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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo out./dez. 2017

 

RESENHAS

 

O momento freudiano

 

 

Cesar Barros

Mestre em artes visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e doutorando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)

Correspondência

 

 

Autor: Christopher Bollas
Tradutor: Rafael Zeni
Editora: Roca, São Paulo, 2013, 76 p.
Resenhado por: Cesar Barros

 

 

Uma aventura do conhecimento

O momento freudiano, de Christopher Bollas, é um livro constituído de dois ensaios, duas entrevistas e uma palestra. Os dois primeiros capítulos, "Transformações psíquicas" e "Articulações do inconsciente", trazem as entrevistas feitas por Vincenzo Bonaminio com Bollas, em abril de 2006. O terceiro capítulo, "O que é teoria", é a transcrição de uma palestra realizada na Conferência Anual da International Federation of Psychoanalytic Education (IFPE), em novembro de 2006, em Pasadena, na California. Os outros dois, "Identificação perceptiva" e "A interpretação da transferência como uma resistência à livre associação", são ensaios.

Já a partir do título do livro, Bollas circunscreve o significado fundamental, epistemológico e ético, do advento da psicanálise com a criação do método da associação livre. Segundo o autor, trata-se de um momento há muito procurado por nós, seres humanos: desde muito cedo, o homem descobriu que, para sobreviver à vida mental, era essencial ter a assistência de um outro. A formalização do relato e da escuta do sonho por Freud corresponde a essa demanda e muda o homem para sempre. Além disso, esse momento é simultâneo ao descobrimento da possibilidade de destruição em massa, de estarmos, enquanto espécie, à beira da extinção - descoberta que, segundo Bollas, passa a contar com a psicanálise como o melhor modo de reflexão sobre tais processos destrutivos.

Para o autor, não existe a profissão psicanalista, uma vez que os psicanalistas são, primeiramente, médicos, psicólogos e assistentes sociais. Esse fato contribui para a dificuldade de termos uma concepção única da psicanálise. Tal dificuldade também se deve ao encastelamento de analistas e grupos psicanalíticos, que atuariam, inadvertidamente, em oposição ao desenvolvimento criativo da psicanálise, à elaboração das diferentes teorias, as quais significam uma ampliação da capacidade perceptiva do trabalho analítico, ao mesmo tempo que, em consequência, permitiriam ao analisando internalizar mais maneiras de olhar para si e para os outros.

A psicanálise é um trabalho a dois, que sintonizados constituem o par freudiano (Bollas, 2005). O analista abandona-se ao seu inconsciente, deixando-se penetrar pelo inconsciente do outro (o analisando). Por sua vez, o analisando é livre para ocupar a sua hora com o que lhe vier à mente, sendo incentivado a assim proceder. Entretanto, para a instauração desse par, Bollas lembra a condição necessária do abandono de qualquer forma de interesse e da abertura ao fluxo de ideias, evitando qualquer reflexão prévia, expectativa e memória. Nas palavras do autor: "O principal agente do trabalho da psicanálise é o inconsciente" (2013, p. 10). O fluxo de associações que livremente ocorre a nós, seres humanos, transita de inconsciente para inconsciente. Nesse estado, o analista, com sua atenção uniformemente suspensa, compreendendo o movimento inconsciente do outro com seu próprio inconsciente, abre-se à constituição de um inconsciente receptivo. O inconsciente do analisando, com todas as suas características, seria transmitido para e recebido pelo analista, que passa a trabalhar a partir do percebido por seu próprio inconsciente. Por seu lado, ao relatar a sua vida cotidiana, na relação entre os detalhes triviais dessa vida, saltando de um assunto para o outro, que associa livremente, o analisando expressaria a lógica de seu inconsciente. É um trabalho que demanda tempo, paciência e certa abstinência - uma atenta observação desse outro, que, em seu silêncio, em seus gestos, em suas falas entrecortadas, no trânsito entre assuntos diversos, aguarda a atenção do analista. Este, instalado em seu lugar, acolhe essas falas como expressão de um pensamento que flui, nas suas diferentes formas.

Perceptivamente identificado, o analista se deixa usar. Mas, ciente da sua diferença, da sua posição de intérprete, possibilita as transformações psíquicas do analisando. A interpretação parte do material que se produz no analista com a escuta das associações, à medida que o analisando as trouxer.

No entanto, a identificação perceptiva somente ocorre se, da parte do analista, não há intervenções prematuras. No caso de se dar alguma precipitação para intervir, acontecerá a identificação projetiva, cuja consequência é a interrupção, por parte do analisando, de seu fluxo associativo ou de sua fala livre (Bollas, 2005). Segundo o autor:

Se a identificação projetiva ocorre dentro do outro, a identificação perceptiva permanece do lado de fora para perceber o outro. O termo identificação significa muitas coisas diferentes em cada uma das conceituações. Na identificação projetiva, significa se identificar com o objeto; na identificação perceptiva, significa perceber a identidade do objeto [mantendo sua integridade e suas qualidades]. (2013, p. 51)

Há uma superposição, muitas vezes uma simultaneidade, entre as identificações perceptiva, projetiva e introjetiva, mas a ocorrência da identificação perceptiva demanda um tempo de presença/convivência, a fim de que se estabeleça o amor-base para solidificar a relação que torna o conhecimento eficaz.

Nessa medida, para que uma teoria se torne útil, é preciso que ela funcione pelo inconsciente receptivo do psicanalista, pois

a maior parte da mudança psíquica ocorre inconscientemente e não precisa entrar na consciência, quer na do analista, quer na do analisando. A legitimidade de qualquer teoria psicanalítica reside na sua função de ser uma forma de percepção. Para sondar as profundezas da psicologia profunda, uma teoria deve ter uma capacidade de percepção inconsciente. Algumas teorias têm obviamente uma profundidade maior do que outras. E nesse aspecto reside um desafio a todos os psicanalistas, pois, quanto mais profunda uma teoria for, mais difícil será para um psicanalista adotá-la. Não só porque leva mais tempo para adquiri-la e estruturá-la, mas porque, inevitavelmente, envolve o médico em uma experiência pessoal mais exigente. (p. 60)

Para Bollas, "é uma obrigação ética que todos os psicanalistas tenham uma imersão na orientação teórica das maiores escolas de psicanálise" (p. 61), pois tal imersão traria um aumento da capacidade perceptiva do analista, tornando possível a ele ver coisas que uma teoria ou outra não enxergaria. Ele completa:

Os psicanalistas precisam aprender todas as teorias que puderem para que assim se tornem estruturas perceptivas inconscientes, que permitam aos profissionais participarem mais profundamente da experiência psicanalítica. O inconsciente do analisando sentirá a extensão da receptividade perceptiva do psicanalista. Isso vai tanto aprofundar como ampliar a habilidade do analisando na comunicação inconsciente. (p. 62)

Bollas critica o fechamento que cada movimento psicanalítico empreende, não investindo nas ideias de outras escolas, não permitindo que haja a expansão e o aprofundamento que somente a multiplicidade de perspectivas pode permitir.

Finalmente, o autor formula a questão: a transferência interfere na transferência freudiana? A elaboração da resposta a essa pergunta propõe uma distinção entre a transferência que lida com o aqui e agora da sessão analítica, que vincula tudo o que o analisando fala ao analista, e uma transferência que "envolve o desenvolvimento de funções mentais que facilitam a possibilidade do pensamento inconsciente, da criatividade inconsciente e da comunicação inconsciente entre os dois participantes" (p. 65). Vale lembrar que a dupla analisando-analista forma o par freudiano, que no entre-dois empreende essa aventura do conhecimento que se chama psicanálise.

 

Referências

Bollas, C. (2005). Associação livre (C. M. Rosa, Trad.). São Paulo: Ediouro.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Cesar Barros
Alameda Franca, 1332, casa 7
01422-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3032-1234
cbarrosbj@gmail.com

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