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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018

 

TRABALHOS PREMIADOS
XXVI CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE

 

Escuridão, vultos e formas: nascendo novas configurações1

 

Darkness, figures, and shapes: new configurations arising

 

Oscuridad, bultos y formas: naciendo nuevas configuraciones

 

Obscurité, images et formes: la naissance de nouvelles configurations

 

 

Denise Zanin

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora parte de um pesadelo que, considera, nasceu dentro de um contexto de análise para observar, em vários níveis, aspectos possíveis do aparecimento de novas configurações na mente da analista e na relação analítica. Compreende o momento em que novas configurações podem surgir como de simultaneidade morte/vida e pretende enfatizar a importância desses momentos como ferramenta de observação psicanalítica.

Palavras-chave: dimensões mentais, morte e vida, nascimentos psíquicos, novas configurações, pesadelo


ABSTRACT

Given that this nightmare has arisen with in a context of analysis, the author starts from an analyst's nightmare in order to observe, at various levels, possible aspects of the emergence of new configurations in both the analyst's mind and the psychoanalytic relationship. The author understands the moment when new configurations may appear as being simultaneously of life and death. Her purpose is to emphasize these moments as tools of psychoanalytic observation.

Keywords: mental dimensions, life and death, psychic births, new configurations, nightmare


RESUMEN

La autora parte de una pesadilla de la analista que, se considera, nació dentro de un contexto de análisis, para observar, en varios niveles, aspectos posibles del surgimiento de nuevas configuraciones en la mente de la analista y en la relación analítica. Comprende el momento en que pueden surgir nuevas configuraciones como simultaneidad de muerte/vida y pretende enfatizar estos momentos como herramientas de observación psicoanalítica.

Palabras clave: dimensiones mentales, muerte y vida, nacimientos psíquicos, nuevas configuraciones, pesadilla


RÉSUMÉ

L'auteur part d'un cauchemar de l'analyste qui, d'après ses considérations, est né dans un contexte d'analyse pour observer à plusieurs niveaux des aspects possibles de l'apparition de nouvelles configurations dans l'esprit de l'analyste et dans la relation analytique. L'auteur comprend le moment où de nouvelles configurations peuvent surgir comme relevant simultanément de la vie et de la mort. Met l'accent sur ces moments comme des outils d'observation psychanalytiques

Mots-clés: dimensions mentales, mort et vie, naissances psychiques, nouvelles configurations, cauchemar


 

 

Vida e morte: novas configurações

Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E, sobretudo, a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que eu não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho dos meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.

(Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.)

Numa sessão de análise, são inúmeros os momentos em que analista e analisando correm "risco de morte". Manter-se vivo emocionalmente, fiel às emoções em curso no campo analítico, não é algo simples. "Morre-se" num piscar de olhos. Por outro lado, se - como nos diz Clarice Lispector - temos coragem de abrir-nos para o que não conhecemos e de ir em direção ao que não conhecemos, o invisível "periga" constantemente ganhar forma, ganhar vida, nascer. Assim, quando nos deparamos com um aspecto já muito conhecido, e portanto morto, não é nele que pousamos nosso olhar: voltamo-nos para o ainda não nascido, que pode surgir da interação analítica. Por vezes, outro vértice de observação pode chegar num sonho, diurno ou noturno, para que aquilo que estava na escuridão seja iluminado.

No momento em que algo significativo emerge da dupla analista/analisando - uma intuição, uma observação, uma comunicação verbal, um sonho, uma alucinação, um enactment -, como num caleidoscópio, abre-se espaço para o aparecimento de novas configurações no/do campo analítico. Há movimento em direção a novas possibilidades, enquanto as já conhecidas ficam para trás. Mesmo que as transformações signifiquem ampliações mentais, elas podem ser momentos críticos, em que se vive de forma pungente o risco de vida e morte. Assim, nascer e morrer estão em relação constante e são, em alguma medida, experiências simultâneas.

O fundamental em uma análise, segundo Marques, seria investigar "não o antagonismo entre forças de vida e morte, mas o movimento entre elas, que nos lança do incriado ao criado e vice-versa" (2008, p. 116). Para a autora, nesse trânsito, poderiam surgir novas observações e a possibilidade de conhecimento do novo, no analista e na relação da dupla.

Este trabalho focaliza o nascimento de novas configurações em diferentes níveis de determinada experiência psicanalítica, considerando aquilo que pode ser observado diante da amplitude incognoscível dos fenômenos abarcados pela psicanálise. Baseio-me numa compreensão da psicanálise em que o trabalho vem se tornando cada vez mais complexo, através da inclusão de novas dimensões da experiência. De acordo com Ribeiro (2016), a abertura do campo analítico para a captação de dimensões protomentais, anteriores à dinâmica continente ↔ contido, expande as demandas quanto à participação do analista no processo analítico. Torna-se fundamental que o analista observe o que lhe acontece durante as sessões, valendo-se da via intuitiva e da liberdade para utilizar conjecturas imaginativas, pelas quais se faz possível o acesso a dimensões muito arcaicas e a vivências inusitadas.

Para estas formulações, parto de uma experiência de análise marcante, que parece ter requerido que eu saísse radicalmente de lugares mentais conhecidos para ser habitada por vivências inusitadas e intensas. Tal experiência constituiu-se, para mim, em rica fonte de observações e reflexões psicanalíticas, em matriz de pensamentos.2 Mais especificamente, vou utilizar-me de um sonho/pesadelo (Zanin, 2017) que tive durante um momento crucial dessa análise. Tendo como pressuposto que o sonho/pesadelo não se restringiria às minhas questões pessoais (a serem tratadas somente em minha própria análise), exploro-o aqui incluindo diferentes vértices de observação:3 o campo analítico, a mente da analista e a ideia de que seria um modelo para o nascimento de novas configurações mentais em análise.

Assim, um primeiro vértice de observação considera o sonho/pesadelo dentro do contexto da análise, sendo evocado4 na experiência analítica, e, dessa maneira, conjecturo que contenha elementos que representem momentos de grande aproximação entre a mente da analista e a da analisanda. Nesse sentido, ele configurar-se-ia como um sonho/pesadelo também da dupla e poderia dar acesso a algo presente no campo analítico e a vivências muito profundas da analisanda.

Uma segunda possibilidade é que o sonho/pesadelo componha um método de coletar dados em psicanálise, servindo-me como ferramenta de observação e investigação analítica. Vejo-o, dessa forma, como parte de meu instrumental psicanalítico no processo de aquisição de conhecimento na sessão de análise, e, ainda, compreendo que seu conteúdo retrata meu trajeto mental nesse processo.

Por fim, o sonho/pesadelo aparece como um modelo para o surgimento de transformações mentais, do informe à possibilidade de criar formas em imagens e palavras. De qualquer maneira, estamos falando de nascimentos e mortes.

Considero fundamental a presença viva da analista no processo de análise e sua implicação nos fenômenos observados. O que seria uma presença viva da analista? Estaria em oposição ao contato com ausência de vida ou com morte? Sem a pretensão de esgotar essa questão, penso que, por vezes, uma análise viva implica descer ao vale da morte, experimentar ausência de vida, continuando vivo, investindo emocionalmente na relação e sustentando aberturas ao surgimento do novo.

 

Escuridão, vultos e formas: um sonho da analista

Vou começar com um importante momento dessa história, embora ela tenha começado muito antes. Certa noite, tive um pesadelo. Sonhei que estava muito escuro e meu sentimento era de terror. Eu parecia intuir, na escuridão, algo fantasmagórico. Aos poucos eu começava a enxergar, mas estava tudo borrado, como uma lente fora de foco. De repente, em meio à atmosfera desfocada, eu avistava ao longe (o que consigo nomear como) um vulto. Em alguns instantes, a lente parecia focar e formar uma imagem, que - embora ainda não estivesse muito clara - parecia ser de uma pessoa. Esse focar e desfocar era muito assustador. Sentia uma emoção intensa, como se eu entrasse em um novo mundo, de aparições assombrosas.

Indago-me sobre o sentimento de terror que experimentei nesse sonho. Seria por não enxergar? Por enxergar "fantasmas"? Por observar o surgimento de uma pessoa que pode vir a existir, diferenciar-se, ganhar forma? O sonho aconteceu após uma sessão em que senti uma grande turbulência emocional ao encontrar minha paciente. Pareceu-me ser produto da profunda investigação mental que foi requerida por minha experiência com ela, e compreendi que surgiu como expressão da ampliação das minhas possibilidades de ir em direção a aproximações de dimensões muito primitivas da mente.

Mas deixe-me retroceder um pouco para que a narrativa fique compreensível. Batizei a paciente de Beatriz (Zanin, 2017) inspirada por uma canção de Chico Buarque e Edu Lobo (1983). A Beatriz da música ajudou-me a contar uma história antes de uma espécie de nascimento de minha analisanda em nossa relação. Remete a alguém que, sob algum aspecto, não existe. A letra diz:

Olha

Será que ela é moça

Será que ela é triste

Será que é o contrário

...

Será que é de louça

Será que é de éter

Será que é loucura

Será que é cenário

A casa da atriz

Se ela mora num arranha-céu

E se as paredes são feitas de giz

E se ela chora num quarto de hotel

E se eu pudesse entrar na sua vida

Minha analisanda, Beatriz, no começo de sua análise, tinha idade cronológica que a aproximava da adolescência. Fico sabendo que, devido a particularidades de sua gestação, poderia não ter nascido. Posso imaginar que, desde o útero, a possibilidade ou não da continuidade da vida tenha sido uma questão e que ela tenha travado uma intensa luta pela sobrevivência, mesmo antes de nascer.

Com frequência, ao iniciar a sessão, Beatriz logo definia com o que iríamos nos ocupar - "Vamos jogar cartas?" -, o que me parecia mais uma tentativa de preencher nosso encontro com alguma atividade conhecida e segura do que verdadeiramente um desejo de jogar. Meu espaço de movimentação no contato com Beatriz era restrito. O jogo parecia ser usado com a função de evitar o contato, não de favorecê-lo. Ela pouco dirigia a palavra a mim.

Da mesma forma, quase não me olhava ou se mexia durante nossos encontros. Na entrada e na saída da sessão, passava por mim cabisbaixa e muito rapidamente, de modo que era difícil vê-la. Também parecia não me enxergar ou ao espaço a seu redor. Nossos contatos davam-me a sensação de que nada acontecia nas sessões. Estávamos na escuridão. Ao não me perceber emocionalmente viva, sentindo, sendo tocada pela paciente, ou mesmo com liberdade para me aproximar dela, eu atentava-me para o risco de uma análise morta.

 

Esperando por nascer

Por quais caminhos podemos perceber um fenômeno? De que maneiras é possível fazer um registro mental de manifestações de uma dimensão da mente em que, tenho - agora - como hipótese, predominem áreas de não registro mental, de não existências? Começo a construir essa hipótese com Beatriz quando chega um momento em que, antes das sessões, percebo que estou movimentando-me mentalmente até a sala de espera, em busca de algum ruído que me comunique sua presença. A princípio não compreendo por que estou ocupada em detectar indícios da chegada ou não de Beatriz para a sessão, antes de ir até a sala de espera para verificar se a paciente está lá. Mas é a partir dessa observação que posso fazer uma associação com minha dificuldade de registrar emocionalmente a presença de minha analisanda, o que me leva a conjecturar que estaríamos lidando com dimensões de não registros mentais.

Também percebo em mim um "radar", que parece intuir a necessidade de se ampliar e movimentar para que haja a possibilidade de encontros emocionais vivos na relação analítica. Assim, esse radar passa a buscar localizar Beatriz para além (ou aquém) da sala de análise, na sala de espera de sua mente, dimensão mental que esperava ser encontrada para nascer e ter existência na experiência emocional. Penso que, apesar de a paciente sofrer5 algo proveniente dessa área, era uma dimensão mental que ficava inacessível a ela própria.

Mesmo diante de uma aparente calmaria, no momento em que tenho essa percepção, começo a detectar perturbações no contato com a analisanda.

Segundo Bion (1977/1987), podemos ficar em uma cisão - ou, como denomina, cesura intransponível - e observar apenas um nível: o mais aparente da situação, aquele em que se dá a ação. Entretanto, o autor afirma que, se pudermos apreender o latente, veremos que "aquilo que é latente na latência é a turbulência emocional" (p. 121). Ele prossegue:

Caso se demonstre a turbulência, é provável que a resposta seja: "E daí? Todo mundo sabe disso". Isso é um exemplo de cesura: é difícil de penetrar naquilo que "todo mundo sabe" e sugerir que pode ter algo que ainda não emergiu da turbulência, da mesma forma que pode haver algo - não sabemos o quê - que conduziu à turbulência. Será que devemos inibi-la? Ou investigá-la? (p. 131)

No dia em que tive o pesadelo que estimulou este relato, Beatriz chegou apavorada e não queria entrar para a sessão. Tinha o olhar distante, parado, contorcia as mãos e repetia ritmadamente: "Não. Não. Não" Hoje imagino que, embora não tenha passado por minha consciência naquele momento, possa ter "visto" que Beatriz, como no sonho, estava "vendo assombrações". Lembro-me de ter ouvido, entre o abrir e o fechar a porta da sala de atendimento para a saída da analisanda no dia anterior, seu nome ser chamado pela mãe do paciente que entraria em seguida.

Acredito que só posteriormente pude formular a importância de eu ter observado o fato de Beatriz ter sido enxergada e reconhecida pela mãe do outro paciente. Enquanto a sessão acontece, apenas sei que o ocorrido me perturbou. Era uma questão minha ou também teria perturbado Beatriz? Resolvo examinar com a analisanda se esse fato provocou algo nela e, para minha surpresa, ela diz achar não ter visto a mulher nem ter ouvido nada. Logo depois, aparentando ter realmente perdido sua capacidade de percepção e a recuperado, afirma conhecer a mulher em questão, mas que ficou "com medo de dizer que era uma pessoa e não ser" É nesse contexto que surge o pesadelo.

Conjecturei que o pesadelo fornecia uma espécie de lente para eu enxergar "outro mundo", uma passagem para outra dimensão mental, em que predominariam conteúdos de uma mente primordial, sem representações mentais, e mesmo aspectos não nascidos. Paradoxalmente, remeteu-me também a um momento de nascimento psíquico.

Ao considerar a fala de Beatriz ("Fiquei com medo de dizer que era uma pessoa e não ser"), imagino alguns sentidos: Beatriz tinha dúvida se ela era uma pessoa? Estaria tornando-se uma pessoa que, diferentemente da personagem da música, não seria mais de éter, pois ganhava forma, adquiria configuração? Será que Beatriz estava se transformando (em pessoa e nela mesma) e não estava se reconhecendo?

Posso utilizar a imagem de um bebê que acaba de sair da escuridão do ventre da mãe e, gradativamente, passa a enxergar as pessoas ao redor. No sonho, eu (identificada com Beatriz) estaria encarnando o ponto de vista do bebê que adentra um novo mundo. Alternando o vértice de observação, podemos imaginar o sonho como o momento em que a mãe vê seu bebê fora da barriga pela primeira vez e o (re)conhece. Quanto de dor haveria em nascer, em ver e ser vista?

Ao tratar da cesura do nascimento, Bion afirma que ela é tão impressionante que quase não podemos supor que "o feto pudesse ter uma protomente e personalidade e pudesse desenvolver essa protomente em uma mente após o nascimento" (1977/1987, p. 122).

Uma questão simples: quando é que um ser humano nasce? Na instância particular de um nascimento de algum indivíduo em especial, ele pode me dar uma resposta. Aí eu perguntaria: quando foi que sua personalidade nasceu? Quando foi que você viu a luz pela primeira vez? ... Será que suas cavidades ópticas eram susceptíveis à pressão, dando a impressão de visão, mas inadequada no sentido de que aquilo que você "viu" não é aquilo que é chamado de visão adulta ou madura? (p. 127)

O sonho pareceu-me também ser o nascimento de novas possibilidades de me encontrar com minha analisanda, pelas quais - acredito - pude realmente aproximar-me de vivências emocionais que poderiam conectarme a ela. Penso que pude experimentar e conhecer, a partir de dentro da experiência, algo que poderia ter a ver com vivências profundas da paciente, especialmente de desespero e terror. Pude ainda observar essa experiência e, através do trabalho da função alfa, colocar em palavras para a paciente algo da experiência emocional entre nós. Assim, junto com o pesadelo, minha relação com Beatriz transformou-se muito: de um contato que parecia morto para um estado de grande turbulência emocional, da sensação de que nada ficava de nossas sessões para momentos em que Beatriz passou a ser abrigada intensamente em meu ser, e aos poucos para possibilidades (não verbais e verbais) de comunicação.

 

Sobre o instante de nascimento

Penso que momentos como esse que Beatriz estava vivendo podem dar lugar a nascimentos psíquicos, se as turbulências encontram continência na dupla analítica. Tais momentos, em que surgem vivências terroríficas, medo da loucura e angústias intensas, e nos quais ao mesmo tempo vislumbram-se novas possibilidades, podem ser indicativos de mudanças catastróficas (Bion, 1966/2014).

Sapienza (2004) assinala que mudanças catastróficas se aproximam de transformações em o, e que o analista precisa valer-se de sua condição de acessar camadas mentais muito primitivas e violentas, utilizando sua função alfa (através da capacidade de continência com reverie), para poder ajudar o analisando a transitar por essas experiências rumo a mudanças criativas, e não à catástrofe psíquica. Segundo Chuster (comunicação pessoal, 23 de junho de 2017), quando acontecem transformações no sentido de tornar-se a si mesmo (transformações em o), podem surgir sonhos muito angustiantes, com aparições, espíritos, vampiros e quedas (cair em si).

Estaria a analista compartilhando com a analisanda um momento de mudança catastrófica em que ambas se transformam? Ou seja, eu poderia, em alguma dimensão, também estar nascendo enquanto analista capaz de apropriar-se de seu instrumental para a investigação psicanalítica dos fenômenos presentes no campo? Nesse sentido, o sonho retrataria um momento muito importante do meu processo de tornar-me analista, este sempre em curso.

Além disso, ainda que grande parte do trabalho de uma análise não possa ser acessada e que seja difícil localizar precisamente momentos de nascimento (de uma personalidade ou de um processo que dará início a novas possibilidades na análise), acredito ser possível perceber o instante em que - como no sonho - a lente se abre e a imagem se configura observável.

Posso pensar nas oscilações PS↔D (dispersão↔síntese) culminando no surgimento de um fato selecionado, como esse instante em que nasce uma nova configuração da experiência. Assim, há uma reorganização de elementos dispersos que permite tornar acessível alguma compreensão e lançar um novo olhar ao campo analítico. No entanto, estou prioritariamente interessada em acompanhar o percurso que foi acontecendo em minha mente, da escuridão ao instante de delineamento de formas, o que ampliarei a seguir.

 

O sonho como instrumento de observação e como modelo para o nascimento de novas configurações em análise

Toda minha movimentação mental, que culmina no sonho, demonstra também um modo de detectar vida e morte, de me dispor à aproximação desses aspectos e à observação deles. Visto dessa forma, o pesadelo, para a analista, passa a ser parte de um método de investigação dos fenômenos mentais capaz de atravessar cesuras entre diferentes dimensões mentais, além de, nesse caso, concomitantemente, ter despertado em mim intensas angústias de morte e possibilidades de viver e sonhar nascimentos psíquicos.

Partindo da escuridão, do não saber, pude estar suscetível ao campo analítico para identificar-me radicalmente com minha paciente e seus fantasmas. Nesses momentos, pode-se viver a sensação de borramento das fronteiras analista/analisando, transitando-se numa atmosfera que aparece como uma lente fora de foco. O instante em que a lente consegue focar e delimitar uma imagem implica condições de separação e diferenciação entre analista e analisando, a possibilidade de observar a relação e o que nasce dela como um terceiro elemento presente (configuração tridimensional).

Assim, observando microscopicamente o caminho que percebi acontecendo em minha mente, destaco duas formas de adquirir conhecimento em análise, enquanto partes de um processo contínuo, por vezes ocorrendo simultaneamente. A primeira, colhida a partir da vivência da experiência com a analisanda, é um conhecimento encarnado, que se pode construir no ir sendo analista. A segunda contempla o momento em que é possível observar o que está sendo vivido e realizar uma formulação comunicável, tanto para o próprio analista quanto para o analisando. Podemos pensar também, de maneira não segmentada, em experiências analíticas de compartilhamento ou de íntima união mental, em que se mantém a discriminação de se tratar de duas personalidades distintas, ou seja, momentos em que estão presentes condições que unem e separam analista e analisando.

Por fim, considero que, durante o período dessa análise, movimentei-me na escuridão por dimensões mentais não nascidas, anteriores a formas e palavras, e nesse trânsito algo foi aparecendo como um vulto, como um borrão em processo de vir a ser uma forma discernível e nomeável. Assemelhando-se ao meu sonho, o focar e desfocar de nossa lente mental pode incluir dimensões da experiência ainda difusas, indefinidas, por vezes fantasmagóricas, bem como a possibilidade de alcançar formas que favoreçam alguma delimitação - ainda que momentânea - para o falar sobre elas. Assim, do silêncio vieram os ruídos, da imobilidade a necessidade de movimentação, e do vazio o espaço para o novo. Morte e vida em busca de novas configurações.

 

Referências

Bion, W. R. (1987). Turbulência emocional. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(1),121-133. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

Bion, W. R. (2014). Catastrophic change. In W. R. Bion, The complete works of Th R. Bion (pp. 19-43). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1966)        [ Links ]

Buarque, C. & Lobo, E. (1983). Beatriz [Gravada por Milton Nascimento]. In O grande circo místico [LP]. Som Livre.         [ Links ]

Marques, T. H. T. (2008). A experiência afetiva com a sensorialidade. Revista Brasileira de Psicanálise, 42(3),115-128.         [ Links ]

Ribeiro, P. de M. M. (2016). O analista descons(c)ertado: considerações sobre acessos a dimensões protomentais. Revista Brasileira de Psicanálise, 50(3),103-119.         [ Links ]

Sapienza, A. (2004). Reflexões clínicas psicanalíticas sobre a memória-sonho. Ciência e Cultura, 56(4),29-32. Recuperado em 26 jan. 2018, de http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252004000400015&script=sci_arttext.         [ Links ]

Zanin, D. (2017). E se eu pudesse entrar na sua vida? Sobre movimentos mentais da analista em busca de sua analisanda. Bergasse 19, 8(1),120-136.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Denise Zanin
Rua Bernardino de Campos, 1001, sala 409
14015-130 Ribeirão Preto, SP
Tel.: 16 3024-1748 | 16 99784-9445
denisezanin@gmail.com

Recebido em 15/01/2018
Aceito em 29/01/2018

 

 

1 Texto vencedor do Prêmio João Bosco Calábria Oliveira, conferido durante o 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Fortaleza, Ceará, de 1 a 4 de novembro de 2017.
2 A experiência de análise a que me refiro foi originalmente formulada e desenvolvida no artigo "E se eu pudesse entrar na sua vida? Sobre movimentos mentais da analista em busca de sua analisanda" (Zanin, 2017). Nesse artigo, centro-me nas movimentações mentais da analista em direção ao encontro emocional com a analisanda e proponho considerar essas movimentações como manifestação de um tropismo (criativo) da analista.
3 Penso que os diferentes vértices de observação estão intimamente interligados, sendo difícil estabelecer uma separação muito precisa entre eles. Transito por eles ao longo do trabalho.
4 Evocado na experiência e/ou evocador da experiência, pois, quando acordei, minha analisanda me veio à mente, junto com a sensação de que o sonho teria relação com ela.
5 Uso sofrer no sentido de ser afetada por essa dimensão, receber o impacto ou sofrer sua influência.

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