SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52 número1Oscuridad, bultos y formas: naciendo nuevas configuracionesEl jaguar como signo de vida y muerte índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo ene./mar. 2018

 

TRABALHOS PREMIADOS
XXVI CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE

 

Os intervalos do diabo1

 

Devil's intervals

 

Los intervalos del diablo

 

Les intervalles du diable

 

 

Alexandre Socha

Psicanalista e mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho busca circunscrever alguns aspectos do pacto demoníaco por meio de formas que assume na literatura e na música. Empreende uma aproximação com os estados melancólicos, produzindo ressonâncias no campo psicanalítico. Nesse percurso, as funções disjuntivas e conjuntivas são exploradas enquanto elementos diabólicos indispensáveis aos sentimentos de vitalidade e ao trabalho analítico com certos pacientes. Apresentam-se duas breves situações clínicas associadas ao tema.

Palavras-chave: diabo, pacto demoníaco, melancolia, trítono


ABSTRACT

The purpose of this paper is to examine some aspects of "the chord of evil", by connecting it to its ways of expression in literature and music. As the author approaches melancholic states, his article invades the psychoanalytic field. In this path, he explores disjunctive and conjunctive functions as diabolic, evil elements that are essential to feelings of vitality and to the analytic work with certain patients. The author presents two brief clinical cases about this theme.

Keywords: devil, the chord of evil, melancholia, tritone


RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo circunscribir algunos aspectos del "pacto diabólico", relacionándolo con las formas que asume en la literatura y la música. Se emprende una aproximación con los estados melancólicos, trayendo resonancias al campo psicoanalítico. Durante este recorrido, las funciones disyuntivas y conjuntivas se exploran como elementos diabólicos indispensables en los sentimientos de vitalidad y en el trabajo analítico de determinados pacientes. Se presentan dos casos clínicos relacionados con el tema.

Palabras clave: diablo, pacto demoníaco, melancolía, trítono


RÉSUMÉ

Le présent travail cherche à circonscrire certains aspects du "pacte diabolique" en rapport avec les formes qu'il prend chez la littérature et la musique. On entreprend un rapprochement avec les états mélancoliques, en apportant des résonances au champ psychanalytique. Pendant ce parcours, on explore les fonctions disjonctives et conjonctives en tant qu'éléments diaboliques indispensables aux sentiments de vitalité et au travail analytique avec certains patients. On présente deux brèves situations cliniques concernant le thème.

Mots-clés: diable, pacte démoniaque, mélancolie, triton


 

 

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.

(Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas)

 

1. O homem arruinado, ou O homem dos avessos

O diabo está em tudo, misturado a tudo: gente, planta, água, vento. É no que insiste Riobaldo, Fausto sertanejo, no leitmotiv que muitas vezes aparece em sua narrativa: "O diabo na rua, no meio do redemunho" (Rosa, 1956/2001, p. 27). Ao mesmo tempo, é com a própria existência do diabo que se debate Riobaldo, problema insolúvel e um dos muitos planos de ambiguidade que atravessam Grande sertão: veredas, pois da resposta ao problema depende sua alma e salvação. Após uma série de insucessos na busca do foragido Hermógenes, o bando de jagunços do qual Riobaldo faz parte encontra-se perdido e prostrado na região chamada Veredas-Mortas. Ali o personagem empreende o pacto cuja realização é duvidosa. O diabo não se mostra, como Riobaldo tanto esperava, e nada acontece durante toda a madrugada em que o aguarda sozinho dentro da mata. No entanto, a partir desse momento sua transformação é indubitável e constitui o ponto de virada de sua trajetória. Resta então a hesitação renitente e atormentada sobre o que de fato teria ocorrido.

Então, não sei se vendi? ... Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma. Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador.

(Rosa, 1956/2001, p. 501)

O tema do pacto demoníaco lança raízes profundas no cânone literário e no imaginário popular. Personificação do mal e da corrupção do espírito, o diabo cumpre um papel sedutor e aliciante na mitologia cristã, da expulsão do Paraíso às tentações no deserto e demais aparições. Seu ingresso na literatura, por meio das lendas medievais, se dá com o mesmo caráter de ameaça à virtude e à bem-aventurança da alma, culminando com o mito de Fausto, em que a ideia de contrato diabólico ganha novos contornos e uma profusão de sentidos. A lenda do Doutor Fausto (o afortunado), a respeito de um erudito alquimista que realmente vivera na Alemanha entre 1470 e 1540, condensase a princípio na tradição oral e depois no teatro de marionetes, gozando já de grande popularidade quando sua fábula é publicada pela primeira vez, em 1587. Sua versão mais famosa e consolidada, porém, virá à luz apenas no século XIX, com o grande poema de Goethe em duas partes, uma de 1808 e outra de 1832, obra monumental que alçará o mito fáustico ao estatuto de drama da humanidade (Mazzari, 2004). As releituras desse mito nunca cessaram e compõem ao redor do motivo pactário uma tradição literária significativa, ainda hoje relevante e vigorosa. Embora a concepção do diabólico possa diferir muito de acordo com a época, sua persuasão sinuosa e ambígua mantém-se, sobrevivendo como representação daquilo que nos seduz e repele ao mesmo tempo.2

Mas o que faria uma pessoa tornar-se pactária ou, em outras palavras, o que teria o diabo assim de tão atraente a oferecer?

É definitiva a transformação que o pacto deflagra no percurso de Riobaldo. Ele assume a liderança do grupo de jagunços e leva a cabo o objetivo de suas andanças, a vingança da morte do chefe Joca Ramiro pelo traidor Hermógenes (este, segundo dizem os outros jagunços, também pactário). O episódio ocorrido nas Veredas-Mortas divide a narrativa em dois momentos e delimita a aquisição de uma certeza inabalável de Riobaldo em suas próprias capacidades, insinuando-se inclusive como indispensável para realizar aquilo que realizou, a vitória contra Hermógenes, o mal encarnado.

É como o compreende Antonio Candido no belo ensaio dedicado ao livro de Guimarães Rosa:

O diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malograram os outros chefes. (1964/2012, p. 122)

Nesse episódio, Candido vê ainda uma correspondência com os rituais iniciatórios presentes em poemas e romances medievais de cavalaria. Entre as muitas equivalências na composição e na dinâmica dos personagens (a própria figura do jagunço e a do cavaleiro medieval, por exemplo), encontram-se ali presentes o sinal distintivo e a razão mesma de uma teoria iniciatória: o renascimento e a transformação do ser na assimilação de "poderes interiores necessários à realização da tarefa" (p. 122). Embora o crítico literário não se dedique a esse aspecto, a associação do pacto demoníaco com a literatura medieval o projeta num período anterior ao mito fáustico - anterior, portanto, à referência incontornável de uma tragédia provocada pela aquisição desmedida de conhecimento e fortuna. Depreende-se de tal associação a ideia de que, enquanto ritual iniciatório, o pacto provê ao indivíduo algo que lhe é próprio, embora fosse ainda inacessível. Aqui, em vez da ambição frívola e onipotente, somos levados a supor um movimento formativo ou integrativo (no sentido da apropriação de aspectos de si mesmo), ainda que, como de costume nos ritos de passagem, predomine uma atmosfera terrorífica. Esse ponto será retomado adiante.

Na releitura do mito em Doutor Fausto (1947/2015), de Thomas Mann, somos conduzidos de volta ao século XX e o encontramos no interior de uma longa discussão musical, embora evidentemente não circunscrito a ela. O romance, narrado por um amigo de infância, conta a história do compositor Adrian Leverkühn, que recorre ao pacto demoníaco para finalizar sua grande obra, o desenvolvimento de uma nova técnica musical - na realidade, a técnica dodecafônica de Schoenberg, que Mann toma emprestada. Ao contrair sífilis propositadamente, Leverkühn renuncia à possibilidade de amar em troca da criatividade e da inspiração que serão necessárias ao projeto. Vemos outra vez, lado a lado, a renúncia à eternidade da alma (figurada pela renúncia ao amor) e a busca obstinada do vigor criativo para a realização de um grande feito. A transposição do mito fáustico empreendida por Thomas Mann atinge novas realidades: numa perspectiva social mais ampla, vemos a Alemanha da Segunda Guerra e o declínio de sua ilusão grandiosa; numa perspectiva musical e artística, o esgotamento do sistema tonal e as aporias da arte moderna. Mas, mesmo com tais mudanças de cenário, não estaríamos ainda diante dos diferentes aspectos fáusticos e não fáusticos do pacto demoníaco? Seria razoável lhe supor uma faceta corrompida e autodestrutiva e uma faceta criativa e fecunda?

A opção de Thomas Mann pelo contexto musical não é fortuita, e as densas reflexões presentes no livro contaram com a orientação de Theodor Adorno e compositores contemporâneos ao autor. São muitas as obras musicais inspiradas pelo mito fáustico, óperas, sinfonias e peças menores, mas explorar essa estreita afinidade nos levaria a outro caminho. A intersecção realizada por Mann soa aqui mais oportuna para nos determos por um momento em outro pacto, talvez menos conhecido, estabelecido no curso da história da música ocidental. Essa associação nos levará novamente ao período medieval e a um dos grandes problemas musicais da época, problema que curiosamente se tornará um dos elementos estruturantes da música como hoje a concebemos: o trítono, intervalo sonoro também chamado diabolus in musica.

 

2. O canto diabólico e a sua incorporação

Embora o desenvolvimento das atividades musicais já houvesse percorrido um longo caminho, das flautas pré-históricas feitas de ossos de animais até a complexa relação da música com o teatro grego e a concepção metafísica atribuída pelos filósofos da Antiguidade, é com o canto gregoriano que se funda a tradição do que hoje denominamos música ocidental. Ainda que diretamente tributário da construção dos modos gregos, o gradual estabelecimento da notação e da escrita musical permite ao canto medieval uma relação menos efêmera e evanescente com a composição, ultrapassando os limites da transmissão oral e facilitando a construção compartilhada de um edifício teórico.

Executado em ambientes religiosos e com finalidades litúrgicas, o canto gregoriano estabelece uma clara oposição à música secular utilizada nos ritos pagãos e no folclore popular. Enquanto a última é fundamentalmente dinâmica e corpórea, marcada por pulsações rítmicas e percussivas, o canto gregoriano é caracterizado por suas vozes em uníssono e sua qualidade estática, grave e monotônica. Longe do êxtase sensorial provocado pelas danças e pelos ritmos, a música sacra incorpora em absoluto o antissensualismo clerical, colocando a expressão musical em um estado de elevação espiritual, ascensão e comunhão com o divino. Segundo Wisnik, essa aspiração a um plano etéreo instaura uma profunda dicotomia entre som puro e ruído: na busca de uma purificação e assepsia sonora, "a liturgia medieval se esforça por recalcar os demônios da música, que moram, antes de mais nada, nos ritmos dançantes e nos timbres múltiplos, concebidos aqui como ruído" (1989/2007, p. 42).

Nessa mesma categoria de ruído estariam também todos os intervalos sonoros dissonantes e incômodos ao ouvido medieval. Se na escala diatônica (na tonalidade de dó, nossa conhecida dó-ré-mi-fá-sol-lá-si) o intervalo de oitava (dó-dó) é aquele considerado o de maior estabilidade e consonância, o intervalo de três tons ou trítono (dó-fá#, nesse caso) é a sua perfeita antítese. Do ponto de vista físico da emissão sonora, o trítono divide exatamente ao meio a frequência dessa oitava. Do ponto de vista harmônico, faz o mesmo com a escala diatónica, situando-se em sua metade e dividindo-a ao meio. Pelo alto grau de tensão e dissonância que provoca, o trítono foi então intencionalmente excluído das composições medievais, assim como qualquer artifício que interferisse na proposta de uma música das esferas. Sua existência, no entanto, não trazia apenas um problema técnico aos compositores, e o epíteto diabolus in musica, que recebe posteriormente, no Renascimento, revela no trítono a insígnia da imperfeição e da discórdia. Para Wisnik,

o fato de que a escala diatónica abrigue dentro de si necessariamente a "falha" do trítono, a dissonância incontornável, se tornará na Idade Média um problema não só musical, mas moral e metafísico: o diabolus in musica intervém na criação divina. (1989/2007, p. 83)

A melodia única e em uníssono do canto gregoriano não trazia grandes dificuldades ao compositor no controle das dissonâncias. É apenas com o surgimento das composições escritas a duas ou mais vozes simultâneas que as dificuldades se acentuam e que o diabo à espreita se insinua com maior intensidade. Na polifonia as múltiplas vozes criam uma trama complexa de melodias independentes, que se cruzam e entrecruzam, formando um tecido sonoro. Sua inserção na música sacra implicará uma série de problemas terrenos, que passarão a exigir novas formas de organização da matéria musical (Lovelock, 1953/2001). Com dezenas de vozes simultâneas, os conflitos entre elas se tornarão cada vez mais incontornáveis.3

Desse modo, a polifonia medieval abrirá terreno ao gradual ingresso de intervalos dissonantes, sob a condição de serem melodicamente resolvidos na sua sequência por uma nota ou acorde estável. Tal aceitação relativa do conflito será o fundamento do sistema tonal (em contraposição ao sistema modal dos cantos gregorianos), e a dinâmica tensão-repouso será a sua gramática universal. O uso funcional do trítono e de sua resolução institui uma dialética permanente entre estabilidade e instabilidade, produzindo no ouvinte a sensação de causalidade e progressão. A tensão gera também a expectativa do relaxamento, que pode ser adiado ou parcialmente satisfeito, dando à composição musical uma qualidade narrativa e de trânsito por diferentes paisagens sonoras.

Antes repudiado, o trítono se tornará doravante a própria força motriz da cadência musical, tanto na frase melódica quanto em sua estrutura harmônica. O pacto com o diabolus in musica e seu manejo se tornarão, portanto, o código estrutural de um novo sistema musical, fundamentado no equilíbrio entre o conflito e a sua resolução. O tempo circular e eterno do canto gregoriano é rompido, e o ouvinte é expulso do seu paraíso imemorial. A dissonância diabólica encarnada instaura a noção de movimento, de separação e reunião, enfim, de pulsação da vida. Aqui também renunciamos musicalmente à eternidade, do mesmo modo que o faz aquele que vende sua alma ao diabo. Coincidência ou não, as primeiras versões do mito fáustico surgem por volta do mesmo período em que o uso do trítono começa a ser admitido, entre os séculos XVI e XVII.

O dodecafonismo, técnica musical do século XX discutida no Doutor Fausto de Thomas Mann, abandona o uso da escala diatónica pela escala cromática de doze tons. Ao fazer isso, abandona também o princípio de tensão e repouso do trítono (sistema tonal), mas, em vez de um retorno ao estado anterior ou uma negação do pacto, propõe "uma nova forma de contrato fáustico" (Wisnik, 1989/2007, p. 185). A composição dodecafônica, embora forneça uma estrutura racional para a emancipação da dissonância, acaba por criar um estado de tritonização generalizada, que mobiliza no ouvinte afetos intensos, como a angústia, explorada por Buschinelli (2001) em associação à interpretação psicanalítica.

 

3. O diabo Outro e outros diabos

Nosso passeio literário e musical em torno do tema do contrato demoníaco pode, à primeira vista, soar distante do trabalho psicanalítico. Se o assumirmos, porém, como um modelo evocativo de reflexão, talvez algum aporte que ilumine certas áreas do funcionamento psíquico e intersubjetivo possa dele advir. É o que também parece esperar Freud no ensaio "Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio" (1923/2011), ao considerar o manuscrito que relata a história do pintor Christoph Haitzmann uma jazida aberta de metal puro daquilo que no trabalho analítico com pacientes precisaria ser laboriosamente extraído. Freud encontra nesse manuscrito uma boa oportunidade para demonstrar a extensão do referencial psicanalítico na compreensão de fenômenos da cultura e da sociedade; no caso em questão, debruça-se sobre as possessões demoníacas para relacioná-las diretamente à sua teoria das neuroses.

O manuscrito do século XVII é dividido em três partes: as pinturas de Christoph Haitzmann retratando suas visões do diabo, seu diário pessoal e uma terceira parte escrita pelo compilador religioso do processo, em que é narrada a história do pintor e a milagrosa redenção do pacto demoníaco que ele realiza não uma, mas duas vezes (a primeira assinando o contrato com tinta preta e a segunda com sangue), fato que será explorado em seus pormenores por Freud. Segundo os manuscritos, o pintor foi redimido no santuário de Mariazell pela Virgem Maria, que intercedendo em seu socorro obriga o diabo a restituir-lhe o contrato assinado em ambas as ocasiões. Infelizmente a cura do pintor não foi duradoura, e após a segunda redenção ele ingressa no convento da ordem dos Irmãos da Misericórdia, sofrendo inúmeras tentações do demônio até o fim da vida, o que acontecia "quando ele bebia um tanto mais de vinho", segundo o pater provincialis responsável (Freud, 1923/2011, p. 234).

O sofrimento de Haitzmann tem início com a morte de seu pai, a quem era ligado por um amor particularmente forte. Depois dessa perda, é tomado de prostração, sucumbindo a um profundo estado melancólico:

Ele ficara abatido, tornara-se incapaz ou indisposto para o trabalho e tinha preocupação com a sobrevivência, ou seja, sofria de depressão melancólica com inibição do trabalho e preocupação (justificada) com sua vida. Vemos que de fato lidamos com um caso clínico, percebemos também o que ocasionou a doença, que o próprio pintor chama de melancolia. (Freud, 1923/2011, p. 236)

Freud utilizará o caso para enfatizar a associação do demônio com a figura paterna, explorando a ambivalência em relação ao pai dentro do complexo edipiano e das fantasias de castração. Para a finalidade das nossas reflexões, o que tem especial interesse, no entanto, é o contexto melancólico em que o pacto ocorre e sua repercussão nele. Riquezas, poderes e forças sobrenaturais, conhecimento ou prazer sexual infindável - o pintor Christoph Haitzmann não recebe nada disso. Nos dois compromissos assinados nada solicita ao diabo; ao contrário, neles Haitzmann subscreve-se a ser seu filho e servo por nove anos: "eu me obrigo a este Satã, a ser seu filho e servo", diz literalmente o segundo contrato redigido a sangue (Freud, 1923/2011, p. 240).

A conclusão tirada por Freud é que, para o pintor, o pacto teria como finalidade a substituição do pai que acabara de perder, reavendo sua presença asseguradora para lidar com as dificuldades terrenas e, ao mesmo tempo, evitando o reconhecimento pleno de sua morte. Assim, enquanto substituto do pai, o diabo seria a contraparte hostil, imprescindível na ambivalência, na qual Deus ocuparia o lugar do pai amado e justo. Deus e diabo, figuras idênticas decompostas em qualidades antagônicas e que têm na mesma imago paterna seu protótipo individual. É desse modo que, com o fracasso do demônio como substituto paterno, o pintor recorrerá aos padres da Igreja e aos poderes divinos em busca de filiação e proteção, adotando a vida monástica.

No caso do pintor Haitzmann, o pacto demoníaco surge, portanto, como uma tentativa de desvencilhar-se de um estado melancólico e desvita-lizado,4 ecoando não apenas Fausto em seu gabinete, mas também a região das Veredas-Mortas, onde se encontram Riobaldo e seu bando. Convergem para essa tentativa os elementos que sinalizam certas características da figura diabólica, já reveladas pela raiz etimológica de seu nome: diabolum, em oposição direta a simbolum, indica aquilo que separa, que desune. Estes são em essência os efeitos disjuntivos promovidos pela presença diabólica: rupturas e separações. Da dissonância do trítono, que divide ao meio a escala diatónica, da inflexão narrativa nas andanças pelo sertão (vale lembrar que também o diálogo entre Leverkühn e o diabo está na exata metade do livro), ao desligamento com objetos internos mortificantes que aprisionam o melancólico.

 

4. E o diabo que nos carregue!

É costume atribuir à expressão "vender a alma ao diabo" o sentido ganancioso do abandono de uma postura ética em favor de ganhos obtusos. O que se vende, por assim dizer, é a consciência tranquila em troca do caminho fácil e corrompido. Mesmo do ponto de vista psicanalítico, estamos habituados a enxergar o simbolismo do pacto como uma "compensação onipotente de um narcisismo golpeado" (Gómez Escallón, 2003, p. 36), ou ainda como uma solução patológica inconsciente, uma formação de sintoma que visa restaurar algum equilíbrio psíquico. O papel de advogado do diabo não é nada fácil, mas é preciso convir que o retrato feito até o momento revela no mínimo sua ambiguidade. Se o diabo é aquele que aparta, que desune, é também aquele que negocia, que barganha com o indivíduo os lutos que a vida enfrenta contra a morte. Seu efeito de ruptura impele a saída de um estado mortífero de retorno ao divino em direção ao mundano dos acordos possíveis e dos compromissos assumidos. Assim como o trítono, que rompe a condição de plenitude para tornar-se advento e dobradiça de uma nova configuração musical, o pacto aqui é com a vida e suas limitações, com a labuta diária de seus afazeres e do movimento dialético dos conflitos, e talvez fôssemos mais precisos se o chamássemos antes de aposta, pois esta contempla também uma considerável margem de fracasso, como não deixa passar despercebido o caso de Haitzmann, pintor e pintura da teoria freudiana das neuroses.

Que estado descreveria melhor a condição daquele que busca o contrato diabólico, debatendo-se entre a imortalidade purificada e a realização de feitos terrenos? Ao renunciar à eternidade da alma, o eu também renuncia à imortalidade do objeto melancólico, sobre o qual o trabalho de luto não pudera incidir. Caso a sombra do objeto perdido esvaneça e sua morte seja reconhecida, a abertura ao mundo dos vivos e novas ligações poderão vir a suceder.

Em certo momento do nosso percurso, chegamos a propor uma distinção entre dois aspectos do pacto, um fáustico e outro não fáustico, considerando seus destinos quase opostos: a onipotência do primeiro (um sair de si) e a potência ou apropriação de forças internas do segundo (um tomar-se a si). No entanto, vista pelo prisma da associação aos estados melancólicos, não poderíamos compreender a vertente fáustica do pacto, aquela dos excessos e da grandiosidade, como a conhecida tendência da melancolia de converter-se em mania? Não seriam essa euforia, esse desprendimento e essa sensação triunfante similares aos que se seguem a certos estados melancólicos?

O recurso de defesas maníacas como contraponto às ansiedades persecutórias e às ansiedades depressivas é extensamente explorado por Klein a partir do artigo seminal sobre os estados maníaco-depressivos (1935/1998). Os objetos incorporados canibalisticamente na melancolia tornam-se, segundo Klein, também persecutórios, e a violenta batalha pela sobrevivência do objeto bom ante as ameaças internas (junto com o reconhecimento da própria agressividade e culpa na posição depressiva) pode levar o eu tanto a um afastamento cada vez maior da realidade psíquica - e, por conseguinte, da realidade externa - quanto a uma aproximação cada vez mais integrada e realista delas. Embora uma estruturação patológica possa ser daí proveniente, a teoria kleiniana das posições evidencia tais experiências como constituintes do psiquismo humano, experiências com as quais lidamos constantemente no decorrer da vida. Em "Luto e melancolia", Freud ilustra assim a condição maníaca, com sua liberação aparente e súbita do investimento libidinal: "Por exemplo, quando um pobre-diabo é subitamente aliviado da crônica preocupação em obter o pão diário, ao ganhar uma enorme soma de dinheiro; quando uma prolongada e trabalhosa peleja é finalmente coroada de êxito" (1917/2010, p. 187). E, afinal, Riobaldo, Fausto, Leverkühn, Haitzmann e tantos outros não nos ensinam e nos lembram como é sentir-se desse modo?

Trazendo a questão para o âmbito clínico, Rolland expõe reflexões interessantes sobre a invenção da instituição diabólica, chegando à proposição de que o analista mesmo poderia encarnar semelhante função com certos pacientes:

que outra coisa fazemos nós diante do desespero melancólico dos pacientes senão tentar reconciliá-los com as coerções da vida, inflectir a inclinação espontânea de seu desejo nirvânico pela morte para uma exigência de viver que, de qualquer forma, nunca existe por si mesma e que se apoia nos mais diversos compromissos e na necessária corrupção dos ideais infantis e narcísicos? ... E para que um sujeito humano se engaje nessa via estreita do vivo é preciso que um tentador suficientemente maligno a isso o incite e convença, é preciso que o interesse ligado ao gozo externo e ao prazer carnal tenha vindo corromper a fidelidade passional aos objetos internos do amor originário. (1998/1999, p. 11)

Ao incorporar o diabo, a presença do analista e sua ação interpretativa têm em vista, nesses casos, a ruptura de certa prevalência autoerótica, característica do narcisismo infantil, em prol da dobradiça harmônica figurada pelas construções simbólicas e pelo trabalho de perlaboração, no interior de novas polifonias associativas e tecidos representacionais. O próprio estabelecimento de uma relação atravessada por ressonâncias transferenciais e contratransferenciais traz em germe a esperança de que tais funções disjuntivas e conjuntivas do diabo sejam colocadas em marcha. Sobressai aqui o papel ativo do analista, cuja subjetividade se torna imprescindível para a criação de um campo compartilhado, no qual novas melodias possam advir.5

Enquanto intérprete musical com o paciente das composições surgidas no encontro, o analista muitas vezes erra a nota. A dissonância que cria pode ser convidativa a reformulações e avanços, quando um esforço de coautoria na dupla é possível, mas também pode ser intolerável, quando há recusa narcisista à alteridade e uso maciço de defesas que turvam a distinção entre eu e não eu. Nesses casos, o diabo é ainda mais apavorante e uma grande sutileza de gestos lhe é exigida.

 

5. O analista diabólico

Apesar de considerar um fenômeno de relativa extensão clínica, gostaria de finalizar essas reflexões com duas breves situações em que o diabo "em pessoa" apareceu na sala de análise.

Daniel me fora encaminhado por um psiquiatra para o tratamento de uma grave depressão, com ideações suicidas e frequentes cortes nos braços com estilete. Grande parte das primeiras entrevistas transcorreu em silêncio, exceto por uma ou outra esparsa observação. Ele contou que estava fazendo entrevistas com outros analistas também, pois, ao contrário da terapia anterior, dessa vez queria escolher bem. Quando depois de alguns encontros senti que poderia recebê-lo para uma análise, comuniquei-lhe isso e não marquei novo horário, sugerindo que, quando ele tomasse uma decisão, entrasse em contato comigo novamente. Não imaginei que o veria tão cedo e fiquei bastante surpreso quando, na semana seguinte, recebi seu telefonema, dizendo que ter ficado em silêncio comigo lhe havia sido algo importante e que isso motivara sua escolha.

Depois de alguns meses, a escassez verbal ainda predominava, os silêncios começavam a se tornar menos eloquentes e a criar distanciamento entre nós. Certo dia, então, Daniel veio à sessão usando uma camiseta cuja estampa de imediato reconheci, um desenho à mão em que havia um sapo com antenas e a frase "Hi, how are you". A saudação cordial trouxe junto a lembrança de onde tinha visto o desenho antes: era a capa do disco de um compositor norte-americano de música independente, tão influente quanto obscuro, do qual só tivera conhecimento por ter casualmente assistido anos atrás a um documentário contando sua história. Ele sofria de esquizofrenia e, entre outras tentativas de morte, havia provocado a queda de um monomotor, arremetendo-o ao solo quando voava com seu pai. Conforme a sessão prosseguia, fragmentos dessa e de outras histórias não paravam de surgir em minha mente.

Perto do final da sessão, enquanto Daniel falava algo vago sobre as dificuldades de sair do quarto e sobre o medo que sentia em perder os poucos amigos que ainda lhe restavam, de súbito me ocorreu o título do documentário, que até então escapara: The devil and Daniel Johnston (Rosenthal & Feuerzeig, 2005),6 nome que fazia referência aos delírios do compositor, carregados de pavor pela figura do diabo. Ele deixara inclusive de assinar o contrato com uma grande gravadora, que provavelmente lhe traria popularidade, por acreditar que ela estava mancomunada com o demônio. Digo então ao paciente que a pessoa da camiseta dele poderia chamar aqueles sentimentos de diabo, mas e ele, do que chamaria? Daniel fica atônito e me dirige em silêncio seus olhos surpresos. Depois de algum tempo balbucia qualquer coisa (a resposta não era tanto o propósito da pergunta) e mantém-se entre nós algo titubeante.

Foram necessárias outras duas sessões para que Daniel finalmente me perguntasse como é que eu conhecia aquela camiseta, pois ao seu redor "ninguém mais conhecia aquilo!" Contei do documentário a que eu havia assistido e que inclusive me motivara a ir ao show, quando pouco depois o artista se apresentou no Brasil. Senti como se com isso tivesse recebido um passaporte (provisório, é claro) de entrada para regiões antes inacessíveis. Descobrimos ter estudado no mesmo conservatório musical, e as conversas sobre música se tornaram um território comum, a partir do qual pudemos descobrir outros. Conforme os laços se estreitavam e Daniel gradualmente se sentia mais à vontade para compartilhar alguns pensamentos, o clima das sessões foi ganhando vitalidade, e elas passaram a conter marcas tanto de sentimentos afetuosos quanto de destrutivos, em que retornava o risco de um acidente aéreo entre nós. Já faz alguns anos que os cortes nos braços cessaram e o sangue estancou. A análise continua e outros cortes, não corporais, começam a ser vividos.

De modo amplo, a abstinência do analista parece ser colocada em questão quando há no campo analítico o predomínio de um desligamento mortífero. Com certos pacientes ou em determinados momentos de uma análise, por vezes sobrevém a necessidade, ou mesmo a exigência, de injetar vida a cada sessão, sendo ativamente uma presença criativa e estimulante. Quando isso é possível, o paciente costuma despertar de seu sono profundo e acompanhamos um ao outro em uma conversa viva e fecunda. Se, em vez disso, aguardo sua aproximação, mantendo uma postura observadora e cautelosa, nada parece ocorrer entre nós e somos cobertos por uma sensação de não encontro. Seria tal postura ativa uma oportuna sedução diabólica do analista, cujo efeito disruptivo encerra a finalidade de um chamado?

Balançando ao paciente uma espátula, objeto psicanalítico brilhante, o analista busca seu engajamento e vínculo. Nessa metáfora winnicottiana, o desvio do olhar dificilmente poderia ser encarado em termos de um período de hesitação inicial. É antes uma ausência: o paciente não está lá e não virá até que seja instigado.

Numa sessão dos primeiros meses de análise, João me conta o fragmento de um pesadelo da noite anterior. Neste, ele entrava num elevador com várias pessoas. Quando o elevador começa a subir, ele se vira e descobre, aterrorizado, que está agora sozinho com um homem, que começa a deformar o rosto e a transfigurar-se numa imagem horrenda: o próprio diabo! Preso no elevador com tal criatura, João desperta do pesadelo gritando. Conta que, ao acordar de madrugada, ainda tomado por pânico, começa a sentir calafrios e uma presença estranha e assustadora ao redor. Durante a sessão, disse acreditar que aquilo não fora apenas um sonho, mas sim um encontro de fato com o diabo, e que mesmo depois de acordar ele permanecera ali em seu quarto. Foi por conta disso que saiu em desespero levando seu colchão para o quarto dos pais, onde mesmo assustado conseguiu dormir o resto da noite.

Nessa sessão, sinto em especial o seu pavor e a inquietação que me transmite de uma ameaça traiçoeira, persecutoriedade talvez retaliadora de sua própria ambivalência. O não discernimento entre sonho e estado de vigília, sugerindo tratar-se antes de alucinose, evidencia o charco psicótico no qual caminhamos. Dele emerge um diabo um tanto distinto daquele encontrado por Daniel (já diz um dos princípios da demonologia que o diabo assume muitas formas...).

Penso nesse momento, cá com meus chifres e tridente, no longo caminho que eventualmente João e eu teremos pela frente, e que, embora o encontro com o diabo houvesse ocorrido, o pacto com ele ainda não fora possível. Penso também na atmosfera de terror que cobre certas transformações e travessias da vida, assim como no medo que nos faz recuar diante delas. Às vezes, são mesmo necessárias muitas tentações para seguirmos adiante.

 

Referências

Buschinelli, C. (2001). Interpretação psicanalítica: uma composição dodecafônica. Ide: Psicanálise e Cultura, 33,52-60.         [ Links ]

Candido, A. (2012). O homem dos avessos. In A. Candido, Tese e antítese (pp. 111-130). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. (Trabalho original publicado em 1964)        [ Links ]

Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 12, pp. 170-194). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

Freud, S. (2011). Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 15, pp. 225-272). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Goethe, J. W. von. (2004). Fausto: uma tragédia (primeira parte) (J. K. Segall, Trad.). São Paulo: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1808)        [ Links ]

Gómez Escallón, E. (2003). Formas y transformaciones del demonio: comentarios psicoanalíticos a un mito. Psicoanálisis, 12(1),24-40.         [ Links ]

Klein, M. (1998). A contribution to the psychogenesis of manic-depressive states. In M. Klein, Love, guilt and reparation and other works (1921-1945) (pp. 262-289). London: Vintage. (Trabalho original publicado em 1935)        [ Links ]

Lovelock, W. (2001). História concisa da música (A. Cabral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1953)        [ Links ]

Mann, T. (2015). Doutor Fausto (H. Caro, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1947)        [ Links ]

Mazzari, M. V. (2004). Goethe e a história do Doutor Fausto: do teatro de marionetes à literatura universal. In J. W. von Goethe, Fausto: uma tragédia (primeira parte) (pp. 7-24). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Rolland, J.-C. (1999). Curar do mal de amor (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1998)        [ Links ]

Rosa, J. G. (2001). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1956)        [ Links ]

Rosenthal, H. S. (Prod.) & Feuerzeig, J. (Dir.). (2005). The devil and Daniel Johnston [Filme]. United States: Complex Corporation; This Is That.         [ Links ]

Roussillon, R. (2011). Primitive agony and symbolization. London: Karnac.         [ Links ]

Wisnik, J. M. (2007). O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1989)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Alexandre Socha
Rua Joaquim Antunes, 767/112
05415-012 São Paulo, SP
alexandre.socha@gmail.com

Recebido em 18/12/2017
Aceito em 02/01/2018

 

 

1 Texto vencedor do Prêmio Revista Brasileira de Psicanálise, conferido durante o 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Fortaleza, Ceará, de 1 a 4 de novembro de 2017.
2 Para um interessante apanhado das várias formas de aparição demoníaca através dos tempos, conferir Gómez Escallón (2003).
3 É aos excessos polifónicos que comprometem a compreensão e o andamento do rito litúrgico que se dirige a condenação do papa João XXII, em decreto de 1324. O tema retornará no Concilio de Trento (1545-1563), sendo ali proposta uma contrarreforma musical que garantisse e preservasse os propósitos do catolicismo.
4 A ideia remete a uma concepção do espírito maligno como instrumento a serviço da ordem divina, encontrada desde o Antigo Testamento: ao espicaçar o ser humano, o diabo acaba por impedir que ele sucumba ao pecado capital da acídia (acedia) ou da tristeza profunda (tristitia). Tal concepção também se acha presente no Fausto de Goethe, tanto no diálogo entre Mefistófeles e o Senhor no "Prólogo no céu" quanto na célebre definição que Mefistófeles oferece de si mesmo: "Sou parte da Energia/ Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria" (1808/2004, p. 139).
5 Ao recair sobre o eu, a sombra do objeto acaba por lhe configurar um modo específico de apreensão da experiência e de como esta se organiza psiquicamente. Na situação clínica, de maneira semelhante, a dimensão intersubjetiva faz com que o analista interfira decisivamente na simbolização da experiência vivida pelo paciente. É nesse sentido que, sugere Roussillon, "a sombra do analista recai sobre o processo e tratamento analítico" (2011, p. 52).
6 O título foi vertido para o português como Loucuras de um gênio.

Creative Commons License