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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo out./dez. 2017

 

RESENHAS

 

Travessia do corporal para o simbólico corporal

 

 

Rogério N. Coelho de Souza

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autora: Eliana Rache
Editora: CLA, São Paulo, 2014, 239 p.
Resenhado por: Rogério N. Coelho de Souza

 

 

Há vezes em que deparamos na literatura psicanalítica com trabalhos originais, que representam um avanço na compreensão do que é feito na clínica psicanalítica. É verdade que essa experiência não é frequente, mas para nosso contentamento podemos nos beneficiar da exemplar obra de Eliana Rache. Trata-se do livro Travessia do corporal para o simbólico corporal.

Luís Claudio Figueiredo, orientador da tese de doutorado de Eliana Rache e apresentador do livro (originado desse doutoramento), observa que o núcleo do trabalho é a verificação de que a pesquisa clínica em psicanálise ocorre como fruto do exercício do pensamento clínico. Talvez por isso o grau de exigência implícito na pesquisa configure o contexto mais buscado por todo autor psicanalítico. A partir da atividade clínica, o psicanalista valoriza seus recursos teóricos, assimilados intimamente pela prática, para promover novas teorizações que levem em conta os rigores do pensamento metapsica-nalítico, isto é, para "fazer as teorias e os fenômenos clínicos elucidarem-se mutuamente" (p. 8).

Toda a pesquisa é feita em torno dos casos clínicos de Laura (3 anos e meio de idade) e Bia (7 anos de idade). Esse último caso, ocorrido oito anos depois do primeiro, obrigará Eliana Rache a revisitar a experiência anterior.

Sabe-se que a atividade clínica traz questionamentos técnicos e teóricos a todos os analistas, o que nem sempre é tomado como objeto de investigação a ponto de tornar-se pesquisa psicanalítica. Problemas, inquietações na clínica, podem ser disparadores para o aprofundamento teórico, a construção de novas técnicas e a compreensão dos fenômenos psicopatológicos. Foi assim com Rache, que a partir da clássica técnica do brincar, seu enquadre e sua ética, sustentada principalmente nas obras de Winnicott e Roussillon, pôde formular um pensamento clínico renovado, instigante e original.

Roussillon é o responsável pelo prefácio, o que indica a qualidade e a seriedade do livro. Alguns pontos são aludidos por ele, ajudando o leitor a melhor apreciar a trajetória feita por Eliana Rache. Pede atenção para a qualidade do enquadre analítico, que pode supor arranjos e variações, sem prejudicar sua essência. Sua reflexão é que o paradigma fundamental do trabalho psicanalítico estaria no trabalho de apropriação subjetiva, cuja tipificação funda-se na simbolização da experiência subjetiva. Em outras palavras, entende-se que a apropriação subjetiva pela simbolização representa a finalidade do trabalho psicanalítico. O enquadre analítico preservado pelo analista pode simbolizar em ato, como experiência passível de reflexão, o trabalho de apropriação subjetiva pela simbolização.

Destaca-se o pilar básico do trabalho de Eliana Rache com as referidas pacientes: a questão da linguagem. Nos pacientes que são crianças é óbvia a importância da motricidade, na qual a simbolização se apoia, ainda mais em pacientes com sofrimentos narcísico-identitários (designação de Roussillon para borderline), como Bia e Laura, cujas experiências subjetivas precedem a aparição da palavra, nas quais a sexualidade original não se desenvolve no sistema de simbolização verbal. É natural, então, que o dispositivo analítico seja adequado, adaptado, a essas condições, isto é, às condições do afeto (que é a linguagem das experiências precoces). Pode-se afirmar que, em muitos casos, como os tratados por Rache, os pacientes vêm fazer com que o analista sinta o que eles muitas vezes nem mesmo chegaram a sentir (e representar) -eles vêm fazer com que o analista veja o que eles não têm condições de dizer.

Falamos do analista que preserva o enquadre analítico supondo, como Roussillon e Rache, que não se reproduziriam no atendimento as mesmas condições do traumatismo histórico do sujeito que sofre, que a prática psicanalítica não reproduziria a zona traumática da vida psíquica sem que o atendimento à transferência se responsabilizasse por analisá-la ou responder a ela de um modo que o objeto histórico não pôde fazê-lo, possibilitando que o atendimento às necessidades do eu levem o sujeito a realizar o trabalho de simbolização e apropriação subjetiva de sua história.

Aponta-se para o tipo de escuta da associatividade em ação no encontro analítico. Fundamentamos nossa escuta do funcionamento psíquico na ideia de que o que se associa regularmente (pela fala ou pelo comportamento) denota uma ligação intrapsíquica (manifesta ou inconsciente), que funciona como guia do analista e que constitui a condição da possibilidade de análise. Liberar a associatividade é a questão de base da prática psicanalítica. Como em análise tudo é mensagem, mensagem enviada ao analista, como a associatividade é endereçada à escuta do analista, cabe a este fazer algo com o que lhe é enviado, para criar um circuito no qual o analista também escute o que o analisando, por sua vez, fez com o que o analista lhe disse. O analista, entendendo a maneira pela qual é escutado pelo analisando, conclui um circuito que define a especificidade do que há na relação psicanalítica.

Rache mostra que, na clínica de determinados tipos de sofrimento (narcísico-identitários), a análise é confrontada com situações-limite que questionam sua pertinência (como nas reações terapêuticas negativas), com situações referidas às experiências traumáticas precoces anteriores ao surgimento da linguagem verbal, que só podem se manifestar de modo pré-verbal. Isso obriga que a escuta analítica se amplie para formas heteromorfas de associação, nas quais às formas verbais estão associados dados advindos da percepção e do sensório-motor. Comportamentos, atos e sensações corporais passam a ser considerados também como linguagem (formas de linguagem que precedem o domínio da linguagem verbal), oriundos do modo com que o bebê tentaria comunicar suas experiências emocionais. No caso de tais pacientes, estaríamos diante de formas degeneradas desse tipo de linguagem original, porque ligadas a vivências traumáticas e porque não teriam sido bem ouvidas no tempo em que surgiram na história do sujeito.

Mais do que ouvir o sentido latente da comunicação do paciente, está em jogo a possibilidade de escutar a maneira pela qual foi historicamente ouvida a tentativa de compartilhar a vivência, ou seja, pela qual ela foi não ouvida ou mal ouvida originalmente. É a resposta que é dada à comunicação endereçada (agora endereçada ao analista) que está em foco. Ao considerar certas formas de afeto, de ato, de manifestações corporais, estamos diante não apenas de descargas que se subtraíram a conteúdos psíquicos da representação e da linguagem, mas de tentativas de comunicar experiências anteriores ao aparecimento da linguagem verbal.

Experiências precoces clivadas da experiência subjetiva primeira ficarão fixadas ao narcisismo primário, impedidas de participar de processos integradores. Assim, precisamos atentar aos modos de comunicação primitivos pré-verbais, que têm na linguagem do afeto sua expressão e cuja mensagem diz respeito não somente ao próprio sujeito como também ao outro que a recebe. A clínica desses pacientes mostra um afeto (que é também sensação, sobretudo sensação dentro do corpo) sem palavras, anterior às palavras, que é muito diferente do afeto inserido na linguagem verbal. Para essa clínica, faz-se necessária uma evolução dos paradigmas teóricos, tarefa conduzida por Eliana Rache.

Feitas essas considerações, a autora se apresenta com franqueza. Ficamos a par de sua formação analítica, baseada na teoria de Klein, e de suas inquietudes diante da questão da comunicação difícil na clínica. Instigada a procurar como seriam acionadas as respostas nos pacientes por meio de uma comunicação verbal repleta de elementos concretos, recorre às teorias de Winnicott e Roussillon para poder tratar pacientes com dificuldades de simbolização.

Em sua corajosa maneira de escrever, Eliana Rache conta que, ainda criança, aprendera espontaneamente a considerar expressões corporais uma comunicação para "saber o que ia acontecer" (p. 30). Atualizar esse talento, de modo consequente, à atividade como psicanalista seria uma questão de tempo, e para isso teria que prestar atenção a seu próprio corpo, na medida em que este era acionado no contato com determinados pacientes. Isso tomou proporções decisivas nos dois casos clínicos estudados. Seu corpo se mostrava mediador e promotor do que se gestava entre ela e as pacientes. Passa a integrar no trabalho psicanalítico a possibilidade de regredir a serviço do ego corporal do analista para poder se comunicar com o paciente nas circunstâncias em que a linguagem verbal não se mostrasse suficiente.

Tomará como fundamental o conceito de simbolização primária, conforme posto por Roussillon, sintetizando-o de modo a deixar claro aquilo que descreverá na detalhada e cuidadosa narrativa das sessões de suas pacientes.

Mostra, então, seu modo de conceber a simbolização primária:

O tempo primeiro, considerado no limite do pensável, diz respeito à apropriação inicial da experiência sensorial, a qual se acompanha da contenção da excitação que se faz presente nessa experiência primária de caráter desorganizador. É o tempo da constituição da pulsão que já teve seu início desde o período fetal. ... Logo vem o tempo da simbolização primária, propriamente dita, no qual os traços perceptivos motores são transformados em representações-coisa. Esse processo reúne alucinação e pressupõe uma atividade de ligação e síntese, tal como acontece durante a partilha estésica. . Depois de um longo percurso, chegamos, então, ao tempo da metabolização da linguagem em representações de palavras, tempo da simbolização secundária, tempo de dar sentido dentro da temporalidade linear. (p. 34)

Seus dois casos clínicos diziam respeito a pacientes com falta de simbolização primária. Diante disso, põe-se a examinar quais ações terapêuticas, desenvolvidas no campo transfero-contratransferencial e iniciadas por um acionar espontâneo no corpo do analista, podem ser usadas como guias no manejo do que se refere à ordem do não verbal.

Organiza seu texto em dois grandes capítulos. No primeiro, estão as questões clínicas deflagradoras de sua pesquisa e a busca teórica para embasar seu procedimento clínico-teórico. No segundo, explica a estrutura teórica a respeito da simbolização primária e da apropriação subjetiva, usando-as para recortar vinhetas clínicas do atendimento de Bia e para rever o atendimento prestado anos antes a Laura.

No primeiro capítulo, "O caso clínico de Bia", reconstrói o caso clínico de Bia, por meio de uma narrativa na qual a paciente interpela a clínica corporal, e descreve o desenrolar do processo analítico. Nessa descrição, apoia-se na postura clínica de Winnicott para dar base a suas descobertas. Em seguida, de modo cuidadoso e meticuloso, vai à busca de algumas noções teóricas que subsidiem seu trabalho. Trata-se de uma ampla e profunda revisão bibliográfica sobre os temas que lhe importam para a compreensão de sua clínica com essas pacientes. Uma citação se faz necessária no acompanhamento das ideias da autora:

O analista que atende as necessidades de um paciente ao reviver esses estágios precoces na transferência sofre mudanças similares à que ocorre na mãe ao cuidar de seu bebê; mas o analista, à diferença da mãe, precisa estar atento à sensibilidade que se desenvolve nele como resposta à imaturidade e dependência do paciente. (Winnicott, 1990, p. 52, citado por Rache, p. 60)

Outro autor destacado por Rache completa a posição assumida pela autora:

Quando eu falo de sofrimento narcísico-identitário ... trata-se de sofrimentos narcísicos que têm um impacto, que amputam, de uma maneira ou de outra, o sentimento identitário do sujeito. A amputação não se refere a certas capacidades de prazer, ela está na relação do sujeito consigo mesmo, diz respeito a seu ser. Ela abre a problemática que é a da diferenciação eu/não eu. (Roussillon, 2010, p. 122, citado por Rache, pp. 77-78)

Assim, Eliana Rache chega à espinha dorsal de seu trabalho, no que se refere às suas considerações teóricas: sua abordagem do tema da intersubjetividade. Nessa direção, passa a ver o processo de subjetivação do modo proposto por Roussillon, destacando o conceito de pulsão mensageira (para além da função de descarga, existiria a função de mensagem subjetiva da pulsão), fundamental para a formulação do processo de subjetivação. Nesse caminho, avançará na conceituação de um processo de subjetivação-apropriação subjetiva e na simbolização primária em relação ao intersubjetivo.

Acompanhamos as ideias da autora de que os gestos, a postura, a ação, contidos no registro de representações-coisa, de representações de ações, vão se transferir para o aparelho de linguagem, atribuindo a este o valor de uma ação, de uma postura, de um gesto, por meio da linguagem verbal. Mas isso será resultado de um longo processo de desenvolvimento psíquico que, se exitoso, fará com que haja uma modificação sobre as primeiras formas de expressividade, ocorrendo uma ação como que retrospectiva da simbolização secundária sobre as formas de simbolização primária, alterando a própria vivência original do afeto, agora passível de expressão verbal.

Três níveis diferentes de linguagem - o que passa diretamente pelo afeto, o que se apoia sobre as representações-coisa e o que se utiliza do aparelho de linguagem (sobretudo verbal) - ligam-se e articulam-se promovendo modificações no afeto, na representação-coisa e na própria palavra. No entanto, o afeto que ficou excluído desse processo de ligação fica inarticulável. É o que ocorre no caso de pacientes com sofrimento narcísico-identitário, que precisam de uma nova experiência, a experiência analítica, para retomar ou mesmo iniciar esse processo de ligação e articulação do afeto que ficou inarticulado (devido a vivências traumáticas precoces), por meio da capacidade do analista de utilizar sua própria experiência sensório-perceptiva corporal, no encontro com o paciente, e propiciar sentido ao afeto.

No segundo capítulo, "Simbolização primária", a autora faz um longo percurso teórico, abarcando: os fatores gerais da evolução e da organização da subjetividade; a construção da noção de apropriação subjetiva, tomando a segunda tópica freudiana como alicerce dessa construção; a noção de apropriação subjetiva propriamente dita; a revisão e a ampliação do conceito de transicionalidade, de Winnicott; a retomada do lugar da sexualidade no desenvolvimento psíquico e, nele, seus diferentes tempos históricos e estruturais; a matéria psíquica primeira e sua transformação em simbolização primária; a ação de mediadores que ajudem na contenção do movimento devastador que a matéria psíquica primeira pode ter ao atuar sobre o psiquismo incipiente; o estabelecimento da chamada dependência primitiva; a explicação do que compõe a partilha estésica; e finalmente o surgir da partilha afetiva com sua harmonização emocional.

A autora explica que, partindo da ideia de Winnicott sobre o transicional, Roussillon adicionará pontos esclarecedores, até poder propor a noção de apropriação subjetiva, munido de três balizas: o transicional, o reflexivo e o sexual. O transicional enquanto espaço potencial, o reflexivo enquanto forma interiorizada da função reflexiva do primeiro ambiente e o sexual enquanto condição de ligação do sujeito com seus objetos de investimento e suas ligações intrapsíquicas.

Dando um salto na trajetória de Rache, vale destacar o conceito de partilha estésica, que desempenha papel central tanto na argumentação teórica da autora como na consequência clínica (e técnica) para o psicanalista que trabalha com pacientes na condição em que se encontravam Bia e Laura. A partilha estésica é o nível primeiro, mais fundamental, que condiciona o primeiro investimento libidinal do corpo e que pode ser observado numa espécie de "coreografia do ajuste mimo-gesto-postural recíproco entre mãe e bebê" (pp. 178-179). Isso formará a base sobre a qual ocorrerá o estabelecimento da possibilidade de uma harmonização emocional, pela qual investimentos de percepções oriundas do próprio corpo produzirão sensações e os primeiros estados afetivos. Estes prefiguram futuros estados emocionais do bebê, havendo então uma continuidade do afeto da sensação ao afeto da emoção, condição essencial para a futura possibilidade de comunicação verbal das experiências emocionais do sujeito.

O livro termina com a exposição do trabalho clínico com Bia à luz da simbolização primária e com a revisitação do caso clínico de Laura, que confirma a clínica corporal. Destaco um trecho que sintetiza a situação clínica descrita pela autora nesses atendimentos:

A experiência precoce não conhece o tempo, o limite e o relativo. Reside no absoluto de um presente eterno, realiza-se numa totalidade existencial. Quando é reativada na transferência, apresenta-se com as mesmas características existenciais, com o mesmo caráter absoluto, atemporal. A experiência precoce vivida antes da organização da temporalidade não contém indício temporal, entretanto sua reconstrução como existência do passado, sua recomposição contextualizada, reintroduz uma temporalidade onde não havia vivência e, assim, data, limita e inscreve essa última numa relatividade que permite à organização secundária reassumir suas funções. (p. 200)

Decisivas palavras de Eliana Rache, que nos fazem entender seu trabalho, seu percurso e suas significativas consequências para a psicanálise.

 

 

Correspondência:
Rogério N. Coelho de Souza
Rua Morgado de Mateus, 651
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Tel.: 11 5572-6070
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