentido de urgência se infiltra em nosso espírito - e mais uma vez pensemos na concretização do tempo que a ampulheta encena diante de nós.

Consciente de que este é apenas o esboço de uma reflexão - praticamente, apenas uma pauta - e levando em conta o que disse antes, não vou nem tentar descrever as notáveis mudanças a que assistimos no mundo. Também não explicitarei aqui meus receios e esperanças e resistirei às "engenhosas" análises conjunturais e estruturais a que me aventurei em outros textos. Não vou falar da enorme concentração de capital que faz caducar a ideia de nação, nem da financeirização da medicina e da educação, o que as torna ativos econômicos regidos pelas leis da rentabilidade, nem das novas formas de subjetividade e das novas demandas terapêuticas. Não vou falar dos fundamentalismos e atrasos que seguem em paralelo aos enormes saltos do conhecimento e das tecnologias. Tentarei ser um pouco um homem assombrado pelos tempos e um exilado nos desenvolvimentos do tempo. Minha permanência, se é que podemos dizer assim, dependerá da generosidade com que eu for capaz de me oferecer às novas gerações.

O que me interessa (e foi esse o projeto que apresentei a Virginia Ungar) é dar voz e ouvidos aos que chamo nativos dos tempos: as gerações que estão chegando. Se elas não contam com nossos acervos de vida e inevitáveis sotaques, por outro lado têm o privilégio de estar imersas na época que lhes cabe viver e de tomar os tempos com uma naturalidade que nos escapa. A nós, membros deste think tank, caberia usar a experiência que temos principalmente para lhes abrir as portas e lhes fornecer a retaguarda de que necessitem para atuar na instituição. Caberia a nós buscar e recolher respostas para as seguintes perguntas: que lugar oferecemos aos jovens? Que lugar eles anseiam? Ou, em outros termos, que IPA se apresenta no horizonte?

Ao longo dessa tarefa, teremos o privilégio de poder refletir acerca dos tempos atuais e das sombras que lançam sobre esta que é possivelmente uma das últimas organizações genuinamente internacionais (e não "globalizadas"). Uma instituição que teima em existir, que aprendemos a amar e à qual já dedicamos tanto de nossas vidas. Seremos fertilizados pelos nativos dos tempos, não há dúvida, e seu vigor necessariamente desafiará nossos costumes, hábitos e tradições.

A mim me soa estimulante a ideia de encontrar as novas gerações num cenário em que não estaremos no papel de quem ensina. É tentadora a possibilidade de ir ao encontro daqueles que têm menos sotaque e, novamente, aceitar abrir mão, ao menos em parte, da cultura que se cristalizou em nós. Imagino se não seria muito gratificante, para a nossa geração, deixar-se surpreender pelos mistérios de uma época que nos desafia de um modo tão diferente daquele a que nos habituamos no decurso de nossa existência.

Acho que foi mesmo Bob Dylan quem disse que se tornar jovem lhe custou muito tempo e muito trabalho.

 

Referências

Lampedusa, G. T. di. (1990). O leopardo (R. Cabeçadas, Trad.). São Paulo: Difel. (Trabalho original publicado em 1958)        [ Links ]

Mann, T. (1984). Doutor Fausto (H. Caro, Trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1947)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Leopold Nosek
Rua Baltazar da Veiga, 24
04510-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 3842-1704
nosek@terra.com.br

Recebido em 16.09.2017
Aceito em 21.09.2017

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